Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Witch Fire - 06: Confluência


1680
Ammaleth deu um beijo de boa noite em Auguste, que dormia profundamente pelo cansaço do trabalho, afofou o vestido com leveza e saiu pela porta da frente silenciando até sua respiração. A vila de Clevelier estava praticamente iluminada apenas pela lua avivada e as estrelas gélidas no céu azul-escuro, exceto por uma ou outra lamparina esquecida acesa em alguns postes de ferro. Faltavam cinco minutos para meia-noite.
A Bruxa Clara caminhou pelas sombras e por becos mais escuros, concentrando-se para seu corpo não ficar muito visível e chamativo a olhos humanos. Atravessou mais duas ruas até avistar a Ponte dos Lírios, uma ponte que pulava em cima de rochas e um pequeno rio nos subterrâneos da vila, limpo e gorgolejante, e onde seus únicos pontos que iluminavam a madeira negra eram montes de lírios crescendo nas bordas e em cima de trepadeiras nas madeiras suspensas selvagemente. Justine já estava alí, olhando o luar com impaciência.
Ammaleth correu até ela e a assustou com a presença repentina, esquecera-se de desfazer o feitiço de ocultação nas sombras. Naquela ponte, ela já sentia o cheiro dos súditos de Radamathys.
- Ammaleth! Temos que ser rápidas! Se minha mãe acordar pela madrugada para me velar na cama, ela fará uma sirene de desespero na vila!
- Nós seremos rápidas, não temos muito tempo também. Vamos.
Enquanto corriam para dentro da floresta, as duas com lampiões que Justine trouxera de casa, Ammaleth teve um pressentimento de algo maior e mais forte. Sentiu que aquilo era apenas o começo de coisas mais amplas, e que ela teria de enfrentar tudo aquilo para chegar à sua filha Charlotte. Mas Charlotte, a aura de Charlotte estava tão distante que Ammaleth as vezes tinha a impressão de ela estar morta, todavia uma centelha mais feroz de vida a deixava sem essa incerteza.
- O que faremos Ammaleth?
- Te acalma. Primeiro preciso sentir se o corpo da tua filha está vivo. – Ela disse, sem se importar com um pequeno detalhe.
Justine parou assustada, enquanto Ammaleth avançava e encurvava os galhos que a barravam sua visão na floresta. A bruxa também parou quando viu a mulher estática a um metro de distância.
- Justine! Não temos tempo!
- Bru... Bru... Bruxa!
- SSSSSSHHHHH! Não faça barulho, não queira acordar os espíritos desta floresta!
- Tu és uma bruxa! Tu deves morrer! Tu és aliada do demônio!
Ammaleth se sentiu irritada. Voltou-se para Justine e segurou seu braço com força.
- Escute aqui, tu queres ou não queres encontrar tua filha?
- É claro que quero!
- Então fica quieta e me prometa que não me acusará de bruxa na nossa vila!
Justine franziu o cenho. Ammaleth a agitou.
- Prometo! Prometo! Está bem! Mas tu não és aliada do demônio?
- Demônio é apenas o nome que a Igreja dá a criaturas que ela desconhece. Prefiro chamá-los de moradores dos Reinos Dimensionais.
- Que diferença faz? – Justine disse com teimosia, agora mais calma e caminhando normalmente ao lado de Ammaleth.
- Fale mais baixo. E não, não sou aliada de nenhum. Mas gostaria de ser. Demônios podem trazer benevolência e virtudes na vida de uma bruxa.
- E tua alma é o preço disso tudo?
- Não. Meus poderes são. Como sou bruxa, em vez de mera humana, meus poderes são o que pesam, então quando morro meus poderes irão se transferir para o deus ou o demônio o qual eu prometi um pacto, e meu espírito se eleva.
- Bruxas vão para o céu? – Justine exclamou, mas logo abaixou o tom de voz após ver o rosto raivoso de Ammaleth, numa súplica por mais silêncio.
- Não sei se é para o céu o lugar aonde vamos.
- Tu acreditas em Deus, Ammaleth?
- Eu...
Um grito agudo e depois ritmado ecoou na floresta até o lugar onde as duas estavam. Um pequeno caminho feito por seixos. Justine tremeluziu o lampião e Ammaleth paralisou, fitando a companheira da madrugada e pedindo com o olhar para ficar quieta também. Um farfalhar de várias corujas piando e corvos crocitando encheu o ar das árvores que uivavam na noite de Clevelier.
Criaturas monstruosas deixavam claros seus rostos e corpos escuros numa grande fogueira após a floresta e no começo de um grande campo. Gigantes, medianas e pequenas, dançando, cantando, tocando em suas partes íntimas num êxtase incompreensível. A primeira reação de Justine foi gritar, mas Ammaleth a tempo lhe estapeou a boca e a segurou de tal forma que a mulher desamparada engoliu o grito no mesmo instante.
Ammaleth entregou seu lampião a Justine que, trêmula, ficou apenas a assistir. A bruxa se distanciou dois metros da mulher, abriu os braços, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.
- Kyemebu fe-ar nei, Adramelech! – Venha para mim, Adramelech!
Ammaleth tirou uma pequena lâmina escondida entre os seios e coberta por um pano tão mínimo quanto. Estendeu o braço esquerdo e fez um corte consideravelmente profundo, erguendo-o e manchando seu vestido com o próprio sangue. Seus olhos estavam sem pupilas.
Um relampejo de luz invadiu e se comprimiu no ar gélido da floresta, fazendo Justine se afastar e chamando a atenção dos súditos de Radamathys. Na estranha rachadura, um homem alto, nu e com lisos cabelos vermelhos a chegarem aos ombros se expeliu e com um rápido movimento de mãos fez surgirem vestes longas em seu grande corpo exposto. Olhou para Justine, que mais parecia um gatinho arisco, e depois para Ammaleth, que o recebia com um abraço.
- Quem és tu? – Ele a afastou com delicadeza, depositando suas mãos nos ombros finos da bruxa.
Ammaleth olhou impaciente para o grupo de criaturas que caminhava em direção a eles, procurando o causador da luz torta no meio da floresta.
- Sou Ammaleth, uma Bruxa Clara da dinastia Coeurcourt.
- E por que me invocastes?
- Porque estão chamando Radamathys e Archiri para esta dimensão, sem conhecer a sua história.
- E vós a conheces?
- Sim. E eu o invoquei grande Adramelech, porque preciso de tua ajuda, e porque tu fazes parte da história de Radamathys.
- Se a conheces, então é fato saberdes que sou parte desta história. Estás dizendo a verdade. Eu irei te ajudar.

~
Carlotta caminhou assoviando no extenso corredor da mansão. Parava para admirar de vez em quando um ou outro quadro, e então recomeçava sua caminhada. Teria que parecer natural e alegre o tempo inteiro, teria que ser a bruxa mais astuta daquele lugar, pois era difícil uma bruxa enganar outra bruxa. Mais difícil ainda, era uma Bruxa Clara estar infiltrada num empório de Bruxas Escuras.
Uma menina parou na sua frente, estava imunda e com o vestidinho branco esfarrapado e rasgado em todos os cantos. Ela a fitou pelo que pareceu um átimo de segundo, e então se transformou numa longa serpente e passou entre as pernas de Carlotta. Carlotta não se sobressaltara, pois aquilo era mais do que assustador, era admirável.
Enfim chegou ao final do corredor, bateu três toques na porta, e esta se abriu. A mesma menina estava sentada numa poltrona sem braços, moldada com ouro e acolchoados vermelhos, tinha os cabelos cacheados e louros que se espalhavam atrás da tal poltrona e passeava em pouco mais de um metro no chão. Seus olhos eram violetas, violetas vibrantes que assustavam quem quer que as olhasse. Usava um vestido preto que passava dos joelhos pequenos, uma meia preta e sapatilhas lustrosas. Segurava um galho longo e retilíneo, cortado e envernizado com dedicação. Uma varinha.
Boa parte das Bruxas Escuras usavam varinhas ou algum outro objeto fino e eficiente que pudesse canalizar e concentrar seus poderes. As Bruxas Claras costumavam usar as pontas dos dedos, as palmas das mãos e a mente. As outras bruxas, aquelas que não eram nem Claras nem Escuras, tinham forças que passavam dos limites da razão humana, e apenas as bruxas mais antigas já a haviam visto ou conversado com uma delas. As duas dinastias costumavam chamá-las de Feiticeiras, Xamãs ou As Guardiãs de Sheol, essas precisavam apenas dos olhos.
A menina não pareceu muito empolgada ou espantada em ver a presença de Carlotta à sua frente. Na verdade, parecia ter ficado mais entediada do que já estava.
- Perdoe-me, senhora Inanna, não me apresentei. – Carlotta abaixou a cabeça e fechou os olhos em sinal de respeito e confiança. – Sou Carlotta LyliumWater, uma Bruxa Escura que chegou nestas terras recentemente. – Foi o primeiro sobrenome que lhe veio a cabeça. Coeurcourt era a dinastia de maiores Bruxas Claras da história daquela raça.
- Carlotta LyliumWater? – A voz da menina era aveludada, quase imperceptível perceber uma centelha de jovialidade.
- Sim.
Inanna olhou para a sua varinha, fez uma pequena chama na ponta, engoliu-a e soltou uma nuvem de fumaça negra.
- Sinto muita luz em ti, senhorita LyliumWater.
Carlotta concentrou seus pensamentos em sangue, chacinas, sacrifícios horrendos e até na morte da irmã Ammaleth. Escureceu sua alma o máximo que pôde na frente daquela bruxa poderosa. Até deixou seus olhos verde-claros numa tonalidade verde-musgo para parecer convincente.
- Perdoe-me, senhora, mas estás enganada. Sempre fui uma Bruxa Escura, e sempre serei.
- Tu sabes que se uma Bruxa Clara entrar em nossos aposentos, nós teremos o direito de eliminá-la, não sabes?
- Sim, senhora. – Carlotta ainda estava de cabeça baixa, os olhos escuros, o coração mais pesado, as intenções mais cruéis.
- Pois muito bem. Agora me responda outra pergunta, senhorita LyliumWater. Por que nunca senti tuas forças de Bruxa Escura durante tanto tempo, e só sinto agora, contigo na minha frente?
- Eu estava hibernando, senhora Inanna. Estava concentrada, meditando num lugar muito profundo e impossível de se perceber que eu ainda estava viva.
Pela primeira vez Inanna demonstrou um sentimento, o de espanto e assombro, mesclados à curiosidade. Levantou-se no mesmo instante e se aproximou de Carlotta com leveza, sem se importar com os cabelos métricos se arrastando no chão como o longo vestido de uma noiva caprichosa.
- Tu estavas num Reino, não estavas? – Ela passeou os dedos nos cabelos de Carlotta como se fossem fios do mais puro ouro.
- Sim.
- Então tu sabes como entrar em um?
- A senhora não sabe?
- Sei. Mas estou velha e se fizer isso mais de duas ou três vezes, poderei morrer antes mesmo de completar o portal.
- Senhora...
- Não fale mais nada. Tu és uma Bruxa Escura oficial agora, não quero saber da tua história, do teu passado ou de qualquer coisa relacionada a isso. Bem vinda a minha dinastia, Carlotta LyliumWater. Ou melhor, Carlotta de Inanna.
Inanna gargalhou alto, ambiciosa e satisfeita, como se tudo aquilo fosse uma grande piada do mundo. Fez um gesto com as mãos para Carlotta sair.
- Obrigada, senhora. – Carlotta levou a mão ao peito e abaixou a cabeça mais uma vez, antes de fechar a porta.
- Eu quem agradeço, bruxa ingênua, por ter entrado em minha dinastia.
Ainda com a porta fechada, Carlotta podia ouvir a gargalhada de Inanna, forte na sua voz vibrante. Ela havia enganado a matriarca de uma das maiores dinastias de Bruxas Escuras! Ammaleth precisava saber disso. Quanto a sair daquela dinastia, ela resolveria depois, pois estava concentrada em ajudar sua irmã, mesmo que de longe.
Carlotta desceu as escadas da gloriosa mansão de Inanna, enquanto várias bruxas passeavam para lá e para cá, exceto duas. Uma jovem nervosa e ansiosa sentada ao lado de uma velha mal-humorada. Antes que a velha pudesse perceber, Carlotta invadiu sua mente e a mente da jovem, e viu três lembranças parecidíssimas. Nas três, elas faziam mulheres desmaiarem, pintavam três pares de asas negras nas paredes, e raptavam seus bebês.
A velha ficou em estado de alerta e Carlotta voltou a descer as escadas, saindo de seus pensamentos bem a tempo. Quando chegou ao térreo, sorriu para as duas que apenas a encaravam, aflitas, e foi-se da mansão para adentrar as florestas.
~
Auguste abraçou a almofada.
Apertou-a ainda mais contra o peitoral para ter certeza de que era mesmo a almofada, e só então despregou os olhos. Apenas a sua respiração, apenas o seu corpo repousado na cama, sozinho. Ammaleth, onde estava Ammaleth?
Há apenas dois dias que sua esposa voltara a sair de casa, e ela já estava com seu habitual costume de desaparecer na madrugada e reaparecer sempre após as três da manhã? Ammaleth... Teria ela ido atrás de Mary Donna? Não, não teria. Aquela velha, aquela mãe malévola de Ammaleth carregava alguma coisa negativa, perigosa, pesada em sua aura, sua presença. Ammaleth também possuía uma certa aura diferente das demais mulheres, mas a dela era inofensiva, ou pelo menos parecia ser. Não, ele tinha que confiar em Ammaleth, era a sua esposa, ela cuidava tanto dele quanto ele dela. Sem excessos de palavras, sem grandes discussões, sem profundas feridas, apenas o amor, o mais puro e autêntico amor.
Auguste pulou da cama, lavou o rosto, vestiu uma calça de couro marrom, galochas e uma camisa longa e branca e, como um fantasma, saiu de sua casa para pegar uma chave, caminhar até o final de uma ruela e entrar em outra. Acendeu um lampião à querosene empoleirado em um pequeno armário ao lado da porta de entrada e deu três toques na porta do único quarto da morada. Ele não o atendeu.
O homem preocupado resolveu entrar. Louvier residia na sua cama inquieto, não estava se mexendo ora ou outra ou apenas gemendo com um sonho ruim. Era um pesadelo profundo, real, palpável que o dominava e o fazia se contorcer entre os lençóis como um animal se ardendo em dor por ter uma pata mordida por uma armadilha. Auguste se aproximou e se ajoelhou perto da cama, agitando o corpo suado do irmão em vão. Estapeou-o e apertou-o várias vezes, mas a agitação de Louvier só aumentava.
- Louvier! Louvier! Acorde irmão! – Ele implorava como implorara quando despertara seu irmão desses pesadelos durante a semana anterior, desde que se iniciaram os raptos com os bebês, mas dessa vez falava mais baixo, um grito baixo, pois seria perigoso se se acordasse alguém mais além de Louvier.
Louvier soltou um urro de dor, como se estivessem penetrando garras em seu peitoral, pois este se encolhia e debatia os braços no ar impossibilitando alguma coisa de perfurar sua caixa torácica. Auguste pulou em cima dele e passou a estapeá-lo com mais força. Nenhum resultado.
Louvier o empurrou de cima da sua cintura, estralou e dobrou seu corpo quase ao ponto de quebrar sua coluna vertebral, e acordou.
Primeiro olhou para a direita e para a esquerda, depois para o teto, para a sua frente, e enfim para o seu irmão, fitando-o jogado no chão e apoiado nos cotovelos. Louvier não chorou como uma criancinha nem entrou em pânico, apenas se sentou na beira da cama para respirar e pensar e melhor.
Ele fitou Auguste por apenas um minuto após sentir que estava mais calmo, e voltar a ter a respiração descompassada e desesperada, enquanto o irmão mais velho levantava do chão e o esperava estar pronto.
- Justine e Ammaleth correm perigo. – Ele disse.
E então saíram da vila para conhecer a escuridão.

~
Um gigante súdito de Radamathys caiu de uma árvore em cima de Justine e a aprisionou com seus braços fortes, escuros e fétidos, e outro faria o mesmo com Ammaleth se Adramelech não olhasse para cima e o transformasse em pó, uma chuva escura sobre a bruxa horrorizada.
Adramelech suspendeu os braços sobre os joelhos, ainda em pé, e começou a arfar, abaixou a cabeça de uma forma que os cabelos ruivos e ardentes esconderem seu rosto. Ammaleth não sabia se olhava para ele ou para Justine com a expressão aterrorizada, e a boca silenciada pela mão áspera e pustulenta sobre sua pequena boca.
- Salva tua amiga. Estou bem, é apenas a minha doença. Meu amor por Archiri é minha doença. Esse é o preço que estou pagando.
Ela compreendeu. Correu e se distanciou do demônio e de Justine imobilizada, fechou os olhos mais uma vez e se concentrou no som da floresta. Não o som dos tambores dos súditos de Radamathys ou das respirações de seus companheiros , apenas o som único da floresta, aquele a quem ela dava tanta devoção.
- Cernunnos, Cernunnos, vorues-iuse! – Cernunnos, Cernunnos, proteja-nos!
Uma ventania carregada de fragrâncias das mais variadas flores chegou aos domínios de Ammaleth, que a comprimiu quase que por inteiro envolta do seu corpo, fazendo seus cabelos flutuarem lentamente sobre a cabeça pequena, levitou e rogou sua magia.
- Cernunnos, Cernunnos, seseaurikaiu-se! Oikyazoerse as uiikai noarsa! – Cernunnos, Cernunnos, destrua-os! Invasores da tua morada!
A ventania tomou a mesma forma de Ammaleth, como se fosse seu próprio espírito, e correu em direção à fogueira e aos súditos que ainda dançavam envolta dela. O vento de Cernunnos sugou toda a vida daqueles zumbis manipulados, e então explodiu-se em faíscas escuras quase causando uma queimada na floresta, se Adramelech não a apagasse a tempo. O súdito que segurava Justine caiu como um trapo no chão, não demonstrando qualquer sinal de que se ergueria para pegá-la novamente. Justine correu para um lugar mais escuro da fogueira e se encolheu entre galhos grossos de uma árvore que parecia infinita na escuridão.
O vento de Cernunnos não apagara a fogueira por completo. Um corte de luz branda se fez entre as chamas azuis que pouco a pouco escureciam, e num último relampejo de vida dançante, Radamathys se expeliu do portal como um homúnculo recém-nascido.
Adramelech, agora recuperado, correu em direção ao que restava da fogueira: tarde demais para empurrá-lo de volta. Radamathys se levantou nu e destemido, com o olhar altivo e a pouca surpresa em ver Adramelech também naquela dimensão.
Carlotta Coeurcourt alargou e retardou os passos, mas não levitou, chegou perto de Justine, que estava encolhida e amedrontada, e tocou em seu ombro. Ela colocou sua mão bem a tempo da mulher gritar, e então a abraçou pelo ombro.
- Calma, está tudo bem, tua filha está viva. Não te preocupa, vou buscá-la. – Quando Justine viu que Carlotta era enfim um ser humano, ou quase isso, se tranquilizou.
Ammaleth voltou e se depositou a poucos metros atrás de Adramelech, assistindo ao que ele faria.
- Por que me invocaram? – Radamathys quebrou o silêncio, olhando para Ammaleth e depois para Adramelech, falando num tom alto, mas não gritante.
Carlotta se desvencilhou do corpo trêmulo de Justine e se aproximou dos dois demônios, caminhando a passos sedutores e calculados.
- Eu te invoquei. Oh, grande Radamathys!
- E posso saber o por quê?
- Porque sou uma Bruxa Escura, e faço parte de uma das maiores dinastias de nossa raça!
- Teu nome?
- Carlotta de Inanna!
- Por que queres um aliado como eu?
- Por tu seres um dos demônios mais fortes de todos os Reinos-Demônios. Por tu teres seis asas obtidas com grande destemor e tu teres agora um reino maior que o de Tunridha! Nós, Bruxas Escuras, queremos formar um laço com vossa senhoria!
Os três olhos de Radamathys se concentraram tão fortemente em Carlotta que ela se sentiu nua e impossibilitada de contar mentiras. Mas ele jamais poderia saber se ela estava contando a verdade ou a mentira. Demônios não sabem e não podem ver a alma de uma bruxa.
- E tu achas que sacrificando seres humanos pequenos como este – ele apontou para um pequeno manto no meio dos corpos de seus súditos se mexendo sozinho, debaixo dele um bebê ainda vivo movimentando os bracinhos e as perninhas. – vai conseguir minha aliança?
- Nos perdoe, grande Radamathys, mas achamos que essa seria a única forma de chamar tua atenção, além de invocar teus súditos, é claro.
- Compreendo vossas intenções... – ele voltou a olhar Ammaleth, que apenas assistia a sua irmã, estupefata. – E ela?
- Ela me invocou, logo, pertenço a ela neste mundo. – Adramelech pôs-se a explicar.
- Adramelech... Aquele que destruiu minha família, meu amor por Archiri, meu futuro... – Radamathys devaneou.
O demônio acusado apenas abaixou as pálpebras pintadas com uma tinta negra.
- Pois muito bem, Carlotta de Inanna, fico honrado em receber tamanho sacrifício e dedicação apenas para me invocar. Invoque-me novamente mais tarde, prometo que virei na mesma hora e assim faremos a minha aliança com a tua dinastia. Mas não sacrifique mais nenhuma vida infante por mim, isso me causa extremo repúdio em relação à tua raça.
Radamathys bateu suas seis asas, causando uma ventania mais forte do que a de Ammaleth, e antes de desaparecer, fitou a irmã de Carlotta com mais atenção, com mais curiosidade... Até com certo interesse. Ele já vira aquele rosto, aqueles olhos, ele os conhecia, até mesmo aqueles cabelos eram familiares. Ele se lembraria disso quando retornasse para o seu reino?
Antes de ir embora, encarou Ammaleth por alguns segundos e então sussurrou uma pequena frase.
- Não está aqui.
Ammaleth compreendeu, mas teve medo de que a sua compreensão fosse um fato, então apenas estremeceu por dentro e guardou as palavras para, mais tarde, entendê-la de outros ângulos.
Adramelech recuou alguns passos e Radamathys desapareceu. Carlotta caminhou e deu a volta pela fogueira quase desaparecida, buscou o manto que se mexia entre as anciãs mortas e tirou o bebê de Justine com o rostinho sujo de cinzas. O bebê começou a chorar, mas com um leve afagar nas costas a bruxa o acalmou, levou-o até Justine, e Justine correu para buscá-lo de seus braços.
Ammaleth tocou no ombro de Adramelech, pedindo em silêncio que este esperasse mais um pouco, e então chamou por Carlotta, que em momento algum havia olhado para ele.
- Carlotta! Carlotta! – Seus olhos já se enchiam de lágrimas.
Carlotta, que estava velando feliz Justine e a sua filhinha, apenas virou o rosto para trás e a fitou com total tristeza.
- Desculpa-me irmã. Ainda não. – ela deu um beijo na testa do bebê e na testa de Justine e começou a se afastar. – Só posso lhe dizer que não me transformei numa Bruxa Escura completamente, Ammaleth. Mas lhe digo o seguinte: as nossas adversárias estão causando uma bagunça nas dimensões, querendo o poder de vários demônios à força. Radamathys é apenas o primeiro, elas querem mais cinco. Elas querem o poder de todos os seis demônios que protegem os seis cadeados do Grande Portal. E eu temo que elas queiram tanto poder porque querem eclodir uma guerra. Uma guerra de Bruxas Escuras e Bruxas Claras.
“Procure as origens, Ammaleth. Procure o porquê destes objetivos. Procure no âmago de nossas histórias. Quem sabe poderemos resolver isso, juntas. Mas por ora estou infiltrada na dinastia de Inanna. Sim, consegui convencê-la e enganá-la, e levei três anos pra concentrar um poder que fosse suficiente para isso. Os quatro anos anteriores a isso, lhe explicarei quando todo este horror acabar.”
“Proteja tua vila, Ammaleth. Proteja as pessoas que tu mais ama. Eu sei me cuidar, e eu vou te ajudar mesmo que de longe. Tenho que ir agora, eu não tenho muito tempo. Adeus!”
Com um leve canto sussurrado, chamou seu cavalo Joseph e saiu do fim da floresta para ser avistada naquele campo anterior a uma das colinas de Clevelier. Desatou o laço que amarrava sua máscara de madeira no pescoço do animal, colocou-a e montou no cavalo negro, indo embora a cavalgadas silenciosas na madrugada. Ammaleth teve apenas tempo de gritar por seu nome, não falou sobre o quanto sentia sua falta e o quanto ainda a amava, e sabia que fora ela quem tirara a maldição de Mary Donna de deixá-la presa sete anos em sua própria casa.
Ammaleth foi em direção a Justine, pegou e reacendeu um lampião intacto com o poder da mente, e antes que pudessem chegar na metade da floresta, viram mais dois lampiões flutuando e balançando em braços desesperados e que chamavam por seus nomes. Auguste e seu irmão Louvier.
Auguste a abraçou, aliviado, e Louvier deu uma grande benção aos céus após ter visto o bebê de Justine em seus braços. Ammaleth e Justine apenas sorriram, e num fiapo de pensamento, Justine falou com os olhos que guardaria seu segredo como forma de agradecimento pela sua vida e pela vida de sua filha.
Juntos, todos partiram de volta para a vila de Clevelier, sorridentes, exaustos e com os corações leves. Mas apenas Louvier olhou para trás.









~




Black Cherry

Artes: Nicole Absher,Jeff Simpson ("The Chooser"), Michelango

Nenhum comentário:

Postar um comentário