1674
Radamathys se aproximou de um de seus súditos, um homem gigante e escuro, massageou seu peitoral rígido de olhos fechados, até ter a precisão certa e penetrar seus dedos grandes e pontiagudos dentro deste, furando sua caixa torácica e tirando de lá um órgão negro e pulsante, uma bola fedorenta na palma de sua mão.
O súdito caiu como um boneco de pano no chão, transformando-se em uma fumaça escura logo em seguida.
Radamathys sussurrou alguma coisa para si mesmo, apertou a bolha viva entre as duas palmas e então toda a floresta pareceu chiar, uma luz branca e que crescia disformemente pareceu tomar conta de cada pedaço dela, fazendo-a desaparecer por completo em poucos minutos, até tudo tornar-se branco e sem mais nada, a não ser o causador daquilo.
Radamathys, com o sangue do órgão, o coração de seu súdito, pintou um crucifixo no chão, deitou-se sobre ele e adormeceu.
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16.740 – Tempos dos Reinos-Arcanjos.
Acordou com uma chuva de farfalhares, asas incansáveis para lá e para cá no que parecia ser um alarme de urgência. Ele se ergueu no mesmo instante em que um anjo, louro, alto, belo e nu, apontava uma lança feroz para o seu pescoço.
- Como ousas invadir o reino de Medraque, demônio?
- Aponta esta lança para ti mesmo, anjo arrogante. Quero falar com teu superior.
O anjo fez uma careta de ódio, e então voou em direção a um outro anjo, forte e maior que ele, um guardião que pairava no lado esquerdo de uma grande porta dourada e prateada. Radamathys, enxergando com mais lucidez, distinguiu um lugar onde o sol era morno e vermelho, o horizonte púrpuro e um infinito campo de trigo. Aliás, naquele reino, era só o que havia: o horizonte, a porta, os anjos e o campo.
O anjo grandalhão entrou na porta, fazendo um suave aceno de cabeça para o guardião do lado direito, e então se passaram alguns minutos até ele voltar com o anjo rancoroso que quase enfiara uma arma na garganta de Radamathys. O guardião voltou ao seu posto e o anjo carrancudo voltou-se para o demônio invasor.
- Certo, demônio. Arcanjo Medraque deixará tu entrares e falares com ele, mas com duas condições: a primeira, diga teu nome.
- Radamathys.
As asas do anjo pareceram tremeluzir sob a luz daquele pôr-do-sol eterno, que entregava mais penumbras para aquelas criaturas nuas e falsamente vulneráveis do que claridade.
- Então, Radamathys, eis a segunda condição: diga-nos quem foi a primeira bruxa que pisou na Terra humana? E qual a sua história?
Radamathys se surpreendeu com a pergunta. Por um instante achou que teria de enfrentar anjos guardiões musculosos e praticamente imbatíveis para chegar à Medraque, mas se esqueceu de que anjos em geral não eram exímios lutadores. Lutavam para defender, apenas para isso, nunca para provocar ou competir.
- A primeira bruxa foi Eva. No momento em que Deus começou a moldá-la na costela de Adão, Lilith, furiosa, rogou uma maldição sobre aquela forma que a plagiava: a mulher saberia mais do que o homem, seria mais inteligente que ele, e infinitamente mais superior. Eva então passou a perceber que o Éden era apenas o Paraíso, nada daquilo era palpável e real. Era tudo uma grande mentira de Deus. Então, com seu poder herdado pela nossa mãe Lilith, chamou pelos animais e pelo sol, filhos de Corona Solaris, furtados por Deus para Deus assim ser a autoridade maior na Terra. Mas Deus não passava de um invejoso. Percebendo que Eva era o primeiro fruto do Espírito Comum com o Espírito Místico, resolveu transformar todo aquele Jardim em algo real no mesmo instante em que Eva já iria subir ao Alto Degrau para questioná-lo.
“Roubou um sol do campo de Corona Solaris, naquele mundo em que ele até hoje reside em paz, e germinou no seu universo. Fazendo o mesmo com um pouco da criação de cada deus nos milhões de universos, fez o seu próprio.”
“E quando Eva, pesarosa, já havia gastado toda a sua energia, era tarde, ela não poderia provar nada, ela não poderia mais ser superior ao homem, pois já era carne e osso. E então, Eva chorou por dias, até a própria Lilith disfarçar-se de Serpente para ajudá-la a resolver todo aquele problema catastrófico. Eva a obedeceu e comeu do Fruto feito por Corona Solaris, que na Terra Humana se chama Huracán, mas quando é Huracán, não há muito a se fazer por aqui.”
“Eva, sendo a mais inteligente e mais poderosa, aconselhou Adão, um homem bobo e ingênuo, a fazer mesmo. Adão fez, e Deus, vendo que sua ideia utópica de paz eterna havia dado errado, expulsou os dois do Éden Real. Deus, cansado, mais nada fez para o ser humano. E nunca mais fará.”
“Eva, porém, não havia parado sua missão. Ela sabia que teria de ter uma filha para permanecer na Terra seus poderes herdados por Lilith e Corona Solaris, mas nas suas duas tentativas tudo o que obteve foi Caim e Abel, irmãos ignorantes e que se destruíram em pouco tempo, por serem homens e filhos de Adão, outra criatura que só pensava em guerra e sangue. Ela nunca conseguiria ter uma filha bruxa, era mais uma barreira de Deus.”
“Foi quando, numa época em que várias famílias já começavam a povoar a Terra, Eva, uma velha e agradável senhora,vendo aquilo como única saída, despedaçou sua alma e entregou um pouco desta para cada mulher poderosa em determinada dinastia. Assim surgiram as Bruxas Escuras e as Bruxas Claras. As duas maiores adversárias. Nenhuma completamente má e nenhuma completamente boa.”
Radamathys soltou uma respiração de cansaço e chateação. O anjo ainda o olhava espantado, até deixar cair a lançar perigosa das suas mãos leves e macias, e sair do caminho do demônio.
Radamathys esperou um segundo de hesitação por parte dos guardiões para entrar, que empurraram a porta colossal e espessa apenas com seus braços direitos. O amante de Archiri adentrou o lugar sem escrúpulos. Era uma mansão gigante, pontiaguda, com pilares extensos como se fosse uma catedral do tamanho de uma cidade. Havia relógios em todas as torres do lugar, mas nenhum sinal de vida animal a não ser o farfalhar permanente das asas dos anjos.
A mansão era repleta de tapetes vermelhos, pinturas que iam até os tetos, abóbadas onde flutuavam estátuas de granito e mármore de Cristo: erguendo as mãos, sorrindo, abraçando uma criança, sofrendo. Radamathys poderia se apaixonar por ele naquele mesmo momento, apenas admirando aquelas esculturas tão realísticas, mais realísticas do que qualquer artista mortal pudesse ser capaz de construir. Naquelas obras, o rosto de Cristo era pueril e sem barba, sem pelo algum, a não ser os cabelos castanhos e levemente cacheados chegando até os ombros. Cristo poderia se passar por uma mulher sem receios. Qualquer um acreditaria, até Deus.
Radamathys, pensando em androginia, por conseguinte foi recebido por um anjo adolescente, mediano e musculoso, mas não tanto. O anjo o fitou rapidamente dentro dos olhos e então abaixou a cabeça, enrubescido.
- Senhor Radamathys, me chamo Reyel. Sou o porta-voz de Medraque, e irei levá-lo até ele.
- Sim, Reyel.
Reyel tinha o rosto simples, todavia de uma aura estranha e até sensual. Como todo e qualquer anjo ou arcanjo estava nu, o sexo exibido e flácido, virgem. Radamathys sentiu uma eletricidade quando Reyel segurou sua mão com convicção e foi guiando-o por corredores sinuosos, estreitos, longos, retangulares, circulares, até enfim chegar a um quarto extenso e sem tetos, sendo iluminado apenas pelo sol sangrento e o refletir dourado dos campos de trigo nas vidraças das janelas abertas. Reyel o abandonou e fechou as portas, ele pensaria naquele anjo mais tarde.
- Radamathys! O que o traz aqui, invadindo meu reino? – Medraque enfim surgiu, um anjo alto e forte, quase tanto quanto os guardiões, o rosto másculo e sombreado por uma barba rala, os cabelos longos e cacheados, ruivos e fogosos como o sol que o resplandecia. No ventre, uma trilha de pelos vermelhos abaixo do umbigo e da barriga rígida e malhada, chegando a um pequeno monte logo acima do órgão. Suas asas eram maiores do que qualquer anjo daquele reino, ele afinal era um arcanjo, e no seu ombro havia apenas um manto branco de seda fina, que não fazia diferença alguma a todo aquele exibicionismo. Medraque ergueu as asas e, junto com os braços, abraçou o corpo hesitante de Radamathys.
- Da última vez que estive aqui, tu não eras tão rico e grandioso quanto estás agora. – Radamathys sorriu para ele, como velhos e bons amigos. O que na verdade, era um engano.
Medraque gargalhou alto, espontâneo e intimidador.
- Da última vez que estivestes aqui, eu tive que te ajudar a voltar para teu mundo. E se não me engano, quase me tornam um mortal qualquer por causa disso.
- Se estavas tão perto de decair desse jeito, por que agora és um arcanjo?
- Faz um século, Radamathys. Tive que participar de uma guerra no reino de Hiranyagarbha para conseguir subir de posto.
- Uma guerra?
- Sim, uma guerra. Mas, tu ainda não me respondeste. O que fazes aqui?
- Vim roubar tuas asas, meu belo anjo vermelho, Medraque.
O sorriso gracioso e viril de Medraque desapareceu no mesmo instante. Medraque, como Mary Donna fizera a apenas algumas horas atrás, desapareceu nas penumbras do quarto quadrilátero.
- Ah, Medraque! Tu não sabes o quanto estou cansado desta brincadeirinha de se esconder!
- Vamos brincar mais um pouco, então.
A raiva de Radamathys por ter sido enganado pela bruxa Mary Donna voltou no mesmo instante, fazendo tremer seus braços com toda a força que tinha. Radamathys fechou os olhos e deu um soco poderoso no chão. O “céu aberto” se desfez em milhões de pedacinhos, todo o sol, todo o campo de trigo, tudo desapareceu. Radamathys pôde ouvir exclamações de horror e medo dos anjos lá em cima quando viram que o reino de Medraque era feito de um vidro ilusório, e restara apenas uma noite extremamente estrelada no que antes era terra, campo, sol e horizonte.
Medraque reapareceu encolhido num canto, com as asas cobrindo seu corpo nu e deixando apenas seus olhos furiosos à mostra, fuzilando Radamathys.
- Como ousas destruir meu reino?
- Teu reino? Chamas isto de reino? Reinos são eternos, e não feitos de mero cristal, caro Medraque!
E antes que Medraque pudesse desaparecer novamente, Radamathys pulou sobre seus ombros e enlaçou seu pescoço esguio com os braços fortes e cheios de veias. Medraque tentou lutar de todo jeito, agitando as asas e tentando repelir aquele demônio asqueroso do seu corpo puro e intocado.
- Sabias que apenas com as asas de um arcanjo, um demônio pode entrar no Paraíso? – Radamathys sussurrou em seus ouvidos, mordendo sua orelha de leve e dando beijos sinuosos no seu pescoço suado. – Tuas asas, tão belas e perfeitas, tão grandes e brandas, tão sedutoras e cheirosas, serão minhas, Medraque.
- Demônio estúpido. Terás de enfrentar mais dois arcanjos para entrar no Paraíso! – Medraque ofegou.
- Como?
- Achas que apenas meu par de asas pode sustentar teu peso? Um demônio forte como tu precisas de seis asas para adentrar no Paraíso, Radamathys! Precisas derrotar mais dois arcanjos! Hahaha! – Foi a última gargalhada de Medraque.
Radamathys segurou seu sexo com firmeza, incitando-o e deixando-o rígido, e masturbou Medraque. Quando Medraque sentiu o orgasmo, quando Medraque sentiu o sabor da carne, do prazer, do mal, Radamathys arrancou seu par de asas com as duas mãos, empurrando-o com os pés descalços e sujos de lama nas costas. Medraque esguichou sangue em todos os cantos, até masturbar-se novamente numa poça escarlate, rindo como louco, conhecendo todo aquele calor impulsivo, e desaparecer para sempre do seu reino de vidro.
Reyel, abduzido por medo e angústia após sentir a morte de Medraque, entrou veloz no quarto de seu mestre, vendo apenas Radamathys segurando o par de asas com a expressão sorridente e soturna. Radamathys rasgou seus ombros entre as clavículas e as escápulas com um punhal que ele tirara do pequeno bolso no seu tapa-sexo de couro, enfiou as raízes das asas com dor e agonia, sentindo aquela pureza terrível, e só se sentiu aliviado quando percebeu que as feridas estavam cicatrizadas, e que com apenas o piscar dos seus olhos ele poderia mover aquele par de asas magníficas.
Radamathys voou para cima de Reyel, que apenas chorou como uma criancinha. Ele o abraçou por trás, cheio do sangue de Medraque, e passeou suas mãos demoníacas pelo corpo esguio do anjo adolescente.
- Tu serás a minha entrada para o reino do segundo arcanjo, pequeno Reyel. Perdoe-me, não queria matar mais do que o necessário.
- Senhor Rada... Radamathys! Por favor, deixe-me ir. – Implorava Reyel, semicerrando os olhos e mordendo o lábio inferior, choroso.
Mas era tarde, Radamathys tirou sua cueca de couro de animal e colocou-se em Reyel, alí mesmo, em pé e com força, erguendo o anjo pelas pernas e colidindo-o contra uma parede, enquanto Reyel gemia e implorava – não mais para ser libertado, mas por perdão. Radamathys ejaculou dentro de Reyel, fazendo-o estremecer enquanto o abraçava com carinho, até morder seu pescoço feito um vampiro sedento e arrancar seu coração num piscar de olhos, penetrando sua mão no peitoral branco com eficiência, como ele fizera no íntimo do anjo há pouco tempo atrás.
Reyel sangrou e soluçou no chão, estuprado e não mais, nunca mais um anjo. Ele já estava desaparecendo quando Radamathys estourava seu coração segurando-o com firmeza e desenhando um crucifixo no chão. Como no ritual anterior, deitou-se sobre o desenho e despertou em outro lugar.
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O segundo reino tinha um céu púrpura-claro, colinas frias de norte a sul, uma lua nova branda e tão próxima que poderia se chegar até ela em apenas um pulo, pequenas estrelas formando formas e expressões entre os picos das montanhas, alces com mais de quatro metros mastigando a grama violeta e azul dos campos e terrenos abertos com apenas uma ou outra árvore, sem se intimidarem com a presença ardente do demônio intruso alí. Além da grama curiosa, havia uma quantidade incansável de flores abertas e grandes próximas às árvores e ao colossal muro de ferro e pontas que dava beleza e classe à mansão. A maioria delas também era roxa ou rósea, mas sempre com tonalidades claras e agradáveis, bucólicas.
Uma horda de anjos jovens e morenos surgiu nos céus de nuvens de areia, pousando próximos a Radamathys que ainda se erguia meio desnorteado, desejando ter se lembrado de vestir seu pequeno costume de couro para não se sentir tão exposto quanto estava naquele momento, explícito e banhado de sangue e suor.
Para sua surpresa, os anjos vieram sorridentes e receptivos, depositando uma coroa de pétalas em um dos seus chifres. Todos tinham os cabelos negros e a pele bronzeada, os olhos eram todos azuis. Na verdade, cada anjo tinha três olhos, mas aquele detalhe não diminuía em nada a beleza de cada um deles. A maioria jogava os cabelos grossos e lisos em cima da testa onde o terceiro globo ocular se mexia, causando um misto de beleza espantosa e poética.
- Quero encontrar Tzaphkiel.
- Nós o levaremos até ele, senhor Radamathys. – Disse o anjo mais próximo em seu ouvido, numa voz vibrante e curiosa, depositando a mão no ombro forte, grosso e duro do demônio.
Mas não o levaram. Radamathys foi guiado até um canteiro daquelas flores grandes e estranhas, porém belas, onde as colunas das estufas eram feitas de árvores raspadas até serem apenas troncos sem galhos, folhas e frutos, e os tetos eram revestidos de grandes folhagens e estranhas trepadeiras que se mexiam lentamente como que numa dança em ode à brisa gélida das montanhas.
Os anjos morenos o deitaram em almofadas brancas costuradas com fios de ouro e bordadas com desenhos enigmáticos e ondulados, hipnotizantes, e então começaram a beijá-lo, acarinhá-lo, tocar e apertar seus braços, pernas, barriga, peitoral, sexo, nádegas, coxas, cabelos, boca, olhos, nariz, orelha e chifres. Radamathys hesitou em vários momentos, até não ver saída e deixar aquilo acontecer. Ele afinal já estava vencido e seduzido pelos anjos de vozes persuasivas.
Beijou e foi beijado, lambeu e foi lambido, sugou e foi sugado, penetrou e foi penetrado. Era uma onda de prazer sem fim, pois quando ejaculava, já estava sendo excitado a enrijecer-se novamente. Abraçou, agarrou, apertou, montou em cima e foi montado, cavalgou feito louco, pulou, sentou e deixou sentarem, foi socado, pressionado, perfurado, castigado e esvaziado. Mas em toda aquela orgia ele sentia algo que não sentira quando penetrara em Reyel, aqueles anjos sabiam como fazer, sabiam o que fazer, e não tinham o cheiro e o gosto da pureza.
Eram demônios.
Radamathys bateu suas asas furtadas que escureciam mais a cada minuto, pelo fato de estarem num novo corpo, se afastou as agitando várias vezes até estar suficientemente longe. Os anjos morenos e incansáveis sorriram, suados e alegres, brincando com seu sêmen nos dedos e observando a densidade perolada com curiosidade, alguns até provando o seu sabor.
Num raio de segundo, as asas de todos eles escureceram como o breu, seus pequenos chifres foram revelados e seus rostos assumiram expressões de malícia... E missão cumprida.
Um alce gigante dos campos invadiu as estufas destruindo tudo à sua frente ao mesmo tempo em que os demônios pulavam e voavam para todos os cantos, foi em direção a Radamathys e abaixou a cabeça feroz, para logo erguê-la e penetrar várias pontas dos seus chifres grossos, pontiagudos e pesados no demônio surpreendido, imobilizando-o por completo entre uma parede. Radamathys vomitou uma quantidade absurda de sangue escuro, espesso e espumante em cima da cabeça do animal divino, mas ele pareceu não se importar.
Tzaphkiel, um arcanjo maior que o encorpado Radamathys e com asas mais extensas e poderosas que as de Medraque, entrou com empolgação, elegância e alegria no local destruído pelo animal descontrolado – ou controlado por ele. Tzaphkiel tinha uma barba louro-cinza como seu cabelo grisalho, mas tinha o rosto jovem e cheio de energia, o nariz pequeno, a boca sutil e os olhos grandes no rosto que exalava poder.
- Radamathys? O que fazes aqui com... – ele franziu o cenho, mas sem tirar o sorriso estampado no rosto másculo, enquanto avaliava as asas de Radamathys que ficavam mais negras e lustrosas a cada minuto – Estas asas roubadas de Medraque?
- Quero tuas asas... – Radamathys tossiu mais sangue.
Tzaphkiel soltou uma gargalhada estridente.
- Queres mesmo? Já percebeste o teu estado? Ou melhor, já percebeste que aqui nos nossos reinos tuas feridas não cicatrizam? Posso sentir o cheiro dos arranhões e das mordidas de Medraque no teu corpo, demônio insolente.
Radamathys tentou se mexer, mas tudo o que obteve foram os chifres do alce gigante entrarem ainda mais no seu corpo, ardendo nos seus ossos, artérias e órgãos como brasas incontroláveis na pele.
- Radamathys, eu vou te libertar, e tu sairás deste e de todos os outros reinos dos Arcanjos. Não importunarás mais ninguém nestas terras e irá embora sem completar o que quer que tu queiras fazer.
- Quero tuas asas... – Radamathys só conseguia tossir e escarrar o líquido escuro e metálico da sua boca cansada e sua garganta inchada.
- Radamathys, desista! – Tzaphkiel se enfureceu, causando uma ventania com as suas asas esplendorosas, quebrando e desabando quase tudo. Ele olhou por um mínimo instante para seus súditos demônios.
- Que patético... Um arcanjo que tem súditos do meu sangue!
- Criaturas mais fáceis de enganar, manipular e usar. Aliás, ainda acredito que demônios só surgiram para isso. Veja, não é ruim um arcanjo tão perfeito como eu ter súditos da sua raça, aliás, foi graças a eles que consegui capturá-lo e enviá-lo de volta para o seu devido lugar...
Radamathys fechou os olhos e forjou sua morte, expulsou sua alma do corpo com eficácia, flutuando para fora dos aposentos de Tzaphkiel enquanto este ainda falava com seu corpo imóvel. Voou até o lugar onde uma manada de alces gigantes mastigava as flores volumosas e os frutos de cores curiosas, entrando na cabeça de um deles, deixando-o totalmente inconsciente e controlando o seu corpo em direção ao castelo. Quando o alce voltou a si, estava perfurando as asas de Tzaphkiel e prendendo-o com violência contra a parede. Sentiu medo pelo ataque acidental ao seu senhor e virou a cabeça, rasgando as asas e a garganta do arcanjo narcisista, que caiu na poça do seu próprio sangue. O outro alce que prendia Radamathys também sentiu medo e angústia, recuou até ver o corpo do demônio alado caindo como um boneco de pano no chão e foi embora ao lado do seu igual.
- Demônio desgraçado! – Tzaphkiel falava numa rouquidão raivosa e desesperada.
Radamathys voltou ao seu corpo e se arrastou até onde o arcanjo se contorcia e escorregava na poça de sangue, enfiou o rosto nela e sugou como se aquilo fosse a sua única maneira de sobreviver. E era.
Quando terminou, se arrastou ainda mais até ficar em cima do arcanjo enfraquecido, virá-lo de costas e puxar suas asas com todo o restante de força que tinha e a força que havia obtido com o seu sangue.
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Era um céu meio escuro, de um azul tão forte e vibrante que doía nos olhos, mas não havia mais nada ali além de praias e mar, além daquele lugar sem nuvens e sol, porém claro o suficiente para Radamathys enxergar tudo com exatidão após acordar com os músculos doloridos e as feridas recuperadas.
Quando se virou para examinar todo o local, viu rochas e rochas banhadas com cachoeiras que faziam córregos em direção ao mar. Era um mar doce. Um ou outro querubim banhava sua pele pura e cheirosa, sentando nas rochas e abrindo as pernas para receber a água límpida em cada parte do corpo. Nenhum deles se importou com a presença de Radamathys.
Seu primeiro par de asas já estava completamente escuro como o seu sangue e sua alma, o segundo par – recentemente roubado – estava se acinzentando pouco a pouco. Era a vez do terceiro. Ah, o terceiro... Ele já estava tão exausto daqueles malditos anjos. Anjos falsos, dissimulados, manipuladores e cheios de desejo por sexo. Não eram nem um pouco diferentes dos seres humanos. Ao menos os demônios eram justos e honráveis.
- Raphael! – Ele chamou na sua voz grossa e desafiadora.
Um farfalhar de asas silenciou o mar, o vento, os pássaros e o chiado dos córregos nas rochas que se mesclavam à água azulada na frente daquela praia branda e fria. Raphael desceu na frente de Radamathys, gentil e educado, com um sorriso discreto, mas nada enganador.
- Radamathys. Fiel companheiro de Archiri, o que fazes em meu reino?
- Raphael, quero tuas asas. Vou roubá-las e, para isso, terei que matá-lo.
Raphael, forte, porém de altura mediana, menor que Radamathys, cabelos negros e lustrosos, o rosto pueril e sincero, os olhos levemente orientais e cobertos por cílios tão longos quanto dedos, apenas fitou Radamathys sem demonstrar sentimento algum, desejo algum por morte ou batalha contra ele. Raphael tinha as asas tão grandes quanto Medraque ou Tzaphkiel, mas sua inexpressão era tão perfeita e impermeável que era impossível dizer se ele concordava ou reprovava a atitude inconsequente de Radamathys invadir os três reinos que protegiam o Paraíso para conseguir um espírito puro que pudesse ser uma cria para sua amada Archiri. Radamathys estava tão cego com a ideia de raptar um espírito que mal percebeu que havia passado por centenas de anjos que tinham tal força impalpável. Mas se seu filho tivesse alma de anjo, seria possível transformá-lo num demônio quando nascesse?
- Sim. – Raphael enfim falou novamente, lendo os pensamentos mais íntimos do demônio raivoso, nu e ensanguentado à sua frente. – Mas ele terá lembranças de que foi um anjo, e algum dia, mais cedo ou mais tarde, se rebelará contra os pais. É mais fácil um espírito puro humano, este espírito jamais se recordará de sua vida anterior, e sua transformação em demônio será mais receptiva...
Raphael se aproximou sem escrúpulos de Radamathys, depositou a mão esquerda no peitoral grande, másculo e arfante, e passeou a direita no rosto suado. Radamathys não se mexeu.
- Radamathys... Lembra-te quando tu eras Ishmäel? Um bravo guerreiro nórdico que ansiava por uma Valhalla quando morresse? Mas tudo o que lhe deram foi um lugar escuro e fundo? O completo oposto daquele país em que tua religião pagã acreditava?
- Não me chame por esse nome... – Radamathys abaixou a cabeça, mas não tirou a mão carinhosa do anjo no seu rosto áspero pela barba.
- Vês? Ishmäel? Tu eras um humano. Um humano cheio de vontade, desejo, cheio de força. Um humano que poderia viver cem anos, mas viveu trinta. Caiu nos Reinos-Demônios, seu espírito não se elevou. Seu espírito era pesado demais.
- Meu espírito queria mais.
- É claro! – uma centelha de alegria se fez nos olhos do terceiro arcanjo. – Tu querias mais, tu querias aventuras que estes reinos parados e frios jamais poderiam te dar. É para isso que existe o inferno, para aqueles que não querem viver parados, para aqueles que querem sangue, guerra e carne. Tu sabes que apenas quem tem o espírito elevado são as crianças, seres humanos que morreram cedo demais. Idosos, adultos, adolescentes, jovens, todos vão para os Reinos-Demônios, por mais pura que sejam suas almas. É por tu teres conhecimento disso que queres enfiar-te no Paraíso e ter uma, apenas uma destas almas, e ser feliz com tua amada no reino de Tunridha. É querer demais?
Aquela mão quente e carinhosa, aquela voz calma e ritmada, aquela compreensão. Ele era mesmo um arcanjo? Medraque e Tzaphkiel eram tão demoníacos quanto ele, mas... Mas Raphael, que criatura era aquela que tinha uma aura fraterna e amorosa tão forte que fez Radamathys não se mexer em momento algum, exceto quando surgiu e se ergueu para observar seu reino?
- Não sou pai, não sou filho, não sou mãe, sou apenas um arcanjo. E não me compare a Medraque e Tzaphkiel. Eles já foram bondosos e honestos, mas a sede de poder os corrompeu, e os comparou a meros seres humanos. Sou o que sou. Não irei mudar por algo, alguém ou alguma coisa...
Mas Raphael parou, pois Radamathys estava chorando baixinho, suas lágrimas escorrendo entre os dedos das mãos macias do arcanjo.
Raphael, como que numa dança sutil e lenta, o abraçou, e suas asas se ergueram rígidas, tapando um sol que não existia no horizonte, sombreando com penumbras largas as rochas e os anjos que assistiam calmos e despreocupados ao diálogo dos dois.
Radamathys hesitou, mas logo se entregou ao abraço. Rodeou seus braços fortes abaixo das axilas da criatura menor e frágil, enquanto Raphael pousava o queixo sobre seu ombro enorme e o envolvia pelo pescoço. Radamathys o apertou mais forte, sentindo os cabelos negros e cheirosos ao lado do seu rosto, olhou para o mar metálico e os céus vibrantes e se pôs a chorar com vontade.
Os querubins que se banhavam nas cachoeiras das rochas se ergueram e foram para onde o demônio e o arcanjo pairavam, enlaçados e melancólicos. Fizeram um círculo envolto das duas forças maiores naquele reino e permaneceram silenciosos e parados até Radamathys perceber que alguma coisa iria acontecer.
- Vamos, faça-me descobrir a carne. Quero tornar-me demônio, quero ser do elemento fogo, e eu lhe darei as minhas asas. Agora, Radamathys, desenhe a linguagem da tua raça no meu corpo, prepare teu ritual e faça crescer chifres na minha cabeça. Radamathys, demônio triste, a minha salvação deste mundo insignificante...
Radamathys afundou o rosto nos cabelos de Raphael, enquanto este deslizava as mãos agradáveis nas costas largas e rígidas, mordiscando seu ombro e seu pescoço, sentindo o sabor do suor do demônio. Radamathys tocou em cada parte do corpo angelical, sentindo o peitoral voltar a arfar e seu corpo esquentar ainda mais.
O demônio jogou o arcanjo na areia, os querubins subiram aos céus e passaram a tocar cornucópias e harpas em meio a vozes melodiosas, o demônio virou o arcanjo feito um boneco sem peso e o deixou de quatro, o arcanjo urrou, o demônio entrou e com suas unhas rasgou a pele das costas do arcanjo esculpindo desenhos com sangue e cortes profundos, o demônio sentiu o ápice e o arcanjo gritou, a pele do arcanjo tornou-se dourado-escura, quase um bronze, na cabeça do arcanjo brotava entre os cabelos cacheados e brilhantes um par de chifres grossos e pontiagudos, o demônio beijou o arcanjo, o demônio fez do arcanjo um demônio. Era a sua arte.
Radamathys arrancou as asas de Raphael com mais facilidade e aceitação, ao mesmo tempo em que este gemia como se a mutilação fosse um prazer incomensurável. Raphael se ergueu para tocar no seu corpo, sentir aquele novo poder, aquela nova pele mais consistente e flexível, mais bonita, e aquele par de chifres esplêndidos que não apagaram a beleza pueril do seu rosto, mas deixaram-no mais malicioso e atraente.
E num último abraço apertado, o demônio e o novo demônio se despediram. Radamathys estuprou um anjo que se ofereceu gentilmente como oferenda para assim abrir a porta para o novo reino, o reino principal. O paraíso.
Radamathys usou todas as suas seis asas com todas as forças que tinha, espirituais e físicas. Rasgou céus de todas as cores, constelações, dimensões e portas com as mais estranhas formas geométricas, e chegou ao Paraíso.
Primeiro um silêncio, um lugar brando e cheio de névoa, lá tinha sol e cheiro de grama verdejante, mas ele não conseguiu enxergar nada. Para enxergar, ele teria que usar os olhos de um arcanjo no seu corpo de demônio. Mas os olhos eram muito perigosos, pois, se passasse muito tempo sem usar os seus, poderia ficar cego para toda a eternidade.
Correu e bateu suas asas com ainda mais força. Seus músculos, ossos e olhos doíam terrivelmente, ele já estava quase conseguindo.
E então finalmente viu. Um chamariz circular com um anjo de mármore gastando sua água num grande vaso, esculpido e moldado com todo o carinho inocente dos anjos. Na borda dele, um serafim se encontrava sentado e calmo, ondulando a mão na água cristalina e depois a depositando em cima da outra no colo, olhando para o nada, calmo e sem nada a fazer. Como Radamathys, tinha três pares de asas, mas aquelas eram originalmente suas. Uma ou outra centelha de fogo se fazia e desfazia envolta dele num piscar de olhos. E sua pureza era tão forte que o demônio achou que não conseguiria mais sobreviver se se aproximasse dele.
- Metatron... – Radamathys sussurrou para si mesmo.
Metatron, o rei dos anjos, o grande serafim e dominador do fogo e do ar, o único em todos os reinos dos arcanjos e dos paraísos que tinha três pares de magníficas asas mais brancas que a própria paz. Aquela era apenas a porta do lugar onde repousavam os espíritos infantes?
- Vós gostastes desta aventura, não gostastes? – Metatron se virou e olhou diretamente nos olhos turvos de Radamathys. – Desta pequena aventura...
Radamathys sentiu-se pequenoe abaixou as pálpebras, num reconhecimento de inferioridade.
- Não te intimida, Radamathys. Não vou lhe fazer mal algum. Tu és o mal aqui, não eu.
Metatron se levantou com leveza, estava vestido com uma longa saia de seda vermelha, que ía embora da vista de Radamathys. Ergueu a mão direita, fez um pequeno movimento no ar, e o barulho de grades enferrujadas ecoou naquele lugar claro demais, como se as pupilas estivessem dilatadas. Depois, segurou as mãos numa oração mental e ao abrir de suas palmas revelou-se um olho grande e flutuante esquentando sua pele. Um olho feito de fogo e ar.
- Este olho é para tu enxergares lá dentro.
Com um sopro assoviado e hipnotizante, levou o olho até a testa de Radamathys, que adentrou em sua pele com facilidade. Radamathys já não via mais nada turvo demais ou claro demais. Aquilo era belo.
- Podes ir. Vá! Eu deixo! Quando eu sentir que tu enlaçaste um espírito nos teus braços, farei com que tu voltes ao teu mundo sem precisar passar pelo mundo humano ou Gaia.
- Mas... Mas... Tu não irás fazer nada para proteger o Paraíso?
- Proteger do quê? De um demônio que destruiu três reinos e três arcanjos para chegar até aqui por uma única alma que pudesse salvar seu amor para com Archiri? Tu queres uma alma, não queres? Vá! Vá buscá-la! Tenho certeza que qualquer espírito humano que tu pegares será um demônio tão forte e corajoso como tu, Radamathys.
Radamathys não soube o que falar. Então apenas abaixou a cabeça novamente, as seis asas negras e os três olhos também.
- Obrigado, Metatron.
- Não demore.
Radamathys hesitou uma última vez, quando já estava próximo às grades de ferro, olhou para trás e viu Metatron velando-o com calma, as asas descansadas e caídas, o rosto bondoso, porém inexorável. Ele já podia ver o quanto longa era a saia de seda vermelha do serafim, podia até sentir seu coração pulsando de nervosismo.
- Raphael era parecido contigo, Metatron...
Metatron pensou um minuto antes de falar.
- Raphael era meu pupilo. Amei Raphael. Raphael se foi.
Os olhos do serafim umedeceram, mas Radamathys não viu mais nada, pois entrou nas portas do paraíso, tateou o ar até sentir algo quente, braços pequeninos e aflitos, braços de uma criança chorosa e perdida, procurando seu colo. Seu corpinho minúsculo foi levantado com apenas um braço de Radamathys, que sentiu um peso nos três olhos e no seu coração como nunca havia sentido antes em toda a sua fria imortalidade. Todo aquele sangue, todos aqueles arcanjos mutiladores, todas as guerras pelas quais ele passou foram esquecidos, desfizeram-se, sumiram do seu peito, e pela primeira vez ele sentiu o alívio, a leveza e a simplicidade do que era ser feliz.
Abraçou o corpinho minúsculo com lágrimas a descer-lhe do rosto cansado e fechou os olhos, abrindo-os no mesmo instante em que ele descia nos campos gramados do reino de Tunridha. Veja, alí está o castelo da princesa Archiri!
Radamathys se desfez em névoa negra para se transportar com mais rapidez aos aposentos de sua amada, surgindo no meio do salão central com a criança no colo e as seis asas batendo e fazendo ventania de norte a sul.
- Archiri! Archiri!
Ele já podia ver os cabelos negros e lisos de Archiri em cima de uma almofada, numa das várias e longas poltronas, e uma outra presença alí.
Adramelech, o príncipe do reino de Hiranyagarbha, saiu de cima do corpo nu de Archiri num pulo. Archiri também se levantou assustada e descabelada, o coração pulsando tão forte que Radamathys poderia sentir a quatro metros de distância seu nervosismo e ânsia por contar uma mentira.
- Radamathys! Meu amor! – Ela tentou. Adramelech apenas assistia a tudo, calado.
Os olhos de Radamathys se escureceram por completo. Ele não chorou, não destruiu e não assassinou. Apenas segurou o bebê adormecido no seu colo com mais carinho e cuidado, virou as costas e foi embora.
- Volte! Meu amor! Volte aqui com meu filho! – Archiri gritava, ora furiosa ora desesperada.
Ele não voltou.
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Black Cherry
Artes: Nicole Absher, Herbert Draper
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