Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 9 de outubro de 2011

Witch Fire - 01: Barreira



França, 1680, sete anos depois.
Vila de Clevelier.

Auguste era um bom homem, trabalhava toda a manhã e toda a tarde e durante o crepúsculo sempre ía à igreja orar e pedir perdão a Deus. Caminhava pelas ruas estreitas da vila de Clevelier com sutileza, quase um fantasma sobre as calçadas de pedras e os lampiões que iluminavam as casas e os rostos dos moradores taciturnos. Em Clevelier podia-se ver pelo horizonte duas colinas, e antes delas uma boa quantidade de floresta, floresta essa que era possuidora de um campo aberto onde sempre comemoravam o aniversário de Saturno, apesar de a Igreja ser cruel com quem desrespeitasse os paradigmas da bíblia. Auguste não dava muita importância para essas festas, gostava de Deus e dos ensinamentos dos padres, foi por esse motivo que enviou seu irmão Louvier a aprender a ser um.
Auguste era um homem alto e robusto, sempre pedia à mulher para deixar sua barba rala, o que dava uma característica sedutora a sua boca delineadamente carnuda, seu queixo dividido e seu rosto desenhado em losango, mas um pouco retangular, talvez pelas bochechas finas, os olhos baixos e a testa curta, coberta pelos cabelos lisos e grossos, roçando nas sobrancelhas levemente mal-feitas.
Suas coxas eram naturalmente grossas e musculosas, e apesar do frio cortante em Clevelier, ele gostava de deixar a camisa branca desabotoada até a metade do seu peitoral duro com poucos pêlos a lhe enfeitar a pele. Alguns homens e mulheres silenciosos sentiam um prazer pecaminoso em observá-lo chegando mais perto e saudando com um “olá” na sua voz timbrosa e rouca, até caminhar horizonte adiante com tranquilidade. Gostavam de ver as calças de Auguste em movimento.
Mas Auguste era fiel à sua mulher Ammaleth, aquela a quem sempre perguntavam a ele o motivo desta nunca sair de casa. “Tem a saúde frágil”, ele falava com um sorriso entristecido e o cenho franzido, mas a verdade era que nem Auguste sabia o motivo de Ammaleth nunca sair de casa. Desde o dia em que ela tivera Charlotte tomada de seus braços pela sua desaparecida mãe Mary Donna, e ele desmaiara naquele dia por alguma força estranha da velha senhora, Ammaleth tornara-se apenas uma mulher afetuosa que lavava suas roupas e preparava sua comida com gosto. Sua sopa era a melhor de Clevelier, e ele a tinha somente para o seu único deleite.
E Ammaleth era saudável, talvez até mais saudável que ele, o dono de tantos músculos e pique para trabalhar nas plantações da vila e nos consertos de algumas velhas casas. Mas ela era tão boa e dócil que ele desistia de perguntar qualquer coisa e deixava tudo estar normal e constante como sempre. Ele não brigava ou a repreendia quando ela gemia nas suas horas íntimas, apesar de ser severamente proibido uma mulher mostrar prazer. Na verdade, ele deixava quando ela começava a massagear seus ombros tensos com suas mãos macias e seus dedos ágeis, e depois descia nas costas, e brincava com seus mamilos, e saboreava seu órgão sem questionamentos ou constrangimentos. Ammaleth tinha a pele pálida e extremamente macia, e Auguste sentia-se como um lobo áspero e peludo sobre aquele corpo tão belo e liso, ela deixava-o fazer o que quiser, pois ela era a rainha dos gemidos e sussurros eróticos, e ambos não tinham medo das suas descobertas carnais. Era óbvio que Ammaleth e Auguste tinham um segredo, nunca dito ou escrito, mas compreendido. O prazer deles vinha em mais prioridade do que a religião. E quem tentaria questioná-los? Auguste todos os dias ía orar numa das duas igrejas de Clevelier, e segundo ele, a esposa mesmo em casa rezava por mais de três horas sem parar sobre um pequeno palanque que ostentava uma Virgem Maria esculpida em gesso e pintada com toda a delicadeza do mundo, logo na sala mediana da sua casa.
Ainda havia os vizinhos insistentes, chamando Ammaleth de bruxa e pequeno demônio bonito, por nunca sair de casa para ir à igreja e pedir perdão pelos seus pecados, e assim deixar leve sua alma para esta partir para o plano maior que era o céu, e no céu sentava-se Deus com seu cajado da Justiça e do Castigo. Diziam alguns que Ammaleth preparava poções que evaporavam e exalavam por toda a vila, despertando a libido e fazendo as outras mulheres terem pensamentos errados e proibidos sobre Auguste, mas Auguste, o homem esbelto e respeitável, digno de ser o melhor marido de Clevelier, fazia todo mundo esquecer-se de acusar Ammaleth devidamente para algum padre. Auguste era tão formal com as pessoas que era impossível dizer se ele tinha alguma amante ou um caso que ia contra os ensinamentos da Igreja com algum homem.
Alguns transformavam Ammaleth em “filha da farra”. As filhas da farra, mulheres que nasceram sem um pai que pudesse chamá-las de filha, eram consideradas filhas dos deuses, e por isso muito admiradas por alguns pagãos secretos em Clevelier. Mas Ammaleth, desde criança, teve apenas Mary Donna como mãe. Mary Donna, aquela que durante tantos anos lhe parecia indiferente, de um momento para o outro lhe toma Charlotte do seu domínio e desaparece sem deixar motivos. “Nenhuma Coeurcourt pode ficar com a sua primogênita”, ela disse, e desde então foi a única pista infundada de Ammaleth para se segurar numa esperança de reencontrar a filha sequestrada.
Auguste deu quatro toques na porta e Ammaleth a abriu com seu sorriso habitual. Os lampiões, sustentados em baluartes de ferro, já estavam acesos e exalando uma leve fumaça de querosene na casa. A porta era o máximo que Ammaleth podia chegar, pois quando tentava sair (e suas tentativas já foram muitas), seu coração doía e pulsava rapidamente. Ammaleth sabia, era uma barreira invisível deixada por Mary Donna para que ela nunca saísse de sua morada a procura da filha. Sete anos presa no próprio lar.
- Chegaste cedo hoje. – ela lhe deu um beijo discreto na bochecha, mas ele a puxou para si e a beijou longamente na boca.
- Queria logo te ver, e de qualquer forma, o padre está ocupado com algumas coisas misteriosas na vila e acabamos não tendo missa hoje.
- Misteriosas?
- O bebê de Justine desapareceu.
- A filha da senhora Audrey?
- Sim. Justine está desesperada, e está culpando os organizadores do aniversário de Saturno. Ela está acusando todo mundo de bruxaria e satanismo.
Ammaleth sentiu um aperto no coração, pois sabia o que Justine estava sentindo mais do que qualquer um naquela vila. Auguste sentou-se com entusiasmo na mesa, mas logo foi repreendido como um moleque malcriado por Ammaleth, que o ordenou a lavar as mãos. Após sentar-se de novo, agora com as mãos limpas e o rosto carrancudo, voltaram ao assunto em questão.
- Mas o que um padre pode fazer num caso de sequestro? – Ammaleth sentou-se de frente para ele, a mesa era um quadrado, aliás, apenas para eles dois.
- O padre na verdade está cuidando de Justine. Ela está histérica e só se acalma quando ele está ao seu lado. – respondeu Auguste pegando a colher pousada ao lado do prato cheio, e afundando-a na sopa cheirosa.
Ammaleth levantou-se da mesa com o rosto petrificado, não de espanto ou de entusiasmo, mas de preocupação. Aproximou-se da janela e com a mão direita arredou a cortina branca para o lado, vendo um ou outro raio de sol nas ruas úmidas e escuras, do crepúsculo que anunciava os primeiros minutos da noite. Já estavam no mês de setembro daquele ano, e algo muito forte se aproximava. Ammaleth teria que encontrar um jeito de quebrar o feitiço que a deixou aprisionada por sete longos anos naquele lugar, condenada a esconder tudo do marido. Ela confiava nele, confiava mais do que em qualquer outra coisa no mundo, e sabia que se contasse para ela sobre o que ela era, ele jamais a abandonaria por isso, e talvez até se tornasse cúmplice. Mas por enquanto ela teria que se preocupar com outras coisas. Um bebê sequestrado era uma pista chamativa para isso.
- Por que Justine está tão desesperada em acusar a todos de bruxaria e satanismo?
- Porque no mesmo dia em que seu filho desapareceu, as paredes de sua casa estavam pintadas com asas negras.
- Asas negras?
- Sim. Três pares de asas, espalhadas pelas paredes.
- Hexagrama... – Ammaleth sussurrou para si mesma.
- O que tu disseste? – Auguste franziu o cenho.
- Isto é terrível. – ela cuidou de responder, torcendo a boca.
Auguste deu um sorriso tristonho, e então pôs-se a se concentrar na sopa da esposa. Logo depois, cuidou de tomar um banho na tina de madeira atrás de sua casa, com a água deliciosamente fervida por Ammaleth, que esfregou suas costas e cuidou das suas unhas com total dedicação. Auguste se perguntava por que Ammaleth parecera tão interessada e curiosa sobre o misterioso desaparecimento. Ele conhecia o seu sofrimento, é claro, e por esse motivo que era estranho ela demonstrar mais interesse do que horror.
Na noite silenciosa, enquanto moradores sujos e mulheres submissas faziam uma vida moralmente aceitável, Ammaleth abria sutilmente um pouco da curta cortina da janela do seu quarto para ter como iluminação a lua amarela, enquanto Auguste enxugava o seu corpo e se deitava na cama, nu e provocativo, para uma noite com a esposa.
Lua amarela, noites de Carlotta, ela pensou, e então entregou-se aos braços grossos e aconchegantes de Auguste.
~
Entre as duas colinas do horizonte de Clevelier, logo adentrando a floresta, uma mulher nua mascarada e um cavalo negro rasgavam o véu esverdeado com galopadas determinadas sob o céu tão estranhamente iluminado. Havia um círculo de estrelas envolta da lua, mas que somente com muita concentração podia-se perceber aquele fenômeno tão taciturno.
A máscara da mulher era feita de madeira esculpida, com um nariz despencado e olhos semicerrados, enfeitada com ramos e alguns pequenos quartzos nas bordas e na parte superior, como que moldando sobrancelhas cintilantes. Seus longos cabelos lisos e negros ondeavam e faziam parte do vento, e o verde misterioso dos seus olhos assustava todo animal que ousava encará-la ou sentir seu cheiro adentrando a escuridão.
Revelou-se ser Carlotta. Aproximou-se de uma cachoeira que brilhava na lua e mergulhou o corpo na água cristalina e mágica por um certo tempo.
Quando saiu, caminhou ao lado de seu cavalo, que relinchava vez ou outra de medo, ela o acalmava com frequência, até chegar finalmente ao lugar planejado. Um grande campo aberto, onde um estranho círculo sombreava de branco a grama esverdeada. O círculo da Lua Amarela, o efeito das estrelas que a cobriam como que por instinto. Magia negra? Jamais. Magia de Carlotta não se segurava na escuridão tampouco na luz.
- Tenha calma, Joseph. Não irei demorar. – ela dizia com ternura, uma voz mais forte e ampla do que a de Ammaleth. – Já estou purificada, não acontecerá nada de ruim.
Joseph, o cavalo negro, voltou a relinchar em reclamação, parecia que ele compreendia tudo o que Carlotta falava, de alguma forma. Talvez Carlotta estivesse usando uma outra linguagem para com ele.
Carlotta buscou um punhal que se sustentava numa bolsa amarrada no pescoço de Joseph, caminhou até o centro do círculo e olhou para o céu, pressionando a lâmina contra a pele do antebraço esquerdo e se concentrando no que deveria fazer.
- Isfarikaime-se Nye! Oe ulyaerom nae zamewe om-no ikailâm-ny ya fisefar!
Por um único milésimo de segundo, as nuvens absorveram um tom avermelhado e as estrelas que formavam o círculo envolto da Lua Amarela se afastaram até desaparecerem e reaparecerem moldando um sutil triângulo. Carlotta suava frio, pois estava tudo dando certo.
Um enorme veado branco surgiu à sua frente, invadindo o que antes era um círculo na grama, e lambendo com vontade o longo ferimento de Carlotta no braço, que cicatrizou em pouquíssimo tempo.
- O que te fazes pensar que podes me invocar a hora que quiseres? – o veado tinha uma voz baixa e sussurrada, gentil.
- Tu gostas da Lua Amarela, pensei em presenteá-la para ti. – ela beijou o seu focinho com intimidade.
- É verdade. Ela é doce como a ambrosia, bem amada como o beija-flor e sedutora como a dália. Mas para que me queres nesse lugar tão perto dos humanos?
- Eu preciso que tu livres minha irmã de uma maldição.
- É justo, tu me deste um pouco do teu sangue ancestral, então é certo que farei esse pedido para ti.
- Ela está nesta vila.
- Sim, estou sentindo seu cheiro. É parecido com o teu, Carlotta, mas ela possui mais – ele cheirou o ar como se Ammaleth estivesse alí, na sua frente - ...ingenuidade. Ela precisará ser muito cruel nas suas decisões, Carlotta, e isso será terrível demais. Não se sabe se ela conseguirá se recuperar.
- E eu não sei se poderei ajudar mais.
- Poderás sim, Carlotta. Mas agora terei de ir fazer o que me foi pedido, ou tu terás de me dar mais sangue. Até breve. – ele abaixou a cabeça por três segundos, e Carlotta também.
- Até breve, Huracán.
O veado correu e desapareceu no horizonte, deixando um fiapo de luz na madrugada arrebatadora. Carlotta sorriu com o sentimento de missão cumprida, de liberdade e de alívio, e então subiu em cima de Joseph e correu adentrando a floresta.
Ammaleth acordou sem respiração, suada e desesperada, parecia estar ressuscitando. Naquela noite, ela correu para fora de casa, pois não conseguia respirar dentro desta, e jurou ter visto um belo espírito velando-a de longe. Mas antes que pudesse admirá-lo por mais tempo, percebeu que estava viva e inspirando o ar da escuridão fria com lágrimas a iluminar-lhe o rosto sorridente.







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Black Cherry

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