Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 8 de maio de 2011

Vidro - Capítulo 2


Era uma rua deserta, e dos vários casebres silenciosos, apenas o mais velho tinha a porta aberta, foi lá que Inverno entrou, e se transportou para outro lugar. Um salão enorme, uma mansão de espelhos, onde holofotes nas abóbadas deixavam tudo morno, e havia um cheiro estranho, mas ele não percebeu de fato.

Depois, uma leve brisa invadiu o lugar, e houve o barulho de objetos enferrujados, como máquinas. Os espelhos se moveram, trocaram de lugar, empurraram Inverno, deixando-o com medo. O lugar estava diminuindo, fazendo um cubo envolta dele, ele chutou um dos espelhos até conseguir quebrá-lo, e tudo pareceu parar por um longo momento.

Primeiro vieram os dedos, com unhas negras, e depois o resto da mão, segurando a batata da perna de Inverno, saindo do espelho que ele quebrara, e de onde só se via escuridão. A mão estava arranhada, assim como o braço, e o resto do garoto, que logo se revelou ser um outro Inverno, com o olhar arregalado e os cabelos desgrenhados e sem vida, subindo sobre o corpo de Inverno-verdadeiro.

Num segundo imprevisível, ambos estavam nus, sem saber o porquê. As olheiras de Inverno-falso fizeram uma torrente de desespero pulsar em Inverno-verdadeiro. Ficou frio, seu corpo estava gelado como uma rocha. O seu reflexo lambeu seu rosto, ele sentiu o próprio sexo encostando no seu, e depois sua barriga, seu peitoral magro, seu pescoço pálido, e por último a cabeça, com seus lábios encostando nos seus ouvidos.

- Eu sou fraco. – disse Inverno-falso. – Mas tenho um dom.

- Um dom? – Perguntou Inverno-verdadeiro.

- As pessoas... elas morrem quando eu toco nelas. – Sussurrou, postando a cabeça sobre o peito quente do original.

- Você vai acabar só.

- Mas, sobre a morte deles, eu triunfarei.

E acordou, a manhã estava cinza e encharcada, as nuvens gordas e cáusticas inundavam o céu e a terra com relâmpagos, trovões e chuva. Uma chuva arrastada, quase como se estivesse deslizando entre as ruas e correndo ao lado dos automóveis. Apesar do mau tempo, o bairro Veraneio permanecia agitado.

Inverno levantou da cama, arredou a cortina da sua janela, a cinza matutina iluminou seu quarto perfeitamente organizado. E lembrou-se do seu segredo.

Por trinta minutos ele se ajoelhou na banheira, com a dor no seu peito piorando, como um câncer crescendo e se espalhando pelo seu corpo a cada dia. Sua dor era sua única companhia, uma ânsia e um desespero lentos numa espécie de transe repentino, a cada minuto era como morrer e depois voltar à vida por obrigação. Aquele era um mundo que o aprisionava numa gaiola cheia de corvos, ali só restava ele e seu corpo. Apodrecendo. Virando pó. Nada mais.

~

Ele entrou na escola, e passeou rápido até chegar no corredor onde seu armário se encontrava, ao lado do de João. João estava ali, de cabeça baixa, pegando livros e depois fechando a portinha bruscamente, trancando-a num segundo antes mesmo de pensar em respirar, girando os calcanhares e saindo dali.

- João! – gritou Inverno, na multidão de alunos apressados.

João parou por um breve minuto, mas não virou o rosto para ver o amigo. Estava uma estátua segurando livros e cadernos. Inverno se aproximou e postou sua mão sobre o ombro trêmulo do rapaz.

- João... – disse Inverno. – o que foi?

- Só... só se afaste de mim.

- Minha amizade não vale nada pra você?

E João se foi. Inverno olhou para os sapatos, e depois encontrou o olhar de Maria, gargalhando ao lado do seu namorado, que acariciava seu pescoço e sorria como se fosse o jovem mais perfeito do mundo. Dessa vez foi Jezebel quem postou a mão sobre o ombro de Inverno.

- Hoje vai ter competição de natação, você vai? – Perguntou o rapaz, sorrindo.

- Com quem eu iria? – disse Inverno. – Aparentemente, estão com medo até de ficar do meu lado.

- Ah, vá ao menos para torcer pela minha vitória. Eu entrei numa aposta, e se vencer essa competição, vou conseguir uma boa grana.

- Isso não me interessa, Jezebel. – E quase sorriu.

- Você quer sair? Eu estava pensando em ir pra uma boate essa noite. Nossas provas desse período já acabaram. Preciso dançar.

- Eu nunca fui numa boate.

- Você é um chato, Inverno. – Disse Jezebel, meio irônico.

- Tudo bem, eu vou. Mas e os seus amigos? Eles não vão tirar sarro de você me ter como seu torcedor?

- Quem disse que são meus amigos?

A campainha tocou, e depois de algum tempo, tocou de novo. Até chegar à metade da tarde, de onde vários alunos, incluindo Inverno, foram ver a competição de natação. Os competidores já estavam se aquecendo, e o garoto pôde ver Jezebel sorrindo de longe, arrepiado com o clima frio daquele dia, no seu ombro esquerdo, havia uma estranha cicatriz, que outrora fora uma queimadura, a corrida debaixo d’água começou. Jezebel venceu.

- A gente vai comer uma pizza, vem com a gente, cara. – disse o namorado de Maria, com aquela mesma expressão de escárnio.

- Não, está tudo bem. – respondeu Jezebel.

- Vai trocar a gente por aquele otário?

Mas Jezebel não respondeu. Chamou o único torcedor que restava nas arquibancadas, e foram para o vestiário masculino. Inverno se sentou para esperar. Jezebel tirou a sunga molhada, espremeu-a e tomou uma ducha.

- Jezebel eu não sei se...

- Relaxa cara, todo mundo gosta de sair. Garanto que você vai gostar também. – disse Jezebel, enxugando o corpo e depois vestindo uma cueca.

~

A noite chegou, e as batidas na porta também. Inverno, com uma calça jeans escura, botas de cano curto e uma camisa preta, desceu suavemente as escadas, para atender Jezebel, que sorria gracioso como sempre. O rapaz trancou a porta, e olhou com certo receio para as ruas escuras de Veraneio, e depois para o outro horizonte, certificando-se de que não haveria nenhum valentão com uma meia na cabeça para gargalhar.

- Eu não tenho muitas roupas, sabe. – disse Inverno.

- Eu também não, e você está ótimo. Vamos.

Após a porta do beco em que pararam, eles desceram numa escadaria amarrotada com um tapete vermelho e encardido. A música vibrava cada degrau. Jezebel voltou-se para Inverno, e falou ao seu ouvido:

- Está pronto?

- Acho que sim.

E entraram. Inverno foi o primeiro a se sentar na cadeira perto da área das bebidas, onde uma travesti, cheia de tatuagens e o cabelo tingido de rosa shocking, atendia com certo mau humor, pois estava sem ajuda naquela noite. Depois de algum tempo, dirigiu-se a ele.

- Vai querer alguma coisa? – disse numa voz quase fanha, mas ainda vibrante e guardando resquícios masculinos.

- N... não. – Disse, arregalando os olhos.

- O que foi, viu algum fantasma por acaso?

Inverno balançou a cabeça, ela se virou e atendeu uma mulher de feições andróginas. Juntas, gargalharam. Bom, pelo menos chegou uma amiga para alegrá-la, pensou o garoto, e a música pareceu aumentar. As luzes carregadas de psicodelia e neon também pareceram se agitar mais.
Jezebel voltou com o rosto suado, brilhando de desestresse e alegria. Sentou-se ao lado de Inverno, e pediu duas vodkas para a travesti agora de bom humor, cujo nome se revelou ser Safira.

- Beba. – disse Jezebel.

Inverno bebeu, e depois fez uma cara feia. Sua garganta ardeu como o inferno. E seu estômago pareceu aquecer.
- Isso é horrível!
- Você se acostuma. Eu posso te pedir bebidas mais leves, se quiser e...


Um turbilhão veio na cabeça de Inverno, seu coração acelerou e seu corpo inteiro suava. Ele bebeu todo o drink de vodka agora consciente de que aquilo o fazia esquecer-se de tudo, e puxou Jezebel para a pista de dança.

Uma música meio excêntrica e remixada agora tocava freneticamente. Inverno aprendeu a seguir o ritmo e dançou sem parar, de frente para Jezebel, e depois de costas para Jezebel. Apenas as músicas agora entravam na sua cabeça, o calor das pessoas e de Jezebel perto dele era seu único contato com o mundo real. Ele rebolava, criava passos, fechava os olhos e sua escuridão era iluminada pelas luzes verdes cítricas, púrpuras e brancas, lasers que passeavam pelo seu corpo e faziam parte de sua dança. Os globos de espelhos giravam como mundos particulares de brilho e liberdade acima de sua cabeça. E ele parou por um instante, após um calafrio, e ali estava. O Inverno-falso de seus sonhos o fitava, com suas olheiras e sua expressão de angústia, os arranhões agora pareciam vergões horrorosos na pele despida, mas ninguém além dele pareceu notar seu outro ele. Jezebel agora estava longe, dançando com uma garota de feições vulgares e que rebolava na sua cintura, e também parou, após afastá-la e perceber a tristeza se ressaltando nos olhos de Inverno.

Agora todos os outros pareciam distantes. Inverno caminhou em direção a Jezebel, que o observava como se sua vida dependesse daquilo, o Inverno-falso ainda o encarava com tristeza, e o verdadeiro abraçou o nadador. O Inverno-falso desapareceu, o coração de Inverno desejava explodir, e ele pôs o queixo sobre o ombro cicatrizado de Jezebel, abraçando-o mais forte, chorando como se chora numa tragédia. O coração de Jezebel entrou em sincronia e ao mesmo tempo na angústia de Inverno, oscilando entre a realidade e as músicas excêntricas daquela boate, e seus braços grossos agarraram o pescoço do garoto, que se afogava e nadava pelos seus ombros, arranhando suas costas e puxando para mais perto de si, como se quisesse adentrar em sua alma, soluçando copiosamente.

- Eu tenho medo da minha própria escuridão. – mas Jezebel não ouviu.

Inverno o desabraçou, e Jezebel se radiou com o rosto alegre. Agora, o garoto estava gostando, e também conseguiu se alegrar, meio envergonhado, meio encorajado, de fato decidido.

- Eu vou ao banheiro. – Disse Inverno, apontando um polegar para um corredor ao lado do bar, e Jezebel afirmou com a cabeça.

Ao ficar mais tempo parado, o suor brotou da testa como uma enchente. Ele entrou no banheiro masculino e pôde ouvir, em dois boxes ocupados, vozes femininas gemendo absurdamente, calcinhas e camisinhas usadas no chão. Inverno lavou o rosto e olhou-se no espelho, sem medo de ver sua versão abatida e aterradora. No reflexo, havia um rapaz que também estava em êxtase, injetando alguma coisa no braço esquerdo com uma seringa. Era meio estranho, agulhas deveriam dar medo em vez de prazer.

- O... o que é isso? – Direcionou-se Inverno agora fitando o rapaz. Um louro de pele bronzeada e olhos cor-de-mel, bochechas rosadas. Usava lápis de olho.

- É o paraíso... – e deu uma risadinha de triunfo. – quer provar?

Inverno mal pensou. Sentou-se ao lado do louro, encostado na parede, e ofereceu o braço, seu pulso azulava a pele branca. O louro buscou outra seringa na mochila, encheu-a com um líquido guardado num frasco, e esguichou um pouco para retirar o ar. Depois, fez pressão no braço de Inverno com uma liga de borracha e injetou a droga.

A conhecida dor aguda de agulha fez Inverno expressar uma careta, até virar um alívio, e por fim, uma explosão de excitação. Seu sexo cresceu no jeans e ele abriu as pernas, tocando-o por cima da calça, tudo ficou lento e embaçado, mas era uma espécie de alívio onírico e sublime, ele não ouvia quase nada. Sentiu algo úmido e quente passar pelo seu pescoço, era o louro provando seu sabor, até se acabar numa única voz.

- Eu posso lhe dar mais, mas daqui pra frente vai ter um preço. – disse no seu ouvido, colocando um pedaço de papel com seu número no bolso de Inverno.

Inverno o empurrou, levantou-se cambaleando e foi ao encontro do amigo Jezebel, seu coração descompassava e ele ofegava, a música tinha uma voz grave que causava calafrios, os rostos das pessoas estavam borrados como que apagados por uma borracha, os lasers ofuscavam tudo, Jezebel o encontrou.

- Inverno eu...

- Eu quero ir pra casa, me leva pra casa.

Jezebel assentiu, segurou sua mão e saíram da boate. As últimas visões do nadador eram de Safira dançando loucamente num poste, e, depois, a porta fechada, as ruas escuras e banhadas de estrelas pontiagudas que feriam o frio da madrugada, e suas mãos embrulhando o corpo trêmulo de Inverno, mas aquele não era o Inverno verdadeiro.





~





Andrew Oliveira

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