1680
- Entre. – a voz do jovem padre Louvier ecoou na portinhola entre o confessionário.
- Sua benção, padre.
- Deus lhe abençoe, filho... Agora, o que desejas? Queres um pedido ou queres te confessar?
- Na verdade, padre, gostaria de um pedido.
Louvier virou o pescoço para olhar atrás da fina grade negra vitoriana que enfeitava a madeira polida e envernizada do confessionário, e deslumbrou um rapaz branco, na verdade branco demais, de olhos azul-marinhos, cabelos que oscilavam entre o castanho e o negro, e uma beleza incoerente, diferente de qualquer beleza que ele pudesse distinguir. Era ao mesmo tempo instigadora e selvagem.
- Acabei de chegar nesta vila, padre, sou da Vila de Samsa.
- A que fica quase ao norte da nossa vila?
- Sim, e estou aqui à visitas, preciso ver uma aparentada doente, e esta aparentada deseja que eu faça duas coisas.
- Quais são?
- A primeira é que o senhor possa ir à sua casa orar e dar-lhe uma benção antes dela partir, e a segunda é aprovar uma festa.
- Uma festa.
- Uma festa para Saturno.
- Decididamente...
- Entenda padre, é o seu último pedido, e tenho ampla certeza que ela não pediria isso se não fosse importante para a o caminho da paz na sua alma.
- Seu último pedido antecedente à sua morte é que eu aprove uma festa pagã na nossa vila? Isso é um absurdo!
- Padre, por favor! sei que é incomum eu lhe pedir este tipo de coisa. Mas viajei longe, na metade do caminho meu cavalo contraiu alguma doença na Floresta da Mandrágora e faleceu, e desde então venho caminhando para esta vila, apenas para ouvir o que minha parenta deseja!
- Mas há uma estrada na sua vila que leva à nossa!
- Não há mais. Houve uma tempestade furiosa que derrubou dezenas de árvores na estrada, além de ter aberto crateras... Não há outra saída para os habitantes da nossa vila a não ser contornar o caminho pela Floresta da Mandrágora....
Louvier hesitou, uma pena se apoderava daquele rapaz belo e, pela primeira vez ele reparou, cansado. Mas a história da tempestade lhe parecia tão irreal... Todavia, já tinha se passado uma semana desde que acontecimentos estranhos não surgiam em Clevelier, exceto pelo fato de que os transportadores de cargas e os caçadores estavam reclamando de alguma estrada derrapada, submersa em árvores caídas, repleta de crateras. Ele já ouvira em algum lugar também sobre essas tempestades. Na verdade, há muito tempo ouvia sobre elas, ainda na época que seu finado tio, o padre Carlo di Saint Miguel, contava para ele e para Auguste que Clevelier tinha um azar esquisito para as chuvas mais densas....
- Não sei, meu rapaz... Faz algum tempo que a Igreja proibiu esses festejos pagãos nas vilas da França.... Desde então os que se recusam a seguir o caminho de Cristo fazem isso nas florestas... E parece-me que os monges mais importantes estão tomando medidas por demais drásticas, como atear fogo nas matas para condenar essas pessoas... Não quero que esse tipo de coisa aconteça em Clevelier, você me compreende?
- Compreendo padre.
- Então você compreende agora que não posso lhe dar permissão para isso?
O rapaz se calou, degustou o “não” com cautela, e também com cautela escolheu as próximas palavras que iria pronunciar.
- Padre, por favor, lhe prometo que essa será a primeira e última vez que isso acontecerá em sua vila... E para lhe dar minha palavra de que nada muito pecaminoso irá acontecer nesta festa, também convido o senhor a prestigiar as uvas que eu trouxe para o alimento... A vila de Samsa é a melhor na plantação de uvas e produção de vinhos!
A ideia de um padre numa festa pagã era até cômica, mas a degustação das uvas famosas de Samsa era tentadora. Louvier engoliu um riso e olhou para o rapaz, sério e impetuoso.
- Tenho a sua palavra?
- Com certeza que tem! – o rapaz deu um sorriso empolgado e pomposo, iluminando o seu rosto no mesmo instante. Até seu sorriso tinha alguma coisa misteriosa, tentadora...
Para o espanto de Louvier, o rapaz se levantou num pulo e foi-se para a porta de entrada da igreja ainda com aquele sorriso de aura estranha, mas não que, de fato, a aura estivesse explícita sob os dentes brancos e pequenos.
- Espere! – Louvier se ergueu da cadeira e saiu do confessionário, e o rapaz parou. – Qual é o seu nome, rapaz?
- Arpe, padre.
E saiu a passos largos da igreja.
~
Um antílope com mais de dois metros saiu de um ninho de árvores caídas e troncos limosos, tinha os chifres tão ou mais longos que suas patas, e parecia pesar toneladas, mas seus passos pouco ou nada faziam na terra, nenhuma vibração forte demais. Cheirou o ar e só então se aproximou de uma mulher com uma máscara negra que fazia lembrar o bico de um corvo, usava um vestido vermelho-vivo e carregava uma chama branca flutuante na palma da mão, apagando-a logo em seguida.
- Carlotta, pare de me chamar o tempo inteiro, queres morrer me invocando? – A voz grossa e ressonante pareceu vir de todos os lados da floresta, mas veio do animal majestoso, que mesmo assim sequer mexeu seu focinho ou sua boca.
- Desculpe, Huracán, mas eu...
- Sim, eu entendo, queres ajudar tua irmã. Mas pelo que senti, terás que ajudar a vila dessa vez.
- A vila?
- Sim, a vila de Clevelier. De alguma forma ela tem uma ligação com a Floresta da Mandrágora, O Grande Campo, e a Floresta dos Deuses.
- Mas Clevelier...
- Sim, Clevelier parece uma vila inofensiva. Mas esqueceste de que parte da dinastia Coeurcourt residiu e reside aí? Tu és uma bruxa experiente, deveria saber disso.
Carlotta enrubesceu, aquilo era uma ofensa horrível, vindo de um deus terrestre.
- Carlotta, eu sei qual é o teu pedido, mas por ora, não poderei pô-lo em ação. Está vindo uma criatura perigosa neste exato momento que poderá ameaçar, além da vida de pessoas inocentes, a vida da tua irmã.
- Minha irmã é poderosa, Huracán...
- No momento, tua irmã poderosa está ocupada demais para perceber a presença perigosa que está vindo agora. – Huracán olhou para os lados e mais uma vez cheirou o ar, se se olhasse mais próximo dos seus olhos, poder-se-ia perceber uma certa preocupação. - Anda, voa o mais depressa possível! Não deixe-o entrar em Clevelier.
Carlotta franziu o cenho.
- Voar?
- Agora!
Huracán direcionou seu focinho para o céu, fez um barulho com a língua que pareceu chapinhadas em poças d’água, e com um repentino raio de sol que chegou aos seus chifres, desapareceu. Carlotta sentiu o corpo mais leve, quase ausente de órgãos, tecidos, ossos, prestes a desaparecer, mas não desapareceu. Curvou o corpo e direcionou-o para onde se originava o som de inusitadas galopadas.
E voou.
Passou entre troncos, galhos, árvores tombadas, o vestido agora um borrão vermelho no ar, a máscara ainda no rosto, trêmula de vibrações, aguçando os sentidos de visão, olfato e audição da bruxa Coeurcourt. Até que chegou tão perto da criatura que cavalgava um cavalo marrom-claro que pôde sentir seu batimento cardíaco acelerado e ansioso, desejoso por sangue e carne. A criatura olhou para a máscara flutuante com a sombra vermelha logo atrás com total horror, serpenteou a língua e de um segundo para o outro Carlotta foi arremessada numa lufada de ar cortante, fazendo-a bater-se no tronco de uma velha árvore, e quase desapareceu. Quase.
Carlotta tirou a máscara com fúria do rosto, causando cortes em suas têmporas, deixou-a na cabeça como uma tiara, agora parecendo mais possuir uma coroa negra, deixou seus olhos esmeraldinos escuros e oscilantes, esfregou as duas mãos e, com uma única palma para cima, a criatura a mais de quinhentos metros de distância girou no ar e se estatelou no chão. A bruxa, ainda sentindo o poder de Huracán, voltou a flutuar e, em segundos, voar em direção a criatura e ao cavalo com as patas dianteiras quebradas.
A bruxa se aproximou do cavalo que relinchava agourentamente, fitou-o com dó, e então se ajoelhou perto de sua barriga.
- Me desculpe. – ela segurou o choro, tocou na barriga do cavalo, levantou-se e direcionou-se para a criatura derrotada. Antes que pudesse vê-la melhor, o cavalo começou a se debater horrivelmente, surgindo em sua pele horríveis feridas pustulentas, e morreu.
A criatura ainda engatinhava para longe do perigo quando Carlotta chutou sua barriga nua e imobilizou-a com suas botas de couro, pisando em sua cabeça. Um rapaz extremamente branco, olhos azul-escuros, cabelos salpicados com as cores castanho e preto, beleza ingênua, mas difícil de compreender.
- Saia daqui, agora, vá para longe desta vila. – Carlotta advertiu numa voz fria e clara.
- E como vou voltar? Tu mataste meu cavalo!
- Isso não me interessa. Voe, caminhe, desapareça, mas vá para longe daqui. Volta pro teu inferno.
O rapaz riu uma risada gutural, beirando ao assustador.
- Não irei.
Carlotta pisou mais forte, quebraria seu maxilar se se pisasse mais forte.
- Não costumo dar a mesma ordem duas vezes, criatura asquerosa.
O rapaz parou de rir.
- Pois não se dê ao trabalho.
Uma ventania anunciadora percorreu pela trilha em que Carlotta e Arpe se ameaçavam. Carlotta olhou para trás no mesmo instante, mas antes que pudesse pensar em alguma coisa, dois chifres longos e curvados saíram da terra em seguida à mãos grossas, ásperas e escuras. Um fauno surgiu do subsolo e segurou as pernas de Carlotta de forma bruta e selvagem, puxando suas canelas e fazendo-a cair.
Carlotta soltou um grito, não de medo, mas de espanto e fúria. O fauno começou a escalar em suas pernas e coxas, pronto para transformar aquele corpo belo e curvilíneo numa hamadríade, mas o poder da bruxa era maior.
- Tira tuas patas fedendo a estrume agora mesmo de cima de mim, criatura inferior, ou eu chamo pela fúria de Cernunnos!
O fauno, de rosto achatado e com pouquíssimas expressões humanas, mais parecendo uma cabeça de granito com olhos enormes, fitou-a como se Carlotta tivesse dito algo proibido e aterrador. Levantou-se e entrou de volta no buraco que ele mesmo fizera.
Carlotta também se ergueu do chão, olhando entristecida para o cavalo apodrecido e para o lugar onde Arpe já não se encontrava mais.
- Me desculpe Ammaleth. Essa era a única coisa que eu poderia fazer no momento. Falhei. Mas conto contigo.
E foi-se.
~
Black Cherry
Arte: Nicole Absher, edição de Black Cherry
- Entre. – a voz do jovem padre Louvier ecoou na portinhola entre o confessionário.
- Sua benção, padre.
- Deus lhe abençoe, filho... Agora, o que desejas? Queres um pedido ou queres te confessar?
- Na verdade, padre, gostaria de um pedido.
Louvier virou o pescoço para olhar atrás da fina grade negra vitoriana que enfeitava a madeira polida e envernizada do confessionário, e deslumbrou um rapaz branco, na verdade branco demais, de olhos azul-marinhos, cabelos que oscilavam entre o castanho e o negro, e uma beleza incoerente, diferente de qualquer beleza que ele pudesse distinguir. Era ao mesmo tempo instigadora e selvagem.
- Acabei de chegar nesta vila, padre, sou da Vila de Samsa.
- A que fica quase ao norte da nossa vila?
- Sim, e estou aqui à visitas, preciso ver uma aparentada doente, e esta aparentada deseja que eu faça duas coisas.
- Quais são?
- A primeira é que o senhor possa ir à sua casa orar e dar-lhe uma benção antes dela partir, e a segunda é aprovar uma festa.
- Uma festa.
- Uma festa para Saturno.
- Decididamente...
- Entenda padre, é o seu último pedido, e tenho ampla certeza que ela não pediria isso se não fosse importante para a o caminho da paz na sua alma.
- Seu último pedido antecedente à sua morte é que eu aprove uma festa pagã na nossa vila? Isso é um absurdo!
- Padre, por favor! sei que é incomum eu lhe pedir este tipo de coisa. Mas viajei longe, na metade do caminho meu cavalo contraiu alguma doença na Floresta da Mandrágora e faleceu, e desde então venho caminhando para esta vila, apenas para ouvir o que minha parenta deseja!
- Mas há uma estrada na sua vila que leva à nossa!
- Não há mais. Houve uma tempestade furiosa que derrubou dezenas de árvores na estrada, além de ter aberto crateras... Não há outra saída para os habitantes da nossa vila a não ser contornar o caminho pela Floresta da Mandrágora....
Louvier hesitou, uma pena se apoderava daquele rapaz belo e, pela primeira vez ele reparou, cansado. Mas a história da tempestade lhe parecia tão irreal... Todavia, já tinha se passado uma semana desde que acontecimentos estranhos não surgiam em Clevelier, exceto pelo fato de que os transportadores de cargas e os caçadores estavam reclamando de alguma estrada derrapada, submersa em árvores caídas, repleta de crateras. Ele já ouvira em algum lugar também sobre essas tempestades. Na verdade, há muito tempo ouvia sobre elas, ainda na época que seu finado tio, o padre Carlo di Saint Miguel, contava para ele e para Auguste que Clevelier tinha um azar esquisito para as chuvas mais densas....
- Não sei, meu rapaz... Faz algum tempo que a Igreja proibiu esses festejos pagãos nas vilas da França.... Desde então os que se recusam a seguir o caminho de Cristo fazem isso nas florestas... E parece-me que os monges mais importantes estão tomando medidas por demais drásticas, como atear fogo nas matas para condenar essas pessoas... Não quero que esse tipo de coisa aconteça em Clevelier, você me compreende?
- Compreendo padre.
- Então você compreende agora que não posso lhe dar permissão para isso?
O rapaz se calou, degustou o “não” com cautela, e também com cautela escolheu as próximas palavras que iria pronunciar.
- Padre, por favor, lhe prometo que essa será a primeira e última vez que isso acontecerá em sua vila... E para lhe dar minha palavra de que nada muito pecaminoso irá acontecer nesta festa, também convido o senhor a prestigiar as uvas que eu trouxe para o alimento... A vila de Samsa é a melhor na plantação de uvas e produção de vinhos!
A ideia de um padre numa festa pagã era até cômica, mas a degustação das uvas famosas de Samsa era tentadora. Louvier engoliu um riso e olhou para o rapaz, sério e impetuoso.
- Tenho a sua palavra?
- Com certeza que tem! – o rapaz deu um sorriso empolgado e pomposo, iluminando o seu rosto no mesmo instante. Até seu sorriso tinha alguma coisa misteriosa, tentadora...
Para o espanto de Louvier, o rapaz se levantou num pulo e foi-se para a porta de entrada da igreja ainda com aquele sorriso de aura estranha, mas não que, de fato, a aura estivesse explícita sob os dentes brancos e pequenos.
- Espere! – Louvier se ergueu da cadeira e saiu do confessionário, e o rapaz parou. – Qual é o seu nome, rapaz?
- Arpe, padre.
E saiu a passos largos da igreja.
~
Um antílope com mais de dois metros saiu de um ninho de árvores caídas e troncos limosos, tinha os chifres tão ou mais longos que suas patas, e parecia pesar toneladas, mas seus passos pouco ou nada faziam na terra, nenhuma vibração forte demais. Cheirou o ar e só então se aproximou de uma mulher com uma máscara negra que fazia lembrar o bico de um corvo, usava um vestido vermelho-vivo e carregava uma chama branca flutuante na palma da mão, apagando-a logo em seguida.
- Carlotta, pare de me chamar o tempo inteiro, queres morrer me invocando? – A voz grossa e ressonante pareceu vir de todos os lados da floresta, mas veio do animal majestoso, que mesmo assim sequer mexeu seu focinho ou sua boca.
- Desculpe, Huracán, mas eu...
- Sim, eu entendo, queres ajudar tua irmã. Mas pelo que senti, terás que ajudar a vila dessa vez.
- A vila?
- Sim, a vila de Clevelier. De alguma forma ela tem uma ligação com a Floresta da Mandrágora, O Grande Campo, e a Floresta dos Deuses.
- Mas Clevelier...
- Sim, Clevelier parece uma vila inofensiva. Mas esqueceste de que parte da dinastia Coeurcourt residiu e reside aí? Tu és uma bruxa experiente, deveria saber disso.
Carlotta enrubesceu, aquilo era uma ofensa horrível, vindo de um deus terrestre.
- Carlotta, eu sei qual é o teu pedido, mas por ora, não poderei pô-lo em ação. Está vindo uma criatura perigosa neste exato momento que poderá ameaçar, além da vida de pessoas inocentes, a vida da tua irmã.
- Minha irmã é poderosa, Huracán...
- No momento, tua irmã poderosa está ocupada demais para perceber a presença perigosa que está vindo agora. – Huracán olhou para os lados e mais uma vez cheirou o ar, se se olhasse mais próximo dos seus olhos, poder-se-ia perceber uma certa preocupação. - Anda, voa o mais depressa possível! Não deixe-o entrar em Clevelier.
Carlotta franziu o cenho.
- Voar?
- Agora!
Huracán direcionou seu focinho para o céu, fez um barulho com a língua que pareceu chapinhadas em poças d’água, e com um repentino raio de sol que chegou aos seus chifres, desapareceu. Carlotta sentiu o corpo mais leve, quase ausente de órgãos, tecidos, ossos, prestes a desaparecer, mas não desapareceu. Curvou o corpo e direcionou-o para onde se originava o som de inusitadas galopadas.
E voou.
Passou entre troncos, galhos, árvores tombadas, o vestido agora um borrão vermelho no ar, a máscara ainda no rosto, trêmula de vibrações, aguçando os sentidos de visão, olfato e audição da bruxa Coeurcourt. Até que chegou tão perto da criatura que cavalgava um cavalo marrom-claro que pôde sentir seu batimento cardíaco acelerado e ansioso, desejoso por sangue e carne. A criatura olhou para a máscara flutuante com a sombra vermelha logo atrás com total horror, serpenteou a língua e de um segundo para o outro Carlotta foi arremessada numa lufada de ar cortante, fazendo-a bater-se no tronco de uma velha árvore, e quase desapareceu. Quase.
Carlotta tirou a máscara com fúria do rosto, causando cortes em suas têmporas, deixou-a na cabeça como uma tiara, agora parecendo mais possuir uma coroa negra, deixou seus olhos esmeraldinos escuros e oscilantes, esfregou as duas mãos e, com uma única palma para cima, a criatura a mais de quinhentos metros de distância girou no ar e se estatelou no chão. A bruxa, ainda sentindo o poder de Huracán, voltou a flutuar e, em segundos, voar em direção a criatura e ao cavalo com as patas dianteiras quebradas.
A bruxa se aproximou do cavalo que relinchava agourentamente, fitou-o com dó, e então se ajoelhou perto de sua barriga.
- Me desculpe. – ela segurou o choro, tocou na barriga do cavalo, levantou-se e direcionou-se para a criatura derrotada. Antes que pudesse vê-la melhor, o cavalo começou a se debater horrivelmente, surgindo em sua pele horríveis feridas pustulentas, e morreu.
A criatura ainda engatinhava para longe do perigo quando Carlotta chutou sua barriga nua e imobilizou-a com suas botas de couro, pisando em sua cabeça. Um rapaz extremamente branco, olhos azul-escuros, cabelos salpicados com as cores castanho e preto, beleza ingênua, mas difícil de compreender.
- Saia daqui, agora, vá para longe desta vila. – Carlotta advertiu numa voz fria e clara.
- E como vou voltar? Tu mataste meu cavalo!
- Isso não me interessa. Voe, caminhe, desapareça, mas vá para longe daqui. Volta pro teu inferno.
O rapaz riu uma risada gutural, beirando ao assustador.
- Não irei.
Carlotta pisou mais forte, quebraria seu maxilar se se pisasse mais forte.
- Não costumo dar a mesma ordem duas vezes, criatura asquerosa.
O rapaz parou de rir.
- Pois não se dê ao trabalho.
Uma ventania anunciadora percorreu pela trilha em que Carlotta e Arpe se ameaçavam. Carlotta olhou para trás no mesmo instante, mas antes que pudesse pensar em alguma coisa, dois chifres longos e curvados saíram da terra em seguida à mãos grossas, ásperas e escuras. Um fauno surgiu do subsolo e segurou as pernas de Carlotta de forma bruta e selvagem, puxando suas canelas e fazendo-a cair.
Carlotta soltou um grito, não de medo, mas de espanto e fúria. O fauno começou a escalar em suas pernas e coxas, pronto para transformar aquele corpo belo e curvilíneo numa hamadríade, mas o poder da bruxa era maior.
- Tira tuas patas fedendo a estrume agora mesmo de cima de mim, criatura inferior, ou eu chamo pela fúria de Cernunnos!
O fauno, de rosto achatado e com pouquíssimas expressões humanas, mais parecendo uma cabeça de granito com olhos enormes, fitou-a como se Carlotta tivesse dito algo proibido e aterrador. Levantou-se e entrou de volta no buraco que ele mesmo fizera.
Carlotta também se ergueu do chão, olhando entristecida para o cavalo apodrecido e para o lugar onde Arpe já não se encontrava mais.
- Me desculpe Ammaleth. Essa era a única coisa que eu poderia fazer no momento. Falhei. Mas conto contigo.
E foi-se.
~
Black Cherry
Arte: Nicole Absher, edição de Black Cherry
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