Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Witch Fire - 07: Friddah

1662
Uma lembrança desbotava que Ammaleth tinha apenas como um sonho ruim. Nela, Carlotta ainda não havia nascido. Mas existia outra, uma irmã, mais velha que Ammaleth.
Ammaleth tinha cinco anos, Friddah tinha seis.
Numa destas noites estreladas, foi que Ammaleth soube. Friddah havia fugido da casa dos seus pais adotivos para ir ao encontro da mãe Mary Donna. Mary Donna a expulsou, a surrou e lhe rogou uma maldição nos olhos deixando-a cega. Mas Friddah não saiu da sala. Ammaleth ficara horrorizada com tudo aquilo, e num instinto perfeito permaneceu calada e apenas assistiu. Sentiu que se se mostrasse, algo horrível aconteceria à ela. Ammaleth tinha medo da mãe.
- Em-wuu sa ezumir-sau! – grasnou Mary Donna para Friddah, erguendo o braço direito e fazendo um leve movimento de dedos. “Cega da escuridão!”. E Friddah, imóvel, chorou sangue. Os olhos de Friddah vermelhos, os olhos de Friddah todo negros, os olhos de Friddah sem nada ver. Mas o amor de Friddah ainda estava alí, para a mãe que a renegava. – Já lhe disse, uma primogênita Coeurcourt não pode ficar com a sua mãe! Agora some da minha frente!
- Mamãe! – chorava Friddah para o nada.
A porta se abriu sozinha, Ammaleth por algum motivo desconhecido sentiu um aperto no seu peito por ver Friddah naquele estado deplorável, carregando uma maldição nos olhos rogada pela própria mãe. E fez-se chuva em Clevelier.
- Mamãe!
- Vá embora! Saia da minha frente!
Como se por magnetismo, os pés de Friddah começaram a se arrastar em direção à porta aberta, amarrotando o assoalho no piso de madeira. As nuvens cinzentas que se propagavam do nada cuspiam trovões e traziam relâmpagos, com um vento cada vez mais forte. Ammaleth não conseguia mais ficar parada e calada, para aquela sua irmã desconhecida que sofria como um sacrifício para Pã.
- Mamãe! – dessa vez foi Ammaleth quem gritou. – Não faça mais mal à ela!
Mary Donna voltou o olhar para Ammaleth, que corria num impulso que seus sentimentos incompreensíveis comandavam, para abraçar e tentar ajudar aquela menina que, mesmo sendo arrastada à força pelo poder da mãe, ainda não havia desistido de obter o seu amor. Ammaleth a enlaçou com seus bracinhos, e a menina, um pouco mais alta que ela, parara de chorar e de ser expulsa da casa. Friddah, durante alguns segundos, pareceu entrar num frenesi, os olhos arregalados, os braços estendidos em direção a Mary Donna, as lágrimas de sangue secando no rosto branco e os olhos outrora verdes, agora escuros, arregalados como duas bolas de cristal.
Eram como pequenos querubins de cabelos negros e longos, a pele de mármore e as íris de vidro, plantados no meio da sala enquanto uma chuva noturna trovejava e assustava os moradores da vila. Mary Donna as fitou, e por um mínimo instante demonstrou o que pareceu tristeza, que logo foi consumida pela crueldade que voltava às suas expressões.
Ela ergueu o braço e bateu o ar, como se quisesse espantar uma mosca, e então, naquele momento ímpar de desespero, os braços de Ammaleth abraçaram apenas o ar. Friddah fora arrastada enfim para as ruas úmidas e geladas, iluminadas por lamparinas e postes de ferro que suspendiam velas ou querosene nos cantos e nas praças.
Friddah caiu de joelhos nas ruas alagadas, um crepúsculo ainda se pintava na noite que pouco a pouco era consumida por estrelas indiferentes, olhou para o céu e chorou, chorou e gritou. Mary Donna correu para fora, Ammaleth no seu encalço, mas a menina não havia parado. Algumas pessoas começaram a sair de suas casas para assistirem, preocupados, o que estava causando aquele escândalo todo. Mary Donna tentou, concentrando sua mente o máximo que podia para assassinar a filha fazendo explodir seu coração, mas uma força mais intensa e severa crescia e exalava dos poros de Friddah incontrolavelmente. Friddah gritava cada vez mais alto, mais pessoas saíam na chuva para ver aquela situação horripilante, Ammaleth não conseguia mais mover as pernas, o crepúsculo desapareceu das montanhas, as nuvens o engoliram.
Friddah abraçou a si mesma, num sinal de que até ela havia percebido o descontrole de seus poderes, e então todos os lampiões naquele quilômetro quadrado explodiram e se apagaram, e deixando os moradores iluminados apenas pelos trovões e relâmpagos cada vez mais forte e ameaçadores. As portas e as janelas das casas começaram a se abrir e fechar, um filete de sangue começou a escorrer do nariz de Mary Donna, Ammaleth tentava ao máximo se mexer para impedir, e ela já sabia como, a irmã.
Mas Friddah era obviamente muito mais forte que Ammaleth e Mary Donna juntas, seus gritos pareciam se propagar nas ruas e até dentro das casas. Um camponês imundo vestido com trapos de linho saiu da multidão de bocas escancaradas e dedos apontados e falou tão alto quanto os berros da menina:
- Bruxa! Esta criança é uma bruxa!
Mary Donna, num gesto instintivo de falsidade, pegou Ammaleth no colo e começou a fazer as mesmas expressões que as pessoas que assistiam a menina esbravejar para o céu tempestuoso. Como se Friddah não fosse sua filha.
- Bruxa! – algumas mulheres concordaram.
- Bruxa! – mais pessoas exclamavam.
Um casal também saiu do meio da multidão, eram os pais adotivos de Friddah, olhando para a filha e para uma Mary Donna levianamente horrorizada, e de volta para a filha. A mulher se ajoelhou e sacudiu os braços da garotinha.
- Friddah! Friddah minha filha! O que está acontecendo com você?
Friddah parou. Primeiro baixou os olhos amaldiçoados para o nada, o vestidinho preto molhado e os joelhos doendo no chão ladrilhado, e por fim o transe, o pescoço se contorcendo e virando-se para tentar enxergar a mãe adotiva, uma mulher de cabelos castanhos e que chegava até os ombros, as feições dóceis e uma bondade natural. Se aquela mãe era tão boa, por que Friddah resolveu ir sofrer na frente de Mary Donna, aquela bruxa, bruxa em todos os aspectos?
A mãe a abraçou e a ninou, então a carregou e a deu para o marido que sentia a mesma dor que ela. Eles se entreolharam e se deram um beijo suave, quase um encostar de lábios, que durou pouco tempo, e então se afastaram para aquecer a filha numa lareira. Os olhos de Friddah estavam voltando a ficar verdes, a maldição estava sendo desfeita por Mary Donna que fora forçada a fazer isso, para não descobrirem sua identidade. Mas apenas por isso ela desfez a maldição.
- Bruxa! Ela tem de ser queimada! – disse o camponês insano por morte, apontando para o casal que carregava a filha e ignorava todo mundo, cada vez mais distante de todos.
Carlo di Saint Miguel, um padre bondoso, que segurava a mãozinha de seu sobrinho Auguste numa mão, e seu sobrinho mais novo Louvier na outra, também se destacou da multidão e olhou feio para o camponês.
- Ela é uma criança, rapaz estúpido! – ela cuspiu as palavras com desprezo. – Tudo isso é obra desta tempestade! Não estás vendo? Deus está furioso, principalmente com pessoas como você!
O camponês o fitou como se o padre tivesse dito algo indecente.
- E vocês! Deveriam se envergonhar! Chamar uma criança perdida da mãe de bruxa! O que vocês têm na cabeça? Estrume de cavalo? – ele falou pra multidão, que abaixou a cabeça quase no mesmo instante, como um grupo de crianças peraltas. – Voltem para suas casas! Vamos! – ele ordenou, como uma grande autoridade naquela vila. E era.
O camponês foi embora, junto com a multidão que se dispersava e voltava a entrar em suas casas, aliviada por estar agora em locais secos. Mary Donna abraçou o corpinho encolhido de Ammaleth no seu colo, afagou sua cabeça e arrancou as memórias que ela tinha de Friddah, e então entrou de volta para a sua morada, largando a menina no vão da porta.
Antes de fechá-la, Ammaleth deu um aceno com a mãozinha branca para o pequeno Auguste, que olhava para trás enquanto ia embora com o tio e o irmão, e fazia o mesmo.

~
1680
Ele achou ter visto aquele pequeno esconderijo abaixo de uma madeira frouxa novamente, mas era apenas o mesmo sonho invadindo seus sonos novamente. Auguste pulou da cama sentindo aquele cheiro fresco de leite e pão, ajeitou um pouco a roupa íntima de baixo e chegou na pequena sala de visitas, logo ao lado de um corredor curto que levava à cozinha, na sua casa. Alí estava Ammaleth sentada num dos dois sofás, abraçando as pernas, pensativa. Ele se debruçou sobre a esposa e a beijou nos cabelos, sentindo a textura e a maciez dos fios nos lábios róseos.
- O que foi, querida?
Ammaleth ficou mais um pouco em silêncio, então olhou para Auguste em pé com o corpo quase nu e deu um sorriso tristonho, como quem diz “não se preocupe, posso melhorar”.
- Auguste... Quero minha filha de volta.
Ele receava que ela falasse isso, mas conhecendo sua mulher, aquela que passara sete anos enclausurada na própria casa, passando dias orando, fazendo comida, ordenhando as vacas da sua pequena fazenda e lavando suas roupas, sabia que chegaria a hora em que ela falaria o que havia acabado de falar. E chegou.
- Você nunca soube de nenhum sinal de onde minha mãe estava?
- Não, meu amor. Se soubesse lhe falaria na hora... Mas é estranho, sabe? Os moradores ou não se lembram, ou mal se lembram de Mary Donna...
De repente Ammaleth pareceu estar mais atenta às palavras de Auguste.
- O que costumam dizer?
- Que se lembram de uma pessoa, uma velha senhora, mas que não conseguem distinguir seu rosto ou recordar seu nome. Apenas sabem que ela cuidou de você... Por quê?
- O feitiço da Eva entorpecida.... – Sussurrou para si mesma.
- O quê?
- Não é nada, meu amor. Também acho isso estranho.
Auguste se sentou no sofá de frente para o que Ammaleth estava encolhida e afogada em suas reflexões.
- Lembro de Mary Donna perfeitamente, Ammaleth. Como se... Como se tudo aquilo tivesse acontecido ontem. Que fui empurrado com força contra a parede, e quando recuperei os sentidos e senti minha cabeça latejada, só havia você... Aliás, e a sua irmã?
- Friddah? – Ammaleth soltou o nome sem nem pensar, como um instinto mecânico do sua língua.
- Friddah? De onde você tirou esse nome? O nome dela não é Carlotta?
- Sim... É claro que é... – Ammaleth também se assustou com o nome que saíra da sua boca. De onde ela o ouvira? Parecia-lhe vindo de uma lembrança forte, porém arrancada de sua mente, de sua vida. – Carlotta também foi obrigada a ir embora... Mas sei que a verei novamente.
- Por que Carlotta não lhe ajudou com Mary Donna enquanto eu estava desmaiado? – Essa pergunta estivera guardada em sua garganta por sete anos, mas aquela conversa mostrava que a mulher se sentia pronta para qualquer pergunta, e pronta para dar todas as respostas.
- Ela me ajudou, Auguste. Mas Mary Donna também tinha reforços...
- Reforços?
- Havia um homem à seu comando, ele agrediu Carlotta e fugiu com Mary Donna. – Mentiu Ammaleth, que não pensava em outra resposta para a também fuga da irmã, que infelizmente não poderia mais ficar ao seu lado, e teve que ir-se para sete anos depois voltar a ajudá-la.
- Nossa... Mary Donna é...
- Um monstro. – Completou Ammaleth amargurada.
- Mas Ammaleth... – começou Auguste, e ela já sabia qual seria a próxima pergunta – Por que passaste sete anos sem sair da nossa casa?
O olhar de Ammaleth congelou, até a respiração lenta e ritmada no espartilho preto em seu peito pareceu parar. Ela o degelou e olhou para as próprias unhas, para então voltar a encarar Ammaleth.
- Auguste eu...
- Ainda não está pronta para falar?
- Isso e...
- Ammaleth, você e meu irmão são as únicas pessoas que eu amo nesse mundo, as únicas que eu tenho, além da nossa filha que nunca cheguei a conhecer e cuidar... Podes confiar em mim, sabes disso.
- Tu não entendes Auguste. Isso é horrível... Não foram simplesmente sete anos trancada nesta casa... Foram sete anos presa nesta casa.
- O que eu não entendo? Fale pra mim? E o que tu queres dizer com “presa nesta casa”?
Ammaleth suspirou, fechou os olhos por alguns segundos como se pensasse em cada palavra antes de pronunciá-las.
- Eu tenho medo, Auguste. Sei que posso confiar em ti. Mas isso é muito maior do que tua compreensão...
- Fale pra mim Ammaleth. Eu te amo, Ammaleth. Nunca vou te abandonar. Tu sendo um anjo, um demônio, um animal, permanecerei a te amar...
- Oh Auguste... Não é o amor o perigo disso tudo, sou eu.
Auguste franziu o cenho, então se levantou do sofá, ajoelhou-se ao lado de Ammaleth e depositou as mãos grossas e grandes em cima das finas e delicadas da esposa.
- Fale-me.
- Auguste, tu podes...
- Pare de pensar que vou lhe abandonar, pare com isso agora. Isso nunca vai acontecer. Nunca.
Ela enfim deu-se por vencida, suspirou mais uma vez antes de pensar nas palavras que poderiam explicar ao marido o que ela era, concluindo por fim que não havia outra maneira além da mais direta.
- Sou uma bruxa, Auguste.
Por um momento, o homem degustou a palavra como se estivesse procurando no arquivo de suas memórias o significado da palavra “bruxa”, então pensou mais um pouco para ter certeza de que ouvira aquilo, até concluir que fora dito alto e claro, bem ao seu lado. “Bruxa”, ela dissera com franqueza.
- O que isso significa? – Foi a única pergunta que lhe veio no momento para semear.
- Que tenho forças sobrenaturais para invocar, controlar, manipular, enganar, viver mais do que um ser humano normal, e que todo filho do sexo feminino que eu tiver, herdará meus poderes, e os poderes da minha mãe, e da mãe da minha mãe.
Auguste passou mais um minuto calado, mas não tirou as mãos de cima das de sua esposa, apenas baixou as pálpebras, imerso em pensamentos tanto quanto Ammaleth estivera minutos atrás antes daquele diálogo se iniciar.
- Isso é ser uma bruxa?
- Sim.
Mais silêncio.
- Quantas pessoas mais sabem disso? – Seu rosto estava impenetrável de emoções.
- Apenas Justine, mas porque foi necessário por ontem... Quando fui salvar sua filha.
- O fato de você ser bruxa ajudou a salvar a filha de Justine?
- Sim.
- Mas uma bruxa...
- Sim, existem, chamam-se Bruxas Escuras, mas não sou uma delas. Pertenço à dinastia Coeurcourt, logo, meu clã é o das Bruxas Claras, que diferente do outro, não acredita que seres humanos sejam inferiores à nossa raça. Somos iguais a eles, mas apenas com um dom em diferencial.
- E a Igreja? Ela deve saber da existência de bruxas...
- Não. A Igreja está usando o termo “bruxa” para mulheres curandeiras, que desafiam, segundo eles, o desejo obscuro de Deus de adoecer e matar pessoas. Mas bruxas de verdade, como nós, ela nem especula.
- E se souber?
- Não saberá.
- Ammaleth, eu me preocupo contigo. E se ela souber?
- Tentará nos exterminar, é claro. Tentará nos queimar na fogueira como queima as pobres velhas curandeiras...
- E pode conseguir?
- Improvável. Toda vez que um ser humano tenta machucar uma bruxa, sabendo ou não que ela é desta raça, faz-se chuva. A chuva é um dos fenômenos causados pela quantidade de bruxas num único lugar, ou apenas de uma, como a minha situação. E mesmo que ele tente liquidá-la de outra forma, no mesmo momento uma desgraça acontece a este humano.
- Você pode fazer chover? – Auguste estava assombrado, admirado, tudo ao mesmo tempo, mas nem um pouco enojado ou com medo.
Ammaleth sorriu, engoliu em seco, fez um estalo com os dedos indicador e polegar da mão direita, então semicerrou as pálpebras e retornou a abrir os olhos, que pouco a pouco começavam a explicitar as veias na córnea. Um trovão fez tremeluzir os lampiões e assustar os habitantes de Clevelier afugentando-os para dentro de suas casas. Auguste se ergueu num pulo e apressou os passos para a janela cortinada do quarto. Arredou o pano esmeramente costurado e pôde ver um belo sol ainda laranja e redondo do alvorecer envolta em nuvens cinzas e carregadas, causando um efeito de vários arco-íris quase caleidoscópicos nas montanhas além das fazendas e gados. Ammaleth apenas o olhava no vão da porta, e passado alguns minutos apenas viajando na canção da chuva e da alvorada, ele virou-se para ela e disse:
- Isso é lindo.
Então a beijou e a amou.








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Black Cherry
Arte: Nicole Absher

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