Inverno pôs-se a recolher os livros aflitos no chão. Os valentões foram embora, pelo menos por enquanto. A campainha tocou, e em dois minutos os corredores já estavam desertos, Inverno logo entrou na sala de química, com seu público de praxe o encarando com desdém e triunfo. O menino respirou fundo e se sentou ao lado do amigo, um menino louro de olho castanho e feições trágicas, chamado João. João o fitou com suave espanto e indagação, mas Inverno logo respondeu:
- O namorado da Maria. – E não precisou explicar mais nada.
João ergueu as sobrancelhas com certa apreensão, e depois forçou os lábios para o lado, numa careta de “que pena”. Mas não devia haver pena para nada.
- Eu já disse pra você, seu idiota. Eu não gosto da Maria. Ela é uma mentirosa. – Inverno deu essa satisfação.
É, Maria era uma mentirosa. Na última vez que se encontrou com o namorado, se sentiu muito feliz em dizer que Inverno era apaixonado por ela, não que isso fosse de grande importância para Inverno, Inverno não ligava para mentiras, até ele gostava de contar algumas, a questão é que as mentiras de Maria afetavam muita gente. Maria deveria ser espancada com uma viga de ferro.
- Senhor Inverno, quer fechar essa sua matraca? – Disse o professor, com carinho, e a turma abafou risinhos de deboche.
- Sim, professor. – Submeteu-se Inverno.
Mas não houve muito tempo para conversa, o dia felizmente passou rápido, e Inverno breve estava ao lado de João, caminhando nas ruas mornas dos subúrbios de Veraneio, indo para suas respectivas casas. Claro, o dia não poderia ser mais desconfortável, se fossem ruas quentes, seria um completo desespero.
- Eu avisei pra você se afastar dela. – Disse João.
- Eu nem sequer me aproximei dela! – Indignou-se Inverno.
- Então o quê essa garota quer com você?
- Não faço a menor ideia.
E dizendo isso, abaixou um pouco a cabeça. O dia estava escurecendo bem lentamente, como se estivesse se deliciando com cada minuto a que surgia uma estrela no céu. Veraneio gostava das estrelas.
João se despediu, e Inverno ainda tinha duas quadras para chegar na sua casa, que pareceram mais longas do que o normal. O clima estava meio estranho, e as pessoas estavam mais estranhas também. Inverno olhava de um lado para o outro, e só via olhares de reprovação e medo, não que não estivesse acostumado, mas até no seu próprio bairro esses olhares cansativos? Que saco.
Mas todo mundo entrou e fechou as janelas. Ele não entendeu muito bem, na verdade, mal se lembra de como tudo chegou àquela conclusão.
Inverno fora imobilizado e puxado para um local escuro. Os garotos eram altos, da altura dos valentões da sua escola, e usavam meias pretas nas cabeças, escondendo as identidades, e tinham as gargalhadas quase idênticas aos dos valentões da escola também. Só mudava o fato de estarem mais silenciosos do que o normal. Geralmente garotos idiotas costumam falar mais do que o aceitável, mas não que sejam todos, é claro.
Inverno também mal se lembra de por que o estavam tratando assim, fazendo-o sentir uma dor insuportável e aguda na sua entranha, aquilo fora um tiro? Não.
Mas ele se lembra bastante de como voltou para casa. Mancando, com uma dor que não parava, e sangue empapando sua calça adolescente.
Abriu a porta, subiu para o seu quarto, e ninguém falou nada. Ele lembra de ter chamado pela mãe, mas a mãe estava ocupada, e de ter chamado pelo pai, mas o pai ainda não tinha chegado em casa. Seu irmão passava o dia dentro do quarto, fazendo sabe-se-lá o quê. E nada mais se movia, apenas Inverno.
O garoto tirou as vestes, quase sem querer tirar, e entrou no chuveiro que discriminava uma água morna, do jeito que ele gostava, mas ele nem estava pensando na temperatura da água. Ele não estava pensando em nada, e nem se quisesse conseguiria.
Inverno não chorou, pra quê chorar? Quem vai me ouvir?
- Filho, o jantar está pronto! – Chamou a mãe, batendo carinhosamente na porta.
Inverno não respondeu.
- Filho?
Ah, e o dia seguinte. O dia seguinte não poderia piorar, é óbvio, mas piorou.
João, com a mesma cara de indagação e tragédia, permanecia a fitar o amigo, numa espécie de estudo silencioso, como se estivesse lendo seu pensamento. Ah, mas não havia nada na cabeça de Inverno, há um bom tempo, e não teria tão cedo. As aulas de história, chatas como sempre, demoraram séculos para terminar, até que a campainha anunciou o intervalo.
Inverno não pegou nada para comer, e permaneceu apenas sentado ao lado de João, que devorava um sanduíche natural feito pela irmã, com presunto de peru e maionese light. Delícia.
- Você está bem? – Perguntou limpando a boca com um lenço de papel.
- Estou. – Disse Inverno, sem expressar nada. Feições de nada.
- Aconteceu alguma coisa? – Preocupou-se. – Alguém está doente?
- Ninguém está doente. Eu só estou com medo de tirar nota baixa em química. – Inventou.
- Não fique assim, aposto que vou ficar em artes! Quem quer saber de estudo da imagem? Que porra é semiótica? – Divertiu-se João.
- Não faço a menor ideia. – Respondeu.
- Ei. Sorria um pouco, cara. Parece até que viu um defunto voltar a viver.
Inverno forçou um sorriso, e antes que pudesse confidenciar alguma coisa, sentiu gosto de purê e percebeu que seu rosto estava cheio dessa consistência. Gargalhadas, gargalhadas, e os valentões da escola, os admirados atletas, os mais bonitos e mais famosos de todo aquele quilômetro quadrado. O amigo ofereceu lenços de papel, recebidos com grande desespero.
- Tem um pouco aqui. – Disse João, passando um lenço no pescoço de Inverno.
- Ah que bonitinho! Dois namoradinhos! – Disse o mais atlético, olhando para o seu grupo, em busca de sorrisos e mais gargalhadas.
- Não enche seu estúpido. – Bufou João, tão exausto quanto Inverno.
O sorriso do mais atlético sumiu, assim como os outros, mas Inverno percebeu que apenas um permanecia calado e sentado, e em nenhum momento expressou alegria pela sua desgraça, apenas um leve olhar melancólico. Era alto, de pele pálida, cabelos meio pontiagudos, olhos verdes e boca rosada nem tão carnuda, sobrancelhas suavemente grossas e músculos proporcionais aos de um atleta, ombros largos e coluna reta, o rosto oscilava entre a expressão de um garoto e a virilidade de um homem. Talvez aquele olhar fosse característico dele, talvez nem fosse para Inverno, mas isso mal importava agora, pois agora era ele quem pegara lenços de papel. A boca de João sangrava e manchava o chão.
- Você quer ir pra casa? – Perguntou Inverno, escondendo a amargura e tentando parecer equilibrado, enquanto todos iam assistir a suas aulas esvaziando a área de almoço e os corredores mais uma vez.
- O que a gente fez de errado, cara? – Perguntou João, em resposta.
Mas Inverno não respondeu. Permaneceu fitando o amigo que guardou a mochila no seu armário no corredor, e foi embora sem dizer nada, a irmã cuidaria do inchaço na boca. O que restou sentou-se na ponta da arquibancada, da quadra poliesportiva da escola, e deixou uma lágrima cair, e depois outra e depois outra.
Inverno chorou sem parar na quadra vazia. Agora a dor vinha mais forte, mais cretina do que deveria vir. Ela crescia, e depois se espalhava em cada órgão, e depois corroía suas vísceras, até ferver por baixo da sua pele, e fazê-lo se coçar de agonia e desespero silenciosos.
Outro lenço veio na sua visão, mas era de pano, um pano fino e confortável para o rosto. Não era João, era o atleta calado que mal se expressou na festa do intervalo.
- Vão te bater se te verem perto de mim. – Disse Inverno, sem nada haver.
- Não vão. Eu sou mais forte que eles. – Respondeu o garoto.
- Então o que você está fazendo aqui? – Questionou Inverno.
- E você? O que faz aqui? – Respondeu o garoto.
- Não estou com vontade de assistir aula.
- Eu também não, ué. – E sorriu.
Ah, esses sorrisos irritantes! Pensou Inverno, mas ele levantou a cabeça e não era irritante, do contrário, era afetuoso. O garoto pegou o lenço bruscamente e assoou o nariz, limpando as lágrimas com as costas das mãos.
- Eca. – Disse o garoto, pegando o lenço de volta, e o guardando no bolso.
Inverno não respondeu, mas sorriu.
- Que estranho. – Disse.
- Estranho o quê? – Indagou o garoto.
- Você ainda não me bateu ou jogou comida na minha cara.
- E por que eu jogaria?
- É o que os populares costumam fazer. Eles ainda não me atearam fogo porque nunca pratiquei bruxaria na escola, sabe...
O garoto não respondeu, mas sorriu.
- Qual é o seu nome?
- Jezebel. – Disse Jezebel. – E o seu?
- Eu sou Inverno.
- Inverno?
- É, Inverno.
- Por que seu nome é uma estação do ano?
- Eu nunca soube.
- Vamos. Eu levo você pra casa.
E o levou. O bairro estava morno como o corpo de um bebê. Inverno passou pela conhecida casa de seu amigo, e por um momento tentou ignorar, mas não conseguiu.
- Vamos voltar, a casa de João é aqui perto.
- Tudo bem.
Inverno tocou a campainha, mas ninguém atendeu, as janelas de cima estavam escancaradas, e mesmo depois das pedras atiradas ali, a suave hostilidade permanecia. O adolescente abriu a porta devagar, a sala estava uma bagunça, mas não havia qualquer sinal de vida.
- Que estranho, ele disse que iria pra casa.
Jezebel o olhou sem realmente olhar, mas ainda era a única criatura sã que estava próxima de Inverno. Inverno se incomodou com o silêncio, e correspondeu o seu olhar, aflito.
- Inverno, o que há com você? Aconteceu alguma coisa?
- N... Não aconteceu nada.
Um peso pontiagudo como um iceberg atravessou o peito de Inverno, que expressou melancolia por um leve momento, sua mão tremeu, mas conseguiu controlar o resto do corpo. E lá estava a sua casa. E lá estavam eles na porta.
- Fique mais um pouco comigo. – Disse Inverno, quase sussurrando.
- Tenho que ir pra minha casa também. – Respondeu Jezebel.
Inverno sentiu um desejo suave de abraçá-lo, ou de apertar a sua mão, ao menos. Mas ficou apenas calado, fitando-o sem muita animação.
- Está tudo bem. – Falou o jovem popular, completamente diferente dos populares normais.
E sorriu, desaparecendo no começo da noite do bairro Veraneio.
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Andrew Oliveira
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