1680
Carlotta saiu por uma das portas do fundo da mansão de Inanna e passou por um caminho entre seis pares de árvores velhas com troncos estranhos, um frio incomum assolava aquele lugar, mesclado ao odor de algo queimado, forte, podre. Após o caminho, encontrou um grande círculo de mármore branco com bordas pretas acima da grama, onde cinco bruxas já esperavam a sua chegada, entre elas, a própria Inanna, uma bruxa de aparência infantil e ingênua, cabelos métricos e escuros, segurando um pedaço de galho como quem segura um charuto. As outras quatro bruxas também seguravam pedaços ora tortos ora retilíneos de madeira, Carlotta era a única “escura” que não possuía objeto algum para canalizar seus poderes, o que causava a desconfiança por parte das subalternas de Inanna. Mas Carlotta obteve a confiança de Inanna, e isso logo acabaria.
Ela abaixou brevemente a cabeça para a bruxa de corpo de menina, que deu um sorriso falsamente bondoso, e deu “olá” para as bruxas que a olhavam como se ela fosse algo asqueroso caminhando por aí, mas que apesar disso retribuíram a saudação.
Seis da tarde, o sol era apenas um borrão fraco e alaranjado quase que completamente coberto pelas montanhas e florestas. A grama estava afundada em luz caramelada, e as árvores assoviavam com seus mil braços e pernas num movimento lento e contínuo pelo vento, cinematizando também os vestidos das bruxas Escuras.
- Estás atrasada. – Inanna ecoou, sem ao menos olhar para Carlotta.
- Perdoe-me, Inanna.
- Não pedi seu perdão, pedi?
- M-Mas...
- Calada. Entre agora mesmo neste círculo ou uso tua alma como petisco para os meus demônios.
Carlotta suou frio, se aproximou mais agora que as quatro bruxas estavam organizadas, e Inanna no meio. A mestra pegou um longo e grosso pedaço de madeira e bateu no meio do círculo três vezes seguidas, fazendo surgir um pentagrama. As cinco bruxas envolta da mais poderosa deram-se as mãos e começaram uma sucessiva linguagem sussurrada e veloz, como se mil serpentes estivessem silvando ao mesmo tempo. Inanna bateu mais três vezes no meio do pentagrama, e nas cinco pontas diluíram-se mais um desenho, agora um octagrama. A velha menina puxou sua varinha do meio do peito, apontou para o céu ao mesmo tempo em que seus longos cabelos negros flutuavam ao redor das cinco súditas, e gritou:
- Radamathys!
E Radamathys se materializou na sua frente, nu, com músculos grandes e perfeitos, um par de chifres curvos que lembravam uma espécie de marfim sujo e escuro, e suas seis asas negras e majestosas causando furor e uma ventania que poderia arrancar cada árvore alí perto da terra. Carlotta estremeceu em silêncio, enquanto as bruxas ao seu redor ora se maravilhavam ora ainda mal acreditavam na criatura à sua frente. Até que, se por êxtase ou sinal de submissão, todas elas, até mesmo Inanna, se ajoelharam diante do demônio.
“Tenho algo para te falar, Carlotta” – um pensamento se formou na mente da única bruxa ainda em pé. “Mas antes, ajoelha-te e disfarça, apenas tu estás ouvindo o que estou dizendo agora pelo poder da mente.”
Carlotta se ajoelhou. Radamathys avaliava cada uma das seis bruxas, olhando ora ou outra para a Coeurcourt mais nova como se fosse algo tão pequeno e insignificante quanto as bruxas mais fracas dalí.
“O que um demônio poderoso como o senhor tem para me falar?”
“Algo que causará a proteção da Floresta dos Deuses, além de te permitir entrar nela.”
“A Floresta dos Deuses? Impossível! Esse nome veio como base numa lenda... Não significa que lá vivam realmente os deuses!”
“Então como tu me explicas tua ligação com Huracán?”
“Mas como...”
“Sinto o cheiro de Huracán na tua alma. Cheiro de luz, cheiro de estrelas e sóis. Uma bruxa como Inanna poderia perceber isso a qualquer segundo... Sabes disso, não sabes?”
“É claro que sei!”
“Por ora, Inanna está entusiasmada demais com a ideia de ter uma bruxa como tu que possas abrir portais para ela quando bem quiser. Mas tenha cuidado, não subestime Inanna só porque conseguiu enganá-la uma vez. Inanna é imprevisível até para criaturas como eu.”
“E como está meu disfarce de bruxa Escura para ti então, demônio?”
“Fálica, estúpida. Poderias te entregar há minutos atrás vindo sem uma varinha.”
“Mas eu não consigo canalizar meus poderes em objeto algum! Isso é hereditário de Bruxas Escuras!”
“Burra! Aprenda!”
“Espere um momento... Por que tu estás me ajudando e me dando conselhos?”
“Oras, Carlotta. Não está claro? Meu destino e o destino da tua irmã estão mais entrelaçados do que as raízes destas seis asas negras nas minhas vértebras as quais roubei pelo amor à criança cujo futuro depende das missões de Ammaleth!”
“A criança que tu roubaste do paraíso?”
“A criança que estava predestinada a vir a mim, a partir do momento em que eu tecesse o destino que causaria também um colapso no destino de Ammaleth.”
“Senhor Radamathys... Não entendo!”
“Carlotta. Ainda não está claro o bastante? Mary Donna está brincando com a nossa cara!”
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1673
- Mamãe! Estou grávida! – Ammaleth entrou na cozinha de mãos dadas com um magro Auguste ao mesmo tempo em que Carlotta descia das escadas para abraçá-la.
Mary Donna parou de picar os legumes com a faca, mesmo cozinhando ainda usava aquele anel de ouro, incrustado com uma esmeralda grande e perfeitamente redonda, de uma tonalidade meio escura, no dedo médio. Pegou um pano e tirou o suor consequente do vapor da panela escaldante. Limpou as mãos e só então virou-se de braços cruzados para a filha que cintilava de felicidade.
- Auguste, Carlotta, preciso falar com Ammaleth a sós.
O sorriso de Ammaleth desapareceu, Carlotta saiu de fininho e Auguste foi-se para a sala de estar sentar-se no sofá.
- Em que lua foi? – Mary Donna fortaleceu sua expressão de impaciência.
- O quê? – Ammaleth franziu o cenho, como quem esperava que a mãe dissesse “mas que presente mais belo da minha filha!” em vez de “em que lua foi?”.
- Só me responda, Ammaleth. Em que lua foi?
- Ch-cheia... Crescente... Não lembro!
- Vai conceber um filho e não sabe nem em que lua o fizeste?
- Mas mamãe!
- Mas nada. Achas que fazer um filho é tão fácil e simples assim para a nossa dinastia?
- Mamãe, me deixe falar!
- Vou invocar um demônio para levar a alma disso daí. Saia da minha cozinha, vamos!
- MAMÃE!
Mary Donna que já estava de costas novamente, virou-se para observar melhor aquela que gritava o seu nome.
- Qual... É... O... Problema... Em... Ter... Um... Filho?
Mary Donna soltou um muxoxo de desaprovação. Pôs a mão na testa, e respirou fundo.
- Sabes se é menino ou menina?
- Não, eu...
A velha ajoelhou-se de frente para a barriga ainda pequena de Ammaleth e pôs as duas mãos longas e enrugadas sobre ela. Ammaleth recuou como se os dedos tivessem queimado sua pele, Mary Donna a fuzilou com o olhar.
- Não use isso com a minha criança. – Ameaçou.
- Não use o quê, Ammaleth? Magia? – ela deu um risinho desdenhoso. – Que patético, dezesseis anos e ainda tem medo do que é...
- Não tenho medo do que sou. Só não quero que o meu filho sofra o que nós sofremos.
- Que sofrimento tu te referes, Ammaleth? Que não podemos amar por muito tempo? Que nosso destino é ver todos a quem nutrimos sentimentos caírem em desgraça ao mínimo contato com a nossa espécie? Que ora ou outra, quando os homens descobrem o que somos, é nosso dever matá-los?
Ammaleth abaixou a cabeça e as pálpebras.
- Sacrifícios são necessários, Ammaleth. Tanto para seres humanos quanto para monstros como nós, nascidos da arrogância de Deus de submeter a inteligência de Eva e dos outros deuses.
Mary Donna voltou a cortar os legumes.
- Podes ir. Ore pelo deus compatível com o nosso sangue, Huracán, esta noite. Talvez ele possa lhe dar algum conselho no mundo dos sonhos.
Antes de Ammaleth sair da cozinha, Mary Donna anunciou:
- É uma menina.
E então, finalizada a sessão de temperar a sopa, a velha mulher apertou o anel de esmeralda com força na mão esquerda, e uma gotícula salgada escorregou de ou entre seus olhos, ninguém nunca soube dizer se era uma gota de suor ou de lágrima. E sussurrou para si mesma:
- Eu lhe odeio, Frigga. Um dia eu hei de te eliminar, mas nem que eu passe mais vinte, quarenta, sessenta, cem anos nesta terra. Vou encontrar um jeito de lhe destruir.
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1680
Nove da noite. Quase todas as casas da vila de Clevelier estavam com as luzes apagadas. Louvier caminhou até uma casa no final de uma ruela, deu três toques na porta e Arpe a abriu com um sorriso deveras sedutor para o padre, que apenas limitou-se a dar-lhe um aperto de mãos, mas Arpe o puxou e o abraçou. Estava cheirando a vinho, e usava uma espécie de manto branco seguro no corpo com um broxe, caindo até a metade das coxas brancas e belamente torneadas. Notava-se também os pés descalços.
- Padre! Eu sabia que o senhor viria! – exclamou Arpe ainda o abraçando. Louvier se desvencilhou dos braços fortes e destemidos com certa indelicadeza, mas ainda com uma expressão simpática no rosto. – Vamos, entre! A festa é no quintal atrás de casa!
- Sim, sim. – Louvier cuidou de dizer, e acompanhou o entusiasmado padre.
A festa realmente estava lá no fundo, pois se vista da frente ele jamais imaginaria que uma coisa tão bonita e poética estava acontecendo por detrás da morada. O quintal era amplo, iluminado com lampiões em cordas amarradas em galhos de árvores e pregos nas paredes e janelas mais altas da casa. Uma mesa decorada com um grande lençol branco e farta de frutas, carnes e incensos. Espalhavam-se as serventes mulheres que ofereciam cachos de uvas e garrafas de vinhos para os homens vestidos do mesmo jeito que Arpe, apenas um manto longo e branco. As criaturas femininas usavam vestidos longos que cobriam até as canelas, mas não havia alças que as segurassem. Todos brincavam, corriam, dançavam e cantavam juntos. Um homem com uma saia branca e o tronco nu tocava uma harpa, enquanto outro com uma camisa sem mangas flauteava, e mais alí um jovem rapaz rodeado de jovens garotas era mimado, penteado e alimentado.
- Fique à vontade, padre, a festa também é sua. – Arpe lhe deu um beijo na bochecha e foi-se juntar a um grupo de homens que disputavam queda-de-braço.
Louvier caminhou e a cada passo que dava, se sentia maravilhado com a beleza e a poesia que exalava dos convidados, das músicas, até mesmo do céu que parecia extremamente estrelado para a ocasião. Mas alguma coisa, ele sentia, estava errada. Ele lera pouco sobre festejos pagãos, mas o pouco que conhecia tinha certeza que aquela não era uma festa para Saturno.
Parecia ser mais para Baco.
Um rapaz lhe puxou pelo braço e lhe falou alguma coisa sobre “disputa do vinho”. Louvier o acompanhou, pois ele não queria largar seu braço, até que chegou a um grupo de cinco rapazes que seguravam garrafas cheias do líquido púrpura e deliciosamente amargo.
- Desculpem-me, mas eu não posso. – o padre sorriu.
- Vamos, padre! Quando o senhor terá outra oportunidade dessas?
Louvier olhou para os cantos. Ninguém parecia condená-lo, culpá-lo com o olhar, apontar o dedo para ele e delatá-lo. Na verdade, todos estavam concentrados em suas diversões particulares, todos estavam em pleno êxtase de alegria e liberdade que ele se sentiu mais à vontade para pegar a garrafa de vinho que lhe ofereciam.
- Tudo bem. – ele sorriu.
Os jovens aplaudiram, gritaram “êeehs”, e deram batidinhas no seu ombro. O rapaz que convidara Louvier estava fazendo uma contagem regressiva, e de um minuto para o outro o padre estava virando a garrafa como os cinco homens que engoliam ardentemente a bebida. A alma de Louvier pareceu esquentar, ficar mais leve, e junto com isso o seu corpo acompanhava cada clima. Dedos seguraram sua bata, e ele pôs-se a tirá-la, logo, já estava apenas com a saia escura das suas vestes. Palmas, gritos e tambores encheram seus ouvidos, Louvier encostou as costas numa árvore, e sentiu-se molhado, alguém derramara vinho no seu peitoral, e então uma sensação quente, uma mordida, algo que pareceu acendê-lo nas suas partes íntimas.
Louvier abriu os olhos, o rapaz que o levara ao caminho dos vinhos estava saboreando seus mamilos com empolgação. Lambia, mordiscava, cheirava seu pescoço, e chupava seus lábios, beijou-o. O padre tentou mover os braços e as mãos para empurrá-lo, mas seus membros pareciam fugir do seu domínio, pois começaram a explorar o corpo do rapaz louro e bronzeado, que já estava nu em cima dele. Aqueles músculos, aquela pele lisa e cheirosa, tudo aquilo que deveria repeli-lo estava acendendo-o ainda mais. Louvier deitou-se na grama e começou a passear as mãos nas costas do jovem, chegando nas suas nádegas volumosas, apertando-as, penetrando seus dedos entre elas. O rapaz gemia e rebolava em cima dele, até que ele sentiu algo ainda mais úmido quando o louro colocou seu sexo em sua boca, pois ele também estava sendo sugado. Louvier então começou a rebolar os quadris no ritmo que as nádegas branquelas em cima do seu rosto faziam o mesmo, ele as segurou firmemente e as mordeu, lambeu, colocou a língua. Gosto de vinho e morango.
O rapaz voltou à sua posição inicial, colocou Louvier dentro dele, e começou um ritmo de vai-e-vem em cima do padre nu e aberto na grama que gemia feito louco, urrava sem medo de ouvirem o som do seu prazer. O ápice veio, e junto com ele, a inconsciência completa e autêntica.
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Black Cherry
Arte: Nicole Absher, com edição de Black Cherry