Ammaleth Coeurcourt arfava e gritava naquela dor infindável, o suor banhando-lhe o corpo, enquanto as mãos buscavam algo rígido para segurar e suportar tal sofrimento. A garoa matutina se transformava numa chuva mais grossa, Mary Donna Coeurcourt trazia mais outra bacia de água quente para a parteira, e Auguste assistia a tudo com aflição.
- Continue, tu estás indo muito bem. – Acalentava a senhora que observava o ventre de Ammaleth, enquanto segurava uma de suas mãos.
As rugas de Mary Donna se acentuaram, Auguste suava frio, um choro ecoou naquela pequena casa em poucos minutos, e os gritos insuportáveis de Ammaleth cessaram. A nova mãe despencou a cabeça no travesseiro, os fluídos na testa colando alguns fios dos seus longos cabelos cacheados, as mãos trêmulas e aquele choro que a aliviava de uma forma nunca sentida nos seus dezessete anos de existência. O choro da sua cria.
A parteira cobriu a criança com uma toalha limpa e a fitou, emocionada.
- Uma menina. – ela anunciou com ternura.
Ammaleth segurou sua filha com certo receio, mas logo já estava mais relaxada. Riu e beijou a testa da menina.
- Como se chamará? – perguntou a parteira curiosa.
- Charlotte. – lágrimas brotavam nas bordas dos olhos verdes de Ammaleth.
- Que Deus abençoe tua filha, Ammaleth. Agora terei de ir, outras mães precisam de mim. – e dizendo isso, partiu sem mais hesitações.
Ammaleth pôde segurar Charlotte por pouco tempo, pois a silenciosa Mary Donna, sua mãe, a tomou de seus braços tensos com um toque de leveza e aspereza. Agora a chuva estava de fato mais grossa, e estralava no telhado como uma tempestade de pedras. A pequena criatura chamada Charlotte, mesmo nos braços de sua avó, fitou a sua mãe. Seus olhos azuis tornaram-se verdes, e sua quietude quebrou-se num choro histérico. Mary Donna já tinha várias rugas de expressão no canto dos olhos, nas bochechas e na boca, tinha os cabelos cacheados como os de Ammaleth, porém grisalhos, suspensos num coque, e era uma mulher alta e robusta.
- Mãe, o que a senhora está fazendo? – perguntou Ammaleth, franzindo o cenho e percebendo o olhar de esmeralda de Charlotte, absorvendo um pouco da cor do ambiente ao seu redor.
- Ela terá de ir, Ammaleth. – respondeu Mary Donna.
- Ir?
- Ela não pode ser tua filha.
- Mãe, não estou te entendendo.
- Charlotte terá que ir embora, terá que ter outra mãe. Entendeste agora?
- Mãe, devolva minha filha. – pediu Ammaleth com o cenho franzido.
- Não.
- Devolva Charlotte, Mary Donna, ela nos pertence, é nossa filha e tu não tens o direito de pegá-la e levá-la para lugar algum. – Auguste ergueu-se da cadeira e olhou duro para a senhora.
- Veja como fala comigo, moleque.
- Mãe, por favor, pare com isso.
- Parar com o quê? É a tradição. Nenhuma mulher Coeurcourt poderá ficar com sua primogênita.
- Não será uma superstição boba que vai me separar da minha filha. – disse Auguste com aspereza, indo para cima de Mary Donna.
Mary Donna levantou sua mão esquerda e com a palma aberta fez Auguste ser erguido no ar como se tivesse um gancho no seu peito, e depois o atirou na parede com força, fazendo-o desmaiar no mesmo instante. Ammaleth a mirou em total horror.
- EU TE ODEIO!
A mãe tentou levantar e atacar Mary Donna, mas tudo o que conseguiu foi cair fraca no chão, tossindo e sentindo uma dor horrenda no ventre.
- DEVOLVA MINHA FILHA!
- Acalma-te Ammaleth! Queres morrer agindo desse jeito?
- EU VOU MORRER SE TU ME TOMARES CHARLOTTE!
- Não seja exagerada, tu és nova e saudável e podes muito bem ter outros filhos depois desta!
- DEVOLVA MINHA FILHA!
Ammaleth já chorava histericamente. Lá fora, o céu trovejava com determinação, assustando o povoado de Clevelier. A porta da sala se abriu e Carlotta Coeurcourt surgiu encharcada e sobressaltada, compreendendo a origem de tal repentina tempestade. Ammaleth ergueu-se apoiando-se no beliche da cama, e depois numa mesa, e então gritou o mais alto que pôde. Mary Donna, mesmo com Charlotte nos braços, tentou reverter a situação, mas era tarde demais. A porta aberta arrebentou-se e por um segundo quase não atingiu Carlotta. A tempestade entrou na casa e molhou todos os cômodos em pouco tempo. O coque de Mary Donna se desfez e seus cabelos pareciam serpentes inquietas na sua cabeça com a ventania que era o rugido de Ammaleth.
- Ammaleth, queres matar a tua filha? Pare com essa tempestade agora!
- DEVOLVA-A! POR FAVOR! – implorava Ammaleth chorosa, sem dar importância para nada que Mary Donna falava.
- O que está acontecendo aqui? – perguntou Carlotta horrorizada, assistindo a irmã frágil e decadente tentando ficar de pé segurando-se em qualquer apoio a sua frente, e Auguste desmaiado na penumbra de uma parede.
- IRMÃ! ELA QUER ME TIRAR O BEBÊ!
Ammaleth cambaleou até Carlotta e agarrou seu corpo como se este fosse o seu último fiapo de esperança, e era.
- Mamãe! Estás louca? – a irmã levou Ammaleth de volta para cama, sentando-a com afetuosidade, e depois voltando-se para Mary Donna que sussurrava alguma coisa para tentar acalmar a tempestade e sair em segurança.
- Carlotta, não ouse me desafiar!
Ammaleth pulou da cama novamente, dessa vez tendo os ombros de Carlotta como apoio, e berrou o mais alto que pôde:
- DEMÔNIO!
- Ammaleth, não! – tentou Carlotta em vão.
Mary Donna, que já estava perto da porta arrebentada, olhou para trás em completo terror.
- SE EU TE ENCONTRAR NOVAMENTE, INVOCAREI HURACÁN E DAREI TUA ALMA COMO RELES ALIMENTO PARA ELE!
Mary Donna tossiu sangue em cima do bebê, e, agora tão fraca quanto a filha, pôs-se a correr desaparecendo nas ruas estreitas de Clevelier e deixando Ammaleth com um filete escarlate escorrendo do nariz. E então, o mundo tornou-se um abismo escuro e silencioso, como se a tempestade que agora era garoa, fosse a última lágrima de tristeza de Ammaleth.
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Black Cherry
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