Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Segunda Pele


Não costumava ser assim.
Pietro, certa vez, decidira uma coisa importante: ele não mais gostaria de continuar parado e sem nada. Ele queria uma mudança, uma mudança bem brusca na sua vida, algo que ele fizesse e depois de algum tempo pudesse dizer: realmente, consegui mudar!
Pietro morava numa cidadezinha sem grandes alardes, sem muita coisa, algo como uma ilha à parte do mundo. Era uma cidadezinha mórbida, densa, seca, pesada. Com um sol que parecia existir apenas para iluminar, e não para aquecer. Ele vivera tempo suficiente naquele lugar o qual nenhum dos seus sonhos ainda se realizara. Ele deveras era amante da atuação e, consequentemente, do teatro.
Desde muito pequeno sempre foi assim. Enquanto outras crianças, vestidas de princesas e príncipes, bichinhos e guerreiros, bagunçando e rasgando os cenários, chorando e pedindo pela mãe no meio das apresentações, Pietro estava alí, encarnando seu personagem com vivacidade, voracidade, ele dava alma e movimento mesmo na época que ainda não sabia o que isso significava. Na época, isso era deveras ignorado. Os pais subiam no palco para socorrer seus filhinhos mimados, as professoras davam um último adeus ao público e fechavam as cortinas, e Pietro jogava a espada no chão, arrancava sua fantasia com uma fúria anormal para um garotinho da sua idade, e esperava as duas horas de atraso da sua mãe para vir buscá-lo e se desculpar, pela milionésima vez, que infelizmente não pôde assistir seu espetáculo.
Houve ainda uma época antecessora ao descobrimento de Pietro pelo teatro, que se tecia com a presença contínua de um homem grande, alto, com o rosto bondoso. Mas Pietro pouco se lembrava dele. Ele bem que se esforçava, mas a lembrança daquela pessoa ficara tão desbotada com o tempo que tudo o que ele pôde salvar foi uma grande sombra na porta de uma casa.
Ele recorda também que, esta sombra segurava uma coisa pesada nas mãos, e gritava sem parar para outra voz que esbravejava. Uma voz aguda e rouca, sofrida e desgastada, mas que, com toda a força da sua vibração vocal, deixava aquele lugar pequeno para tantos gritos.
Foi numa dessas vezes, embora não sem muita compreensão de si mesmo, que ele passou a amar os sonhos. Nos sonhos ele encontrou o silêncio e a paz que desejava, ou então, vozes calmas e aconchegantes. Pietro tornara-se o rei dos seus sonhos. Com sete anos já dominava sua mente para o mundo onírico, e criou um mundo só dele. Era um mundo assim: cheio de países e continentes, e ele tinha seu próprio dragão particular para se locomover por todo canto que quisesse, morava num palácio feito de doces e o concreto era de açúcar, além de possuir, é claro, várias concubinas para lhe servir alimento, roupas limpas, e uma banheira gigantesca onde ele pudesse nadar o dia inteiro, ou enquanto seus sonhos durassem pela madrugada.
Quando acordava, ía para a escola, lanchava numa escadaria que ninguém usava, voltava para a sala, esperava a campainha bater enquanto desenhava sua coleção de dragões e navios, e esperava as duas horas de atraso de sua mãe para vir buscá-lo.
Pietro tinha o rosto redondo, os cabelos escuros e cacheados nas pontas, olhos sobressaltados e caramelados, sardas nas bochechas, um narizinho arrebitado e um queixo proeminente que fazia seu rosto parecer ainda mais um círculo. Não era uma criança feia, mas era maltratada. Certa vez, sua mãe esquecera de vesti-lo adequadamente para ir à escola, e Pietro foi com sua lancheira e seu pijama para a sala. Foi por aí que começaram a notá-lo, e ele ganhou seu primeiro apelido: Pietro Cara de Bolacha.
Pietro não gostara nem um pouco do novo nome, e passara a se tornar uma criança arrogante e mesquinha por isso. Não oferecia mais lanche para quem não trazia, não fazia trabalhos em dupla e tampouco emprestava o lápis-de-cor, apesar de possuir muitos. Vivia deveras de cara amarrada, expressão única e silêncio constante. Na hora de bater as fotos da turma, era sempre deixado para trás, perto das sombras para que ninguém se desse ao trabalho de vislumbrar seu rosto redondo e, segundo a turma, feio. Até mesmo quando a turma se agrupava, parecia haver nele uma espécie de repelente que afastava seus coleguinhas pelo menos a dois palmos de distância. Logo, sua cota de apelidos aumentou: Pietro Cara de Bolacha, ou o mais novo, Bolacha Fedida, ou pior ainda, Pietro A Bolacha de Queijo.
Era uma turma criativa, o próprio Pietro admitia isso, mas de uma hora pra outra ele foi transferido para uma turma nova. Entrara na quinta série e uma única pessoa deu a devida importância para a sua presença. Uma menina chamada Serafina.
Serafina era disléxica, portanto, era mais fácil para ela chamar Pietro de Pedro, ou Peto. Uma quantidade de pronúncias que ambos decidiram oficializar apenas com Pê. Serafina tinha os olhos escuros, a boca pequena, a face oval, a pele parda e os cabelos de um castanho comum, embora excessivamente lisos. Tinha os olhos pequenos, os cílios longos e as sobrancelhas grossas. Na opinião de Pietro, era muito bonita, obrigado.
Com Serafina, Pietro pouco se importava com a quantidade de amigos que poderia fazer, ele afinal só se importava com ela numa sala com trinta e sete alunos. Serafina ainda simpatizava com outras pessoas, era amável com todos e ajudava os mais lentos em análises sempre que podia. Algumas meninas lhe perguntavam: “por que você vive com esse garoto? Ele é tão chato! Você deveria sair conosco!”. E Serafina lhes respondia: “pois eu adoraria sair com vocês! Podemos marcar um cinema?”.
Dias após o tal cinema, quando as outras meninas percebiam que Serafina jamais se despregaria de Pietro, desistiram da inclusão de pô-la em seus grupos, e na sétima série Serafina era uma aluna tão aplicada, estudiosa e excluída da turma quanto Pietro.
Ela passava praticamente todas as tardes na casa do melhor amigo, após saírem da escola. Almoçava, lanchava, e depois de uma hora após o jantar, ía embora para sua casa.
A mãe de Pietro a adorava, tratava-a como uma filha que nunca teve, lhe comprava roupas, perfumes e maquiagem no natal e nos seus aniversários, e até em épocas totalmente fora de datas comemorativas. Pietro não sentia ciúmes, ele preferia HQ’s, roupas ou um skate novo, e a presença imprescindível da mãe nas suas apresentações no teatro da escola, atitude que ela logo se esforçou para melhorar, numa espécie de equilíbrio com o cuidado que tinha com Serafina e a atenção que obrigatoriamente pertencia a ele.
O pequeno mundo confortante que Pietro construíra na vida real (e agora, com catorze anos, já não fugia tanto para o seu universo onírico audacioso) foi perturbado e rompido com a chegada de duas sombras. A primeira, a sombra que espreitava Serafina por toda sua vida, e Pietro até então nunca soubera da sua existência. Serafina, se não dissesse nada, costumava ser um mistério até para si mesma.
Foi quando, numa manhã de provas, Serafina se ausentou. Serafina muito raramente faltava nas aulas, além de absurdamente estudiosa, era absurdamente pontual. Após o término, Pietro arrumou a mochila e saiu a passos largos da escola. A tarde estava nebulosa e trazia uma ventania dançante, daquelas que sacodem os galhos mais altos e frondosos das árvores, levantam uma leve camada de poeira nas ruas, trazem horas cinzentas ou obscuras. Quase como se tivesse aberto um baú proibido, com um vento proibido, para uma vida proibida.
Pietro pegou o endereço no papel que Serafina de muita má vontade lhe dera, e procurou a rua que levaria a sua morada. Era difícil entender o motivo de ela nunca o convidá-lo a ir à sua casa, apesar dele nunca ter questionado o porquê. Achava que, quando fosse o momento certo, Serafina lhe convidaria e ele poderia conhecer sua família. Afinal, eram melhores amigos, e Serafina já era praticamente uma filha para sua mãe. Mas o momento certo jamais chegou, e jamais teve chance de chegar. Quando questionada sobre sua vida em casa, Serafina costumava fechar a cara e dar um gelo em Pietro até ele aprender a não perguntar sobre isso para ela. Havia muita paciência em Pietro para com Serafina, mas só porque ele a amava demais e gostava demais de tê-la em sua vida, e decerto aprendeu a conviver com suas manias, gestos, silêncios e falhas. Afinal Serafina era uma daquelas raras pessoas que compensava seus defeitos com alguma coisa mais especial, mais memorável. Ele se habituou a pensar que Serafina deveria ser uma constelação antes de descer na terra. Pois oras! As constelações costumam ser imortais. E meteoros? Meteoros se desintegram, não são como as constelações, que permanecerão sempre alí. É sempre mais fácil amar os meteoros.
A casa de Serafina estava uma bagunça, parecia que a ventania vinda do céu nebuloso estivera alí pregando suas peraltices. Ele subiu as escadas e achou um quarto com paredes pintadas de um rósea-claro e o carpete poluído de roupas e vários objetos que pareciam termômetros mais longos. A cama estava sem lençóis e a parte de cima da janela, quebrada como uma das portas do guarda-roupa de frente para a cama. O espelho também não escapara.
É mais fácil também, encontrar aqueles que se ama quando se os conhece de verdade.
Pietro abriu a única porta inteira do guarda-roupa e lá estava Serafina encolhida em suas roupas, ela não fazia ruído algum, mas ele sabia que ela estava chorando. O choro de Serafina não era o habitual choro feminino, com gemidos agudos, gritos, a voz enrouquecendo e soluços de segundo a segundo. Na verdade, nem parecia estar chorando, era melhor dizer que estava dormindo. Ele pensou então que ela se controlava terrivelmente para não gritar, pois se gritasse, poderia nunca mais parar.
Serafina não ergueu os olhos nem se importou com o fato de que acabara de ser flagrada. Apenas disse com a voz arrastada e abafada pelos joelhos no rosto:
- Quero ir para o meu lar.


Pietro não questionou, não pensou em mais nada. Mas é claro que aquele não era o seu lar, pois se fosse, não estaria escondida num guarda-roupa quebrado num quarto destroçado chorando sabe-se-lá-por quê. Não pediria pelo seu verdadeiro lar.
Ele a ergueu pelas axilas e a levou escada abaixo. Serafina só percebeu que estava na entrada de sua casa quando Pietro parou para dar uma última avaliada no lugar. E ela enfim levantou a cabeça.
- Ele vai m-me matar.
- Ele quem?
Ela olhou para os cantos da casa como se esperasse que algum monstro surgisse do nada pronto para atacá-la. Ele também olhou, procurando pelo monstro.
- Ele n-não vai querer que eu o tenha, vai m-me mandar matá-lo e depois vai me matar.
Pietro carregou Serafina até o vão da porta e, na pequena escadinha da entrada, Serafina se desvencilhou dele e segurou sua mão. Ele sussurrou alguma coisa como “não vou deixar nada acontecer com você”, e ela apenas assentiu com a cabeça. Foi quando ele entregou-lhe um lenço que ela sorriu, e foi quando chegaram em casa que uma coisa engraçada aconteceu, parecia que, mesmo de longe, ela havia sentido. A mãe de Pietro dera um abraço forte na menina, tirou suas roupas esfarrapadas com carinho, deu-lhe banho, roupas, e dormiu abraçando-a como um ursinho de pelúcia. Pietro não sentiu inveja, gostava de ver as duas assim, tão juntas.
Desde a primeira sombra, Serafina passou a viver com Pietro e sua mãe. Uma semana se passou até ela ser levada pela ambulância na porta de sua nova morada, sangrando como uma fonte escarlate, perdendo o filho de seu padrasto como quem perde uma maldição. A mãe de Pietro ficava pela manhã no hospital ao lado de sua nova filha enquanto ele estudava, e Pietro ficava pela tarde e pela noite enquanto sua mãe trabalhava. Mais tarde, Serafina não se esqueceria de retribuir o gesto. Certa vez sonhara, há muito tempo quando Pietro e Tommy ainda não haviam entrado em sua vida, que uma pessoa muito especial a ajudaria no momento em que ela afundasse, e sua missão naquela vida seria esperar e fazer o mesmo por essa pessoa quando o pior momento chegasse. Ela jamais deveria ignorar a mensagem desse sonho.
Invernos e verões voaram para longe até que Pietro e Serafina se perceberam adolescentes. Mais uma escola nova, mais um novo amigo.
O nome dele era Tommy, embora não se tivesse certeza da sua origem, se uma constelação ou um asteroide. Como Serafina, ele mesmo mantinha um mistério de si mesmo, algo que Pietro não gostava muito, apesar de ter sido obrigado a se acostumar. Tommy era dois centímetros menor que Pietro, tinha os cabelos escuros e lisos, mas notoriamente bagunçados, o rosto impassível, porém belo em sua totalidade, a pele clara como um céu afogado em nuvens, os olhos castanhos, mas eclipsados num hazel esverdeado, o corpo magro e os lábios róseos e finos, e um nariz tão infantil quanto o restante do rosto. Pela pele branca e pelo frio constante daquela cidade, vivia com as bochechas enrubescidas e um cachecol preto no pescoço. Tommy sempre dizia que detestava o frio, mas ninguém soube explicar o porquê de ele continuar vivendo alí.
Quando Serafina lhe perguntou de onde que ele havia herdado aquela beleza ingênua e encantadora, Tommy respondeu que de uma família que vivera naquela mesma cidade, cujo filho de sua tia falecera na banheira com uma overdose de heroína. Na verdade, era só a família da sua tia que ele conhecia. Seus pais eram o mistério e o carma da sua vida, e ele vivia com um de seus primos distantes num apartamento perto da escola. Seu primo cozinhava extremamente mal, o que fê-lo aprender por conta própria os segredos da arte de temperar uma comida. No apartamento do péssimo cozinheiro, eles dividiam os trabalhos: Tommy fazia a parte doméstica, e ele pagava as despesas. Era uma ótima divisão, porque ao menos Tommy deleitava de todo o dinheiro dos seus bicos, sem se preocupar se teria que guardar para comprar algumas coisas essenciais, de higiene ou alimentícias.
Logo, quando a mãe de Pietro estava ocupada demais no trabalho para voltar em casa e fazer o almoço, era Tommy quem o fazia. À primeira vista, a mãe de Pietro não gostara da ideia de ter aquele garoto de aparência dissimulada em sua morada (mas isso só porque Tommy gostava de olhar por tempo suficientemente incômodo para Serafina, que era sua filha de criação mais protegida até do que o próprio Pietro, o biológico. Mas Serafina pouco se importava com os olhares de Tommy, e Pietro mal sentia ciúmes de sua mãe, imagine sentir ciúmes daquela criatura tão fofa e sorridente?), mas com o tempo Tommy obteve sua confiança e seus beijos de bom dia e boa noite.
E a primeira sombra retornou.
Um final de tarde com um sol vermelho e uma ventania mágica que passeava pelas copas das árvores fazendo-as dançar para lá e para cá numa sincronia quase perfeita, tal uma dança de teatro que não para de cativar. Tal os bailarinos que fazem a única coisa que sabem de melhor em suas vidas. Dançar, rodopiar, pular, lançar as folhas e a poeira nas ruas, assoviar para um pequeno mundo de coisas belas e intangíveis. Serafina, entre Pietro e Tommy, pedia para o adolescente de rosto infantil que fizesse pão de alho, pois ela estava com um desejo acima da sanidade permitida de degustar a opção, e Tommy apenas lhe sorria e lhe aconselhava então a comprar os ingredientes, enquanto Pietro olhava para trás sem parar. Alguma coisa o estava perturbando desde o momento em que chegou na escola pela manhã.
Era uma sombra.
A porta do lar estava arrombada, e o lar, bem semelhante à antiga casa de Serafina. Pietro e Tommy pararam para avaliar os estragos, e Serafina continuou a trajetória pelo corredor que levava ao quarto de sua primeira mãe. Quando os dois foram acompanhá-la, era um pouco tarde. Serafina entrou no empório da dor, seu padrasto a puxou pelo braço esquerdo com força e deslocou seu ombro, enquanto a mãe de Pietro gritava horrorizada para este parar. Tommy notou, um dos seus olhos estava roxo e inchado, o que fê-lo borbulhar de raiva.
- Saia daqui! Largue a minha filha!
- Sua filha? Sua filha? Ela é filha da sua irmã, a minha mulher!
- A mulher que você matou!
- A mulher que você usurpou a vida! E pare de gritar, sua puta asquerosa!
- Não fale assim com a minha filha!
- Pare de chamá-la de filha! Ela não é tua filha!
A mãe de Pietro pôs a mão na boca, não por sobressalto, mas numa linguagem corporal significando que estava com medo de revelar alguma coisa.
- Sim... Ela é... – ela respondeu com a voz abafada, retomando o fôlego nos soluços incansáveis. – Minha irmã não podia ter filhos.
Tommy se espreitava por algum lugar, Serafina chorava dolorida e agachada num canto, com seu padrasto ainda segurando seu braço de ombro deslocado, e Pietro estava, de alguma forma que ele não saberia explicar, com a vista turva. Ele tentava ver Serafina, tentava enxergá-la naquele pequeno caos compactado. A sensação era que ela estava alí, mas ao mesmo tempo longe, como se fosse um sonho mal feito da mente.
Chame, chame por ela.
- Serafina!
O padrasto de Serafina olhou furioso para Pietro, Tommy surgira com um vaso pesado e batera-lhe na cabeça fazendo-o soltar a menina negregada. Pietro foi-se do quarto com Serafina e Tommy se abaixara, pois o homem descontrolado e ensanguentado sacara uma arma para o corredor onde a penumbra de Serafina ainda se encontrava. A mãe de Pietro correu e levou um tiro na espinha dorsal, e Tommy terminara de quebrar o vaso na cabeça do monstro, fazendo-o desmaiar de uma vez.
E a primeira sombra, então desapareceu da vida de Pietro e Serafina.

Serafina nunca falou a respeito do ocorrido com Pietro ou Tommy, na verdade, ela parara de falar por completo. Tornara-se então, mais do que misteriosa, uma criatura cálida, etérea, o próprio silêncio ambulante. Resultado de ter saído do teatro da escola que fazia com Pietro e começado a entrar no mundo do balé. Com o tempo, tornou-se seu emprego pela manhã, e o restante do dia era dedicado aos cuidados de sua mãe paraplégica. Mas a mãe estava morrendo com uma lentidão tortuosa que parecia infinita.
Numa manhã de outubro, acordara cega, e caíra da cama desesperada procurando pela voz de Serafina (pois Serafina só entregava sua voz à sua mãe), se arrastou pelas escadas até que a bailarina, que estava degustando uma rodela de laranja, se ergueu da mesa para socorrer a velha mulher catatônica.
Numa tarde de dezembro, começou a falar mais devagar que o normal, já não se mexia tanto para fazer companhia às flores de sua varanda. E era terrível para Pietro, depois de um dia cheio de expressões e vida e pulos e danças e cantos, voltar com Tommy do teatro e voltar também para o mundo real. Sua mãe alí, cem anos desgraçados num corpo de quarenta e dois. Tommy costumava fazer pequenos gestos como tocar no seu ombro, segurar sua mão com força, dar-lhe um beijo na bochecha e dizer que tudo iria ficar bem, que um dia ela se recuperaria de tudo aquilo, que um dia seria sol para todos.
Numa noite de maio, a época em que era outono para aquela cidadezinha, a mãe de Pietro e Serafina tornara-se um vegetal completo. Pietro trancou-se no seu quarto e Serafina não dormiu, mesmo com a insistência de Tommy de que ela poderia descansar enquanto ele tomava conta da mãe, ela não saiu do seu lado. Expulsou Tommy com uma resposta ríspida, trancou a porta e ajoelhou-se ao seu lado até o dia amanhecer, e ela não poder ouvir mais a respiração compassada e tranquila da mãe.
“Era até um milagre ela ter vivido tanto”, os médicos disseram. Mas Serafina, e apenas ela, sabia. A sua mãe ainda estava viva porque ela queria, porque ainda desejava ver sua filha mulher crescer e, quem sabe, ter a oportunidade de conhecer seus netos. Um ano se passou e ela se cansou, até entregar-se à morte num inverno até outro outono.
Pietro já quase não dormia em casa. Fazia questão de passar o dia fora, no teatro ou em qualquer lugar, e já não conversava mais tanto com Tommy, Tommy que já estava terminando de se graduar em Artes Cênicas, um ano depois de Pietro. Tommy então passou a confidenciar mais sua vida com Serafina, que sempre lhe aconselhava que o momento certo do fim do luto de Pietro acabaria, e que, mesmo que Pietro estivesse insuportável, ele ainda deveria permanecer ao seu lado.
Foi quando Serafina, agora também saturada da frieza de Pietro, discutiu ardentemente com ele no seu quarto e, com um aceno de mão do homem congelado, ela saiu da casa da mãe para sempre.
Mas Pietro ainda não havia desistido de Serafina. Ele atendeu sua chamada e foi buscá-la num beco ao lado de uma boate quando ela lhe ligou no clímax do medo e da ausência. Alguns meses se passaram e Pietro e Tommy já não passavam tanto tempo fora. Costumavam cuidar de Serafina e trazer-lhe o coquetel enquanto ela, no mesmo estado que a mãe se encontrava numa cadeira de rodas de frente para a varanda. Mas ela ainda sentia as pernas para caminhar, só era fraca demais para isso.
- Vocês não precisam fazer isso por mim. – ela dizia. – Eu não mereço o amor de vocês.
- Merecendo ou não, nós continuamos a te amar, e pare de ser tão teimosa. – Tommy lhe respondia.
E numa noite tão parecida quanto a última noite da mãe de Pietro, num alvorecer em que se podia ouvir a ardência na pele e o calor em cada alma, o último filho subiu as escadas e trancou-se no quarto. Tommy não deveria perturbar, afinal ele nunca perturbava, e Pietro nunca atendera a porta.
Mas Tommy sentia que seria errado deixá-lo trancado alí. Ele bateu e bateu até que Pietro, com o rosto inchado e amassado, o atendeu e o abraçou como um menininho que acabara de encontrar a mãe perdida no supermercado. Tommy deitou-se e Pietro também, de frente para ele, com seu nariz frio encostando-se ao dele, seus olhos inchados admirando a respiração que descia sobre seus lábios secos refletidos na luz da lua. Quando Tommy lhe beijou, Pietro se ergueu da cama e deu um soco em sua face, indo embora e desaparecendo indeterminadamente. Tommy passou a pensar que estragara tudo, mas o teatro nos últimos dias e os preparativos para o enterro de Serafina estavam tomando tanto seu tempo que ele não viu as semanas fugirem entre seus dedos. Pietro não foi ao enterro.
Passaram-se dois meses até a grande estreia de uma peça a qual ele se entregou de corpo e alma. Ele interpretaria o filho de uma ninfa que se apaixonara perdidamente por um semideus, e deveria ajudar sua mãe a não entrar em autodestruição, entregando-se ao tal semideus como oferenda e desculpas pelo insulto de ter surgido em sua vida. O semideus era incorporado por um amigo de longa data no teatro de Tommy e Pietro, mas no dia da estreia ele misteriosamente adoecera, e quando Tommy viu Pietro no palco como um perfeito semideus pronto para enlaçá-lo, Tommy ficara mudo e esquecera-se da sua fala por dois minutos, e Pietro correu para a sua presença muda, a sua segunda sombra, puxou-o com força pela cintura, ameaçou-o de morte, e o beijou.









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Andrew Oliveira
Artes: Hikari Shimoda

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