Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 23 de outubro de 2011

Witch Fire - 03: Radamathys


1680
Formigas lhe picaram os pés descalços e sujos, ele correu com determinação, sentindo os galhos caídos e as folhas secas estralarem sob seus pés. A floresta estava gélida e silenciosa, como se todos os seres vivos estivessem de luto por alguma coisa. Entre galhos grossos e árvores esqueléticas. Pinheiros e angiospermas, uivando em movimentos ondulantes, naquela noite aterradora e alaranjada...
Alaranjada?
Alí estava, mais adiante, uma fogueira gigante e incontrolável, um pouco mais distante da floresta para que esta não corresse o risco de ser consumida em chamas. Barulhos, uivos, urros, gemidos, a cada passo Louvier podia distinguir um som diferente, como se todos juntos formassem uma canção, definhando-se ao vento e entre as formas trágicas das árvores, muito próximas, muito separadas. Agora, ele já via a luz da lua entrando em espaços maiores, rochas cobertas de limo e um ou outro zumbido infernal.
Louvier sentiu um medo, um instinto gritante no peito de sair daquela floresta, procurar o seu lar e se esconder debaixo da cama segurando um rosário e orando mil Ave Marias para espantar o terror na sua cabeça. Mas aquela fogueira, aquela fogueira alta e dançante ao luar cheio, era tão encantadora, tão curiosa e estranha. O que uma fogueira fazia alí, após a floresta, enquanto criaturas disformes cantavam e dançavam ao seu redor?
Criaturas. Algumas esguias e gigantes, com mais de dois metros, agitando os braços e pernas e pulando, outras medianas, as que cantavam, e outras menores, miúdas, estas segurando com cuidado animais pequeninos e mortos entre seus braços. Louvier engoliu todo o medo, embora lhe parecesse infinito, e avançou para chegar mais perto daquele ritual tão aterrador e feroz. Nenhuma daquelas coisas sentiu sua presença, e se estavam sentindo, não deram importância.
Tinham a pele escura, como se queimada por um fogo tão brusco quanto aquele que feria as estrelas no céu, os olhos eram saltados das órbitas, tinham cílios enormes, do tamanho de mãos humanas, e as bocas eram redondas e cheias de dentes afiados, exibindo línguas bifurcadas e tão negras quanto os seus corpos. As criaturas menores eram corcundas e tinham o rosto murcho, provavelmente as mais velhas. As medianas rebolavam e agitavam a língua no ar, ressoando cantos guturais e que doíam na alma, enquanto suas mãos longas e pontiagudas massageavam seus sexos, estas deviam ser as mulheres se preparando para o acasalamento. E os gigantes, os que dançavam nus enquanto seus órgãos se agitavam e se excitavam, eram os homens.
Por um breve instante Louvier se sentiu hipnotizado pela voz das mulheres, que chegavam a notas altíssimas e tão agudas que poderiam causar um ferimento nos tímpanos como uma agulha ferroando. Então algo fez seu coração bater tão forte que ele temeu ser ouvido pelas criaturas.
As anciãs levantaram os corpinhos dos animais para cima, mostrando para a lua branda e fugaz, mas aqueles pequenos corpos não eram de animais. Eram bebês.
Bebês mortos, com suas boquinhas abertas e suas línguas para fora, as cabecinhas prematuras despencadas para o lado nos pescoços moles. De longe, eram como bonecos.
As anciãs começaram a se agitar como os homens, e as mulheres elevaram suas vozes numa única nota. Os homens, o vento, o zumbido, as línguas, tudo parou, até a grande fogueira estava quase parando, mas tudo o que aconteceu foi a mudança de seu ritmo. Ficou lenta, entorpecida, hipnotizada.
A primeira das cinco anciãs jogou sua oferenda na fogueira, e algo como uma cabeça monstruosa se formou nas labaredas, engolindo o corpo e o consumindo em poucos segundos. Então veio aquele odor horrível de carne humana apodrecida invadindo as narinas de Louvier, que nada podia fazer a não ser assistir. Um minuto depois, a segunda e a terceira também atiraram, com determinação e orgulho. A quarta hesitou e atirou de olhos fechados, quando os abriu, estava extasiada. A sensação de jogar uma criança morta naquela fogueira demoníaca, para aquelas criaturas, era a sensação de um orgasmo.
E antes que a quinta jogasse o último bebê, um gigante desceu da encosta e foi na direção de Louvier. Era nesse momento que ele acordava, era nesse momento que ele nunca deixava o pesadelo continuar. Mas já era a sua sexta noite tendo o mesmo sonho, e começou a acreditar que, se deixasse tudo continuar, ele poderia se livrar daquele inferno onírico de uma vez. E deixou.
O homem gigante puxou o braço de Louvier que se encolhia atrás de uma árvore e o levou para perto do seu grupo. A última anciã o olhou com desdém e curiosidade, mas aceitou sua presença no ritual.
Eles fediam, fediam a fezes e pus, à carne queimada e podre, a fungos e a um veneno desconhecido. Pareciam ter vindo debaixo da terra... Mas se não eram humanos, não eram animais, e muito provavelmente não eram deuses, o que eles eram?
A anciã não o deixou pensar em mais nada, ela se aproximou, ainda com os braços esticados e as mãos longas segurando o corpo do bebê, e cheirou Louvier no pescoço. Louvier suava frio, mas não fazia nada, não tentou se defender nem gritar. Achava que, se fizesse algum movimento brusco, os gigantes o jogariam na fogueira, ele morreria nos sonhos e não saberia o final dele. Teria que sonhá-lo de novo.
O jovem padre segurou suas mãos, a anciã se afastou num pulo, jogou a última oferenda e gritou:
- Radamathys! Archiri!
E todos responderam em uníssono:
- Radamathys! Archiri!
Num instante, os gigantes e as mulheres entraram num estado de inconsciência coletiva, balançando a cabeça lentamente, enquanto as anciãs continuavam a gritar Radamathys e Archiri. Os sexos das mulheres sangraram, e os órgãos rígidos dos homens expeliram um líquido amarelado, o sêmen. A fogueira laranja se tornou branca, e depois escureceu. Um escuro autêntico e causticante, não o negro-azul da noite. Era a própria escuridão.
A fogueira então se partiu num uivo infinito, e uma menina de longos cabelos negros, com um círculo escuro na testa, surgiu segurando uma flor de lótus.
Foi então que Louvier tentou gritar, mas não conseguiu. Tentou se mexer, mas era impossível, seus músculos não respondiam ao seu chamado. Tentou esbravejar e sair correndo, tentou acordar. Mas aquelas criaturas de alguma forma haviam conseguido o que queriam, haviam aprisionado Louvier no seu próprio sonho.
Sua única saída foi orar, orar para que alguém o acordasse, antes que aquela menina de olhos assassinos fizesse alguma coisa, antes que ela saísse da fogueira. Porque o que ele sentia quando a via não era inocência e beleza. Era desespero, ódio, vingança, desejo por destruição. O desejo de abrir o primeiro dos seis cadeados do Grande Portal.
- Louvier! Louvier! Irmão! Acorde!
Louvier abriu os olhos e não conseguiu distinguir nada, sua visão estava embaçada, Auguste o agitou pelos ombros e só assim ele percebeu que havia finalmente sido acordado. Suas preces foram ouvidas.
- Louvier, tu não paravas de gritar. O que aconteceu? O que estavas sonhando?
Louvier olhou para o seu irmão, todas as suas palavras se engancharam na sua garganta, então ele o abraçou e chorou. Era a única coisa que seu corpo e sua mente pediam naquele momento.

~
1664
Sete da manhã. O ar de grama e pinheiros entrou na janela aberta de Ammaleth, que levantou da cama num pulo e tomou um banho eficiente. Olhou para a pequena Virgem Maria de gesso empoleirada num palanquezinho de madeira feito de última hora na sala, segurando seu filho Jesus, e depois para sua mãe, Mary Donna, numa cadeira de balanço, amamentando sua irmãzinha Carlotta.
Ammaleth com sete anos já tinha olhos grandes e verdes, de um cristalino raro que absorvia a cor ao seu redor quando chovia. Sua pele branca, de um suave damasco, valorizava o rosto oval e pueril, em contraste esplêndido com os longos cabelos negros e cacheados, desde que nascera nunca foram cortados. Ammaleth, após dez anos, mudaria apenas de altura e ganharia seios.
Mas o que atiçava a curiosidade da menina era o grande anel de ouro que incrustava uma esmeralda arredondada e meio escura, no dedo médio de sua mãe. Ela um dia perguntou sobre o anel, e sobre o seu pai. Ele teria dado a Mary Donna aquele objeto explicitamente caro e valioso? Ela não respondeu, apenas foi buscar Carlotta que chorava no cesto de vime.
Mary Donna, após conseguir fazer o bebê dormir, o depositou no mesmo cesto, acomodou-o nas cobertas suaves e quentes, e puxou o braço de Ammaleth com aspereza.
- Venha comigo, Ammaleth. – sua mão era quente, dura e concisa.
Ammaleth já sabia o que era. Desde pequenina, sempre soube que era uma bruxa. Que teria apenas que procriar mulheres, se fossem homens, nasceriam estéreis, e teria de dá-los para Cernunnos. Que teria de esconder esse segredo pesado e mórbido pelo resto da sua vida. E pelo resto de sua vida, dificilmente encontraria um pouco de felicidade. Ela só não sabia que este pouco de felicidade se comparava a quase nada.
Mary Donna tinha uma casa invejável. Não chegava a ser uma mansão, mas era espaçosa, confortável, cheia de móveis ilustres e pinturas perfeitas nas paredes. Ela já ensinara uma vez a Ammaleth quem eram aquelas mulheres nas pinturas.
- Esta é sua bisavó Catherine. E esta é minha mãe Rosanne, sua avó. Aquelas são minhas irmãs, Mary Alice e Mary Chrétien. Mary Alice é um prodígio na nossa família. Uma vez, sozinha, conseguiu invocar Huracán para salvar sua filha dos súditos de Radamathys, que é o companheiro fiel de Archiri. Mary Chrétien, no entanto, é uma vergonha, ela nos detesta e se detesta por ser bruxa. Vive empoleirada nas igrejas esperando que Deus caia do céu para salvá-la... Uma pobre coitada, se você quer saber.
- Deus existe, mamãe?
- Deus, Ammaleth, é apenas um entre vários deuses. Já lhe ensinei isso. Huracán, Cernunnos, Krishna, estes podem ser até mais poderosos do que Deus. A diferença é que Deus tem um exército de arcanjos e anjos para as suas ordens, os outros deuses trabalham sozinhos, ou com alguns animais e elementos de Mãe Gaia. Mas na maioria das vezes, sozinhos.
- O que são os súditos de Radama...
- Radamathys? É melhor você não saber. Esta é magia escura. Nós somos Bruxas Claras, Ammaleth. As Bruxas Escuras são nossas adversárias. Não posso dizer se são boas ou más, porque em nossa família também há grandes mulheres ardilosas. Mas são adversárias formidáveis. Competimos com a obtenção de elementos, escritos, livros sagrados que são cruciais para a nossa raça, feitos por nossas ancestrais e enterrados em várias florestas por aí. Competimos até pela atenção dos deuses. Ter um deus amigo é a melhor virtude que uma bruxa pode ter, Ammaleth.
- Por que nossas ancestrais enterraram coisas tão importantes pra nós?
- Proteção, Ammaleth. Era preciso enterrar para assim repassar para as novas gerações. Ou então, quando um livro fazia descobertas demais sobre outros seres e magias, elas enterravam por medo e precaução. Temos que ter muito cuidado com as linhas.
- As linhas?
- As linhas que separam o nosso mundo de outros, as linhas que carregam os destinos, as linhas dos passados, as linhas que aprisionam criaturas que nunca devem ser libertadas, e que escondem portais que jamais deverão ser abertos. Estas são as linhas, Ammaleth. Invisíveis para os olhos humanos. Para os nossos olhos de bruxa, são como pequenas contas luminosas. Já vistes uma gota de água numa folha ao luar? As linhas são assim à primeira vista. Nunca as olhe por muito tempo, elas podem te atrair, e isso provavelmente não lhe trará benefícios.
- Mamãe...
- Chega de perguntas. Venha, vamos para o sótão, preciso lhe ensinar a se proteger dos Demônios do Sol. Eles sentem nosso cheiro a quilômetros de distância. E não existe nada mais poderoso para eles do que sangue de bruxa.

~
1680
Ammaleth correu para casa. Entrou ofegante e descabelada pelo vento, Auguste só chegaria ao início da noite, e ainda era dez da manhã, ela teria bastante tempo para a sua busca.
Subiu no sótão e encontrou apenas teias de aranha e poeira. O porão estava fora de questão. Então se lembrou do costume das suas ancestrais. Ela teria que encontrar o livro sobre Radamathys, o fiel companheiro de Archiri, na floresta. Para isso, usaria uma velha forma de achar as coisas de um jeito mais fácil, meditando por tempo suficiente até sua alma se desprender do seu corpo.
Voltou para o porão e pegou três frascos enquanto uma chaleira cheia de água era fervida na lareira, em cima de finas vigas de ferro.
Óleo de Lótus, rim de Tengu e sementes de Maçã Azul. Com eficiência, desfiou o rim seco e bateu as sementes numa cuia até deixá-las esfareladas, para no fim misturar tudo no óleo de Lótus, despejado sobre a água quente. Agora o sacrífico, pensou.
Pegou uma faca recentemente afiada pelo marido e fez um pequeno corte na palma da mão, pingando três gotas do seu sangue na poção, que descansava agora num pequeno caldeirão. O caldeirão, apesar de não estar em cima do fogo, borbulhou com a entrada do último ingrediente, exalou uma fumaça avermelhada fazendo Ammaleth ter certeza de que o líquido estava pronto.
Por alguns minutos entrou no seu quarto, arredou uma madeira solta que se escondia debaixo de um tapete, e tirou de lá um lápis preto com uma ponta ameaçadora. Retornou para a cozinha, sentou-se numa cadeira e desenhou um pentagrama na costa da mão, que em poucos segundos pareceu fazer parte da própria pele de Ammaleth. Buscou um pouco da poção numa cuia menor e guardou o restante num frasco maior, tampando-o com um pano branco e depois com uma tampa de ferro, escondendo-o debaixo do piso de madeira ao lado do lápis.
Finalmente respirou, já havia se passado uma hora como se fosse um minuto. Ao meio dia Auguste poderia voltar para almoçar, ou almoçar na casa de um amigo, Ammaleth nunca sabia, mas era melhor prevenir. Ela agora tinha uma hora para sair do seu corpo e procurar o livro de Radamathys.









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Black Cherry
Arte: Nicole Absher, com edição de Black Cherry

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