Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Witch Fire - 05: Paraíso


1674
Radamathys se aproximou de um de seus súditos, um homem gigante e escuro, massageou seu peitoral rígido de olhos fechados, até ter a precisão certa e penetrar seus dedos grandes e pontiagudos dentro deste, furando sua caixa torácica e tirando de lá um órgão negro e pulsante, uma bola fedorenta na palma de sua mão.
O súdito caiu como um boneco de pano no chão, transformando-se em uma fumaça escura logo em seguida.
Radamathys sussurrou alguma coisa para si mesmo, apertou a bolha viva entre as duas palmas e então toda a floresta pareceu chiar, uma luz branca e que crescia disformemente pareceu tomar conta de cada pedaço dela, fazendo-a desaparecer por completo em poucos minutos, até tudo tornar-se branco e sem mais nada, a não ser o causador daquilo.
Radamathys, com o sangue do órgão, o coração de seu súdito, pintou um crucifixo no chão, deitou-se sobre ele e adormeceu.

~
16.740 – Tempos dos Reinos-Arcanjos.
Acordou com uma chuva de farfalhares, asas incansáveis para lá e para cá no que parecia ser um alarme de urgência. Ele se ergueu no mesmo instante em que um anjo, louro, alto, belo e nu, apontava uma lança feroz para o seu pescoço.
- Como ousas invadir o reino de Medraque, demônio?
- Aponta esta lança para ti mesmo, anjo arrogante. Quero falar com teu superior.
O anjo fez uma careta de ódio, e então voou em direção a um outro anjo, forte e maior que ele, um guardião que pairava no lado esquerdo de uma grande porta dourada e prateada. Radamathys, enxergando com mais lucidez, distinguiu um lugar onde o sol era morno e vermelho, o horizonte púrpuro e um infinito campo de trigo. Aliás, naquele reino, era só o que havia: o horizonte, a porta, os anjos e o campo.
O anjo grandalhão entrou na porta, fazendo um suave aceno de cabeça para o guardião do lado direito, e então se passaram alguns minutos até ele voltar com o anjo rancoroso que quase enfiara uma arma na garganta de Radamathys. O guardião voltou ao seu posto e o anjo carrancudo voltou-se para o demônio invasor.
- Certo, demônio. Arcanjo Medraque deixará tu entrares e falares com ele, mas com duas condições: a primeira, diga teu nome.
- Radamathys.
As asas do anjo pareceram tremeluzir sob a luz daquele pôr-do-sol eterno, que entregava mais penumbras para aquelas criaturas nuas e falsamente vulneráveis do que claridade.
- Então, Radamathys, eis a segunda condição: diga-nos quem foi a primeira bruxa que pisou na Terra humana? E qual a sua história?
Radamathys se surpreendeu com a pergunta. Por um instante achou que teria de enfrentar anjos guardiões musculosos e praticamente imbatíveis para chegar à Medraque, mas se esqueceu de que anjos em geral não eram exímios lutadores. Lutavam para defender, apenas para isso, nunca para provocar ou competir.
- A primeira bruxa foi Eva. No momento em que Deus começou a moldá-la na costela de Adão, Lilith, furiosa, rogou uma maldição sobre aquela forma que a plagiava: a mulher saberia mais do que o homem, seria mais inteligente que ele, e infinitamente mais superior. Eva então passou a perceber que o Éden era apenas o Paraíso, nada daquilo era palpável e real. Era tudo uma grande mentira de Deus. Então, com seu poder herdado pela nossa mãe Lilith, chamou pelos animais e pelo sol, filhos de Corona Solaris, furtados por Deus para Deus assim ser a autoridade maior na Terra. Mas Deus não passava de um invejoso. Percebendo que Eva era o primeiro fruto do Espírito Comum com o Espírito Místico, resolveu transformar todo aquele Jardim em algo real no mesmo instante em que Eva já iria subir ao Alto Degrau para questioná-lo.
“Roubou um sol do campo de Corona Solaris, naquele mundo em que ele até hoje reside em paz, e germinou no seu universo. Fazendo o mesmo com um pouco da criação de cada deus nos milhões de universos, fez o seu próprio.”
“E quando Eva, pesarosa, já havia gastado toda a sua energia, era tarde, ela não poderia provar nada, ela não poderia mais ser superior ao homem, pois já era carne e osso. E então, Eva chorou por dias, até a própria Lilith disfarçar-se de Serpente para ajudá-la a resolver todo aquele problema catastrófico. Eva a obedeceu e comeu do Fruto feito por Corona Solaris, que na Terra Humana se chama Huracán, mas quando é Huracán, não há muito a se fazer por aqui.”
“Eva, sendo a mais inteligente e mais poderosa, aconselhou Adão, um homem bobo e ingênuo, a fazer mesmo. Adão fez, e Deus, vendo que sua ideia utópica de paz eterna havia dado errado, expulsou os dois do Éden Real. Deus, cansado, mais nada fez para o ser humano. E nunca mais fará.”
“Eva, porém, não havia parado sua missão. Ela sabia que teria de ter uma filha para permanecer na Terra seus poderes herdados por Lilith e Corona Solaris, mas nas suas duas tentativas tudo o que obteve foi Caim e Abel, irmãos ignorantes e que se destruíram em pouco tempo, por serem homens e filhos de Adão, outra criatura que só pensava em guerra e sangue. Ela nunca conseguiria ter uma filha bruxa, era mais uma barreira de Deus.”
“Foi quando, numa época em que várias famílias já começavam a povoar a Terra, Eva, uma velha e agradável senhora,vendo aquilo como única saída, despedaçou sua alma e entregou um pouco desta para cada mulher poderosa em determinada dinastia. Assim surgiram as Bruxas Escuras e as Bruxas Claras. As duas maiores adversárias. Nenhuma completamente má e nenhuma completamente boa.”
Radamathys soltou uma respiração de cansaço e chateação. O anjo ainda o olhava espantado, até deixar cair a lançar perigosa das suas mãos leves e macias, e sair do caminho do demônio.
Radamathys esperou um segundo de hesitação por parte dos guardiões para entrar, que empurraram a porta colossal e espessa apenas com seus braços direitos. O amante de Archiri adentrou o lugar sem escrúpulos. Era uma mansão gigante, pontiaguda, com pilares extensos como se fosse uma catedral do tamanho de uma cidade. Havia relógios em todas as torres do lugar, mas nenhum sinal de vida animal a não ser o farfalhar permanente das asas dos anjos.
A mansão era repleta de tapetes vermelhos, pinturas que iam até os tetos, abóbadas onde flutuavam estátuas de granito e mármore de Cristo: erguendo as mãos, sorrindo, abraçando uma criança, sofrendo. Radamathys poderia se apaixonar por ele naquele mesmo momento, apenas admirando aquelas esculturas tão realísticas, mais realísticas do que qualquer artista mortal pudesse ser capaz de construir. Naquelas obras, o rosto de Cristo era pueril e sem barba, sem pelo algum, a não ser os cabelos castanhos e levemente cacheados chegando até os ombros. Cristo poderia se passar por uma mulher sem receios. Qualquer um acreditaria, até Deus.
Radamathys, pensando em androginia, por conseguinte foi recebido por um anjo adolescente, mediano e musculoso, mas não tanto. O anjo o fitou rapidamente dentro dos olhos e então abaixou a cabeça, enrubescido.
- Senhor Radamathys, me chamo Reyel. Sou o porta-voz de Medraque, e irei levá-lo até ele.
- Sim, Reyel.
Reyel tinha o rosto simples, todavia de uma aura estranha e até sensual. Como todo e qualquer anjo ou arcanjo estava nu, o sexo exibido e flácido, virgem. Radamathys sentiu uma eletricidade quando Reyel segurou sua mão com convicção e foi guiando-o por corredores sinuosos, estreitos, longos, retangulares, circulares, até enfim chegar a um quarto extenso e sem tetos, sendo iluminado apenas pelo sol sangrento e o refletir dourado dos campos de trigo nas vidraças das janelas abertas. Reyel o abandonou e fechou as portas, ele pensaria naquele anjo mais tarde.
- Radamathys! O que o traz aqui, invadindo meu reino? – Medraque enfim surgiu, um anjo alto e forte, quase tanto quanto os guardiões, o rosto másculo e sombreado por uma barba rala, os cabelos longos e cacheados, ruivos e fogosos como o sol que o resplandecia. No ventre, uma trilha de pelos vermelhos abaixo do umbigo e da barriga rígida e malhada, chegando a um pequeno monte logo acima do órgão. Suas asas eram maiores do que qualquer anjo daquele reino, ele afinal era um arcanjo, e no seu ombro havia apenas um manto branco de seda fina, que não fazia diferença alguma a todo aquele exibicionismo. Medraque ergueu as asas e, junto com os braços, abraçou o corpo hesitante de Radamathys.
- Da última vez que estive aqui, tu não eras tão rico e grandioso quanto estás agora. – Radamathys sorriu para ele, como velhos e bons amigos. O que na verdade, era um engano.
Medraque gargalhou alto, espontâneo e intimidador.
- Da última vez que estivestes aqui, eu tive que te ajudar a voltar para teu mundo. E se não me engano, quase me tornam um mortal qualquer por causa disso.
- Se estavas tão perto de decair desse jeito, por que agora és um arcanjo?
- Faz um século, Radamathys. Tive que participar de uma guerra no reino de Hiranyagarbha para conseguir subir de posto.
- Uma guerra?
- Sim, uma guerra. Mas, tu ainda não me respondeste. O que fazes aqui?
- Vim roubar tuas asas, meu belo anjo vermelho, Medraque.
O sorriso gracioso e viril de Medraque desapareceu no mesmo instante. Medraque, como Mary Donna fizera a apenas algumas horas atrás, desapareceu nas penumbras do quarto quadrilátero.
- Ah, Medraque! Tu não sabes o quanto estou cansado desta brincadeirinha de se esconder!
- Vamos brincar mais um pouco, então.
A raiva de Radamathys por ter sido enganado pela bruxa Mary Donna voltou no mesmo instante, fazendo tremer seus braços com toda a força que tinha. Radamathys fechou os olhos e deu um soco poderoso no chão. O “céu aberto” se desfez em milhões de pedacinhos, todo o sol, todo o campo de trigo, tudo desapareceu. Radamathys pôde ouvir exclamações de horror e medo dos anjos lá em cima quando viram que o reino de Medraque era feito de um vidro ilusório, e restara apenas uma noite extremamente estrelada no que antes era terra, campo, sol e horizonte.
Medraque reapareceu encolhido num canto, com as asas cobrindo seu corpo nu e deixando apenas seus olhos furiosos à mostra, fuzilando Radamathys.
- Como ousas destruir meu reino?
- Teu reino? Chamas isto de reino? Reinos são eternos, e não feitos de mero cristal, caro Medraque!
E antes que Medraque pudesse desaparecer novamente, Radamathys pulou sobre seus ombros e enlaçou seu pescoço esguio com os braços fortes e cheios de veias. Medraque tentou lutar de todo jeito, agitando as asas e tentando repelir aquele demônio asqueroso do seu corpo puro e intocado.
- Sabias que apenas com as asas de um arcanjo, um demônio pode entrar no Paraíso? – Radamathys sussurrou em seus ouvidos, mordendo sua orelha de leve e dando beijos sinuosos no seu pescoço suado. – Tuas asas, tão belas e perfeitas, tão grandes e brandas, tão sedutoras e cheirosas, serão minhas, Medraque.
- Demônio estúpido. Terás de enfrentar mais dois arcanjos para entrar no Paraíso! – Medraque ofegou.
- Como?
- Achas que apenas meu par de asas pode sustentar teu peso? Um demônio forte como tu precisas de seis asas para adentrar no Paraíso, Radamathys! Precisas derrotar mais dois arcanjos! Hahaha! – Foi a última gargalhada de Medraque.
Radamathys segurou seu sexo com firmeza, incitando-o e deixando-o rígido, e masturbou Medraque. Quando Medraque sentiu o orgasmo, quando Medraque sentiu o sabor da carne, do prazer, do mal, Radamathys arrancou seu par de asas com as duas mãos, empurrando-o com os pés descalços e sujos de lama nas costas. Medraque esguichou sangue em todos os cantos, até masturbar-se novamente numa poça escarlate, rindo como louco, conhecendo todo aquele calor impulsivo, e desaparecer para sempre do seu reino de vidro.
Reyel, abduzido por medo e angústia após sentir a morte de Medraque, entrou veloz no quarto de seu mestre, vendo apenas Radamathys segurando o par de asas com a expressão sorridente e soturna. Radamathys rasgou seus ombros entre as clavículas e as escápulas com um punhal que ele tirara do pequeno bolso no seu tapa-sexo de couro, enfiou as raízes das asas com dor e agonia, sentindo aquela pureza terrível, e só se sentiu aliviado quando percebeu que as feridas estavam cicatrizadas, e que com apenas o piscar dos seus olhos ele poderia mover aquele par de asas magníficas.
Radamathys voou para cima de Reyel, que apenas chorou como uma criancinha. Ele o abraçou por trás, cheio do sangue de Medraque, e passeou suas mãos demoníacas pelo corpo esguio do anjo adolescente.
- Tu serás a minha entrada para o reino do segundo arcanjo, pequeno Reyel. Perdoe-me, não queria matar mais do que o necessário.
- Senhor Rada... Radamathys! Por favor, deixe-me ir. – Implorava Reyel, semicerrando os olhos e mordendo o lábio inferior, choroso.
Mas era tarde, Radamathys tirou sua cueca de couro de animal e colocou-se em Reyel, alí mesmo, em pé e com força, erguendo o anjo pelas pernas e colidindo-o contra uma parede, enquanto Reyel gemia e implorava – não mais para ser libertado, mas por perdão. Radamathys ejaculou dentro de Reyel, fazendo-o estremecer enquanto o abraçava com carinho, até morder seu pescoço feito um vampiro sedento e arrancar seu coração num piscar de olhos, penetrando sua mão no peitoral branco com eficiência, como ele fizera no íntimo do anjo há pouco tempo atrás.
Reyel sangrou e soluçou no chão, estuprado e não mais, nunca mais um anjo. Ele já estava desaparecendo quando Radamathys estourava seu coração segurando-o com firmeza e desenhando um crucifixo no chão. Como no ritual anterior, deitou-se sobre o desenho e despertou em outro lugar.


~
O segundo reino tinha um céu púrpura-claro, colinas frias de norte a sul, uma lua nova branda e tão próxima que poderia se chegar até ela em apenas um pulo, pequenas estrelas formando formas e expressões entre os picos das montanhas, alces com mais de quatro metros mastigando a grama violeta e azul dos campos e terrenos abertos com apenas uma ou outra árvore, sem se intimidarem com a presença ardente do demônio intruso alí. Além da grama curiosa, havia uma quantidade incansável de flores abertas e grandes próximas às árvores e ao colossal muro de ferro e pontas que dava beleza e classe à mansão. A maioria delas também era roxa ou rósea, mas sempre com tonalidades claras e agradáveis, bucólicas.
Uma horda de anjos jovens e morenos surgiu nos céus de nuvens de areia, pousando próximos a Radamathys que ainda se erguia meio desnorteado, desejando ter se lembrado de vestir seu pequeno costume de couro para não se sentir tão exposto quanto estava naquele momento, explícito e banhado de sangue e suor.
Para sua surpresa, os anjos vieram sorridentes e receptivos, depositando uma coroa de pétalas em um dos seus chifres. Todos tinham os cabelos negros e a pele bronzeada, os olhos eram todos azuis. Na verdade, cada anjo tinha três olhos, mas aquele detalhe não diminuía em nada a beleza de cada um deles. A maioria jogava os cabelos grossos e lisos em cima da testa onde o terceiro globo ocular se mexia, causando um misto de beleza espantosa e poética.
- Quero encontrar Tzaphkiel.
- Nós o levaremos até ele, senhor Radamathys. – Disse o anjo mais próximo em seu ouvido, numa voz vibrante e curiosa, depositando a mão no ombro forte, grosso e duro do demônio.
Mas não o levaram. Radamathys foi guiado até um canteiro daquelas flores grandes e estranhas, porém belas, onde as colunas das estufas eram feitas de árvores raspadas até serem apenas troncos sem galhos, folhas e frutos, e os tetos eram revestidos de grandes folhagens e estranhas trepadeiras que se mexiam lentamente como que numa dança em ode à brisa gélida das montanhas.
Os anjos morenos o deitaram em almofadas brancas costuradas com fios de ouro e bordadas com desenhos enigmáticos e ondulados, hipnotizantes, e então começaram a beijá-lo, acarinhá-lo, tocar e apertar seus braços, pernas, barriga, peitoral, sexo, nádegas, coxas, cabelos, boca, olhos, nariz, orelha e chifres. Radamathys hesitou em vários momentos, até não ver saída e deixar aquilo acontecer. Ele afinal já estava vencido e seduzido pelos anjos de vozes persuasivas.
Beijou e foi beijado, lambeu e foi lambido, sugou e foi sugado, penetrou e foi penetrado. Era uma onda de prazer sem fim, pois quando ejaculava, já estava sendo excitado a enrijecer-se novamente. Abraçou, agarrou, apertou, montou em cima e foi montado, cavalgou feito louco, pulou, sentou e deixou sentarem, foi socado, pressionado, perfurado, castigado e esvaziado. Mas em toda aquela orgia ele sentia algo que não sentira quando penetrara em Reyel, aqueles anjos sabiam como fazer, sabiam o que fazer, e não tinham o cheiro e o gosto da pureza.
Eram demônios.
Radamathys bateu suas asas furtadas que escureciam mais a cada minuto, pelo fato de estarem num novo corpo, se afastou as agitando várias vezes até estar suficientemente longe. Os anjos morenos e incansáveis sorriram, suados e alegres, brincando com seu sêmen nos dedos e observando a densidade perolada com curiosidade, alguns até provando o seu sabor.
Num raio de segundo, as asas de todos eles escureceram como o breu, seus pequenos chifres foram revelados e seus rostos assumiram expressões de malícia... E missão cumprida.
Um alce gigante dos campos invadiu as estufas destruindo tudo à sua frente ao mesmo tempo em que os demônios pulavam e voavam para todos os cantos, foi em direção a Radamathys e abaixou a cabeça feroz, para logo erguê-la e penetrar várias pontas dos seus chifres grossos, pontiagudos e pesados no demônio surpreendido, imobilizando-o por completo entre uma parede. Radamathys vomitou uma quantidade absurda de sangue escuro, espesso e espumante em cima da cabeça do animal divino, mas ele pareceu não se importar.
Tzaphkiel, um arcanjo maior que o encorpado Radamathys e com asas mais extensas e poderosas que as de Medraque, entrou com empolgação, elegância e alegria no local destruído pelo animal descontrolado – ou controlado por ele. Tzaphkiel tinha uma barba louro-cinza como seu cabelo grisalho, mas tinha o rosto jovem e cheio de energia, o nariz pequeno, a boca sutil e os olhos grandes no rosto que exalava poder.
- Radamathys? O que fazes aqui com... – ele franziu o cenho, mas sem tirar o sorriso estampado no rosto másculo, enquanto avaliava as asas de Radamathys que ficavam mais negras e lustrosas a cada minuto – Estas asas roubadas de Medraque?
- Quero tuas asas... – Radamathys tossiu mais sangue.
Tzaphkiel soltou uma gargalhada estridente.
- Queres mesmo? Já percebeste o teu estado? Ou melhor, já percebeste que aqui nos nossos reinos tuas feridas não cicatrizam? Posso sentir o cheiro dos arranhões e das mordidas de Medraque no teu corpo, demônio insolente.
Radamathys tentou se mexer, mas tudo o que obteve foram os chifres do alce gigante entrarem ainda mais no seu corpo, ardendo nos seus ossos, artérias e órgãos como brasas incontroláveis na pele.
- Radamathys, eu vou te libertar, e tu sairás deste e de todos os outros reinos dos Arcanjos. Não importunarás mais ninguém nestas terras e irá embora sem completar o que quer que tu queiras fazer.
- Quero tuas asas... – Radamathys só conseguia tossir e escarrar o líquido escuro e metálico da sua boca cansada e sua garganta inchada.
- Radamathys, desista! – Tzaphkiel se enfureceu, causando uma ventania com as suas asas esplendorosas, quebrando e desabando quase tudo. Ele olhou por um mínimo instante para seus súditos demônios.
- Que patético... Um arcanjo que tem súditos do meu sangue!
- Criaturas mais fáceis de enganar, manipular e usar. Aliás, ainda acredito que demônios só surgiram para isso. Veja, não é ruim um arcanjo tão perfeito como eu ter súditos da sua raça, aliás, foi graças a eles que consegui capturá-lo e enviá-lo de volta para o seu devido lugar...
Radamathys fechou os olhos e forjou sua morte, expulsou sua alma do corpo com eficácia, flutuando para fora dos aposentos de Tzaphkiel enquanto este ainda falava com seu corpo imóvel. Voou até o lugar onde uma manada de alces gigantes mastigava as flores volumosas e os frutos de cores curiosas, entrando na cabeça de um deles, deixando-o totalmente inconsciente e controlando o seu corpo em direção ao castelo. Quando o alce voltou a si, estava perfurando as asas de Tzaphkiel e prendendo-o com violência contra a parede. Sentiu medo pelo ataque acidental ao seu senhor e virou a cabeça, rasgando as asas e a garganta do arcanjo narcisista, que caiu na poça do seu próprio sangue. O outro alce que prendia Radamathys também sentiu medo e angústia, recuou até ver o corpo do demônio alado caindo como um boneco de pano no chão e foi embora ao lado do seu igual.
- Demônio desgraçado! – Tzaphkiel falava numa rouquidão raivosa e desesperada.
Radamathys voltou ao seu corpo e se arrastou até onde o arcanjo se contorcia e escorregava na poça de sangue, enfiou o rosto nela e sugou como se aquilo fosse a sua única maneira de sobreviver. E era.
Quando terminou, se arrastou ainda mais até ficar em cima do arcanjo enfraquecido, virá-lo de costas e puxar suas asas com todo o restante de força que tinha e a força que havia obtido com o seu sangue.

~
Era um céu meio escuro, de um azul tão forte e vibrante que doía nos olhos, mas não havia mais nada ali além de praias e mar, além daquele lugar sem nuvens e sol, porém claro o suficiente para Radamathys enxergar tudo com exatidão após acordar com os músculos doloridos e as feridas recuperadas.
Quando se virou para examinar todo o local, viu rochas e rochas banhadas com cachoeiras que faziam córregos em direção ao mar. Era um mar doce. Um ou outro querubim banhava sua pele pura e cheirosa, sentando nas rochas e abrindo as pernas para receber a água límpida em cada parte do corpo. Nenhum deles se importou com a presença de Radamathys.
Seu primeiro par de asas já estava completamente escuro como o seu sangue e sua alma, o segundo par – recentemente roubado – estava se acinzentando pouco a pouco. Era a vez do terceiro. Ah, o terceiro... Ele já estava tão exausto daqueles malditos anjos. Anjos falsos, dissimulados, manipuladores e cheios de desejo por sexo. Não eram nem um pouco diferentes dos seres humanos. Ao menos os demônios eram justos e honráveis.
- Raphael! – Ele chamou na sua voz grossa e desafiadora.
Um farfalhar de asas silenciou o mar, o vento, os pássaros e o chiado dos córregos nas rochas que se mesclavam à água azulada na frente daquela praia branda e fria. Raphael desceu na frente de Radamathys, gentil e educado, com um sorriso discreto, mas nada enganador.
- Radamathys. Fiel companheiro de Archiri, o que fazes em meu reino?
- Raphael, quero tuas asas. Vou roubá-las e, para isso, terei que matá-lo.
Raphael, forte, porém de altura mediana, menor que Radamathys, cabelos negros e lustrosos, o rosto pueril e sincero, os olhos levemente orientais e cobertos por cílios tão longos quanto dedos, apenas fitou Radamathys sem demonstrar sentimento algum, desejo algum por morte ou batalha contra ele. Raphael tinha as asas tão grandes quanto Medraque ou Tzaphkiel, mas sua inexpressão era tão perfeita e impermeável que era impossível dizer se ele concordava ou reprovava a atitude inconsequente de Radamathys invadir os três reinos que protegiam o Paraíso para conseguir um espírito puro que pudesse ser uma cria para sua amada Archiri. Radamathys estava tão cego com a ideia de raptar um espírito que mal percebeu que havia passado por centenas de anjos que tinham tal força impalpável. Mas se seu filho tivesse alma de anjo, seria possível transformá-lo num demônio quando nascesse?
- Sim. – Raphael enfim falou novamente, lendo os pensamentos mais íntimos do demônio raivoso, nu e ensanguentado à sua frente. – Mas ele terá lembranças de que foi um anjo, e algum dia, mais cedo ou mais tarde, se rebelará contra os pais. É mais fácil um espírito puro humano, este espírito jamais se recordará de sua vida anterior, e sua transformação em demônio será mais receptiva...
Raphael se aproximou sem escrúpulos de Radamathys, depositou a mão esquerda no peitoral grande, másculo e arfante, e passeou a direita no rosto suado. Radamathys não se mexeu.
- Radamathys... Lembra-te quando tu eras Ishmäel? Um bravo guerreiro nórdico que ansiava por uma Valhalla quando morresse? Mas tudo o que lhe deram foi um lugar escuro e fundo? O completo oposto daquele país em que tua religião pagã acreditava?
- Não me chame por esse nome... – Radamathys abaixou a cabeça, mas não tirou a mão carinhosa do anjo no seu rosto áspero pela barba.
- Vês? Ishmäel? Tu eras um humano. Um humano cheio de vontade, desejo, cheio de força. Um humano que poderia viver cem anos, mas viveu trinta. Caiu nos Reinos-Demônios, seu espírito não se elevou. Seu espírito era pesado demais.
- Meu espírito queria mais.
- É claro! – uma centelha de alegria se fez nos olhos do terceiro arcanjo. – Tu querias mais, tu querias aventuras que estes reinos parados e frios jamais poderiam te dar. É para isso que existe o inferno, para aqueles que não querem viver parados, para aqueles que querem sangue, guerra e carne. Tu sabes que apenas quem tem o espírito elevado são as crianças, seres humanos que morreram cedo demais. Idosos, adultos, adolescentes, jovens, todos vão para os Reinos-Demônios, por mais pura que sejam suas almas. É por tu teres conhecimento disso que queres enfiar-te no Paraíso e ter uma, apenas uma destas almas, e ser feliz com tua amada no reino de Tunridha. É querer demais?
Aquela mão quente e carinhosa, aquela voz calma e ritmada, aquela compreensão. Ele era mesmo um arcanjo? Medraque e Tzaphkiel eram tão demoníacos quanto ele, mas... Mas Raphael, que criatura era aquela que tinha uma aura fraterna e amorosa tão forte que fez Radamathys não se mexer em momento algum, exceto quando surgiu e se ergueu para observar seu reino?
- Não sou pai, não sou filho, não sou mãe, sou apenas um arcanjo. E não me compare a Medraque e Tzaphkiel. Eles já foram bondosos e honestos, mas a sede de poder os corrompeu, e os comparou a meros seres humanos. Sou o que sou. Não irei mudar por algo, alguém ou alguma coisa...
Mas Raphael parou, pois Radamathys estava chorando baixinho, suas lágrimas escorrendo entre os dedos das mãos macias do arcanjo.
Raphael, como que numa dança sutil e lenta, o abraçou, e suas asas se ergueram rígidas, tapando um sol que não existia no horizonte, sombreando com penumbras largas as rochas e os anjos que assistiam calmos e despreocupados ao diálogo dos dois.
Radamathys hesitou, mas logo se entregou ao abraço. Rodeou seus braços fortes abaixo das axilas da criatura menor e frágil, enquanto Raphael pousava o queixo sobre seu ombro enorme e o envolvia pelo pescoço. Radamathys o apertou mais forte, sentindo os cabelos negros e cheirosos ao lado do seu rosto, olhou para o mar metálico e os céus vibrantes e se pôs a chorar com vontade.
Os querubins que se banhavam nas cachoeiras das rochas se ergueram e foram para onde o demônio e o arcanjo pairavam, enlaçados e melancólicos. Fizeram um círculo envolto das duas forças maiores naquele reino e permaneceram silenciosos e parados até Radamathys perceber que alguma coisa iria acontecer.
- Vamos, faça-me descobrir a carne. Quero tornar-me demônio, quero ser do elemento fogo, e eu lhe darei as minhas asas. Agora, Radamathys, desenhe a linguagem da tua raça no meu corpo, prepare teu ritual e faça crescer chifres na minha cabeça. Radamathys, demônio triste, a minha salvação deste mundo insignificante...
Radamathys afundou o rosto nos cabelos de Raphael, enquanto este deslizava as mãos agradáveis nas costas largas e rígidas, mordiscando seu ombro e seu pescoço, sentindo o sabor do suor do demônio. Radamathys tocou em cada parte do corpo angelical, sentindo o peitoral voltar a arfar e seu corpo esquentar ainda mais.
O demônio jogou o arcanjo na areia, os querubins subiram aos céus e passaram a tocar cornucópias e harpas em meio a vozes melodiosas, o demônio virou o arcanjo feito um boneco sem peso e o deixou de quatro, o arcanjo urrou, o demônio entrou e com suas unhas rasgou a pele das costas do arcanjo esculpindo desenhos com sangue e cortes profundos, o demônio sentiu o ápice e o arcanjo gritou, a pele do arcanjo tornou-se dourado-escura, quase um bronze, na cabeça do arcanjo brotava entre os cabelos cacheados e brilhantes um par de chifres grossos e pontiagudos, o demônio beijou o arcanjo, o demônio fez do arcanjo um demônio. Era a sua arte.
Radamathys arrancou as asas de Raphael com mais facilidade e aceitação, ao mesmo tempo em que este gemia como se a mutilação fosse um prazer incomensurável. Raphael se ergueu para tocar no seu corpo, sentir aquele novo poder, aquela nova pele mais consistente e flexível, mais bonita, e aquele par de chifres esplêndidos que não apagaram a beleza pueril do seu rosto, mas deixaram-no mais malicioso e atraente.
E num último abraço apertado, o demônio e o novo demônio se despediram. Radamathys estuprou um anjo que se ofereceu gentilmente como oferenda para assim abrir a porta para o novo reino, o reino principal. O paraíso.
Radamathys usou todas as suas seis asas com todas as forças que tinha, espirituais e físicas. Rasgou céus de todas as cores, constelações, dimensões e portas com as mais estranhas formas geométricas, e chegou ao Paraíso.



Primeiro um silêncio, um lugar brando e cheio de névoa, lá tinha sol e cheiro de grama verdejante, mas ele não conseguiu enxergar nada. Para enxergar, ele teria que usar os olhos de um arcanjo no seu corpo de demônio. Mas os olhos eram muito perigosos, pois, se passasse muito tempo sem usar os seus, poderia ficar cego para toda a eternidade.
Correu e bateu suas asas com ainda mais força. Seus músculos, ossos e olhos doíam terrivelmente, ele já estava quase conseguindo.
E então finalmente viu. Um chamariz circular com um anjo de mármore gastando sua água num grande vaso, esculpido e moldado com todo o carinho inocente dos anjos. Na borda dele, um serafim se encontrava sentado e calmo, ondulando a mão na água cristalina e depois a depositando em cima da outra no colo, olhando para o nada, calmo e sem nada a fazer. Como Radamathys, tinha três pares de asas, mas aquelas eram originalmente suas. Uma ou outra centelha de fogo se fazia e desfazia envolta dele num piscar de olhos. E sua pureza era tão forte que o demônio achou que não conseguiria mais sobreviver se se aproximasse dele.
- Metatron... – Radamathys sussurrou para si mesmo.
Metatron, o rei dos anjos, o grande serafim e dominador do fogo e do ar, o único em todos os reinos dos arcanjos e dos paraísos que tinha três pares de magníficas asas mais brancas que a própria paz. Aquela era apenas a porta do lugar onde repousavam os espíritos infantes?
- Vós gostastes desta aventura, não gostastes? – Metatron se virou e olhou diretamente nos olhos turvos de Radamathys. – Desta pequena aventura...
Radamathys sentiu-se pequenoe abaixou as pálpebras, num reconhecimento de inferioridade.
- Não te intimida, Radamathys. Não vou lhe fazer mal algum. Tu és o mal aqui, não eu.
Metatron se levantou com leveza, estava vestido com uma longa saia de seda vermelha, que ía embora da vista de Radamathys. Ergueu a mão direita, fez um pequeno movimento no ar, e o barulho de grades enferrujadas ecoou naquele lugar claro demais, como se as pupilas estivessem dilatadas. Depois, segurou as mãos numa oração mental e ao abrir de suas palmas revelou-se um olho grande e flutuante esquentando sua pele. Um olho feito de fogo e ar.
- Este olho é para tu enxergares lá dentro.
Com um sopro assoviado e hipnotizante, levou o olho até a testa de Radamathys, que adentrou em sua pele com facilidade. Radamathys já não via mais nada turvo demais ou claro demais. Aquilo era belo.
- Podes ir. Vá! Eu deixo! Quando eu sentir que tu enlaçaste um espírito nos teus braços, farei com que tu voltes ao teu mundo sem precisar passar pelo mundo humano ou Gaia.
- Mas... Mas... Tu não irás fazer nada para proteger o Paraíso?
- Proteger do quê? De um demônio que destruiu três reinos e três arcanjos para chegar até aqui por uma única alma que pudesse salvar seu amor para com Archiri? Tu queres uma alma, não queres? Vá! Vá buscá-la! Tenho certeza que qualquer espírito humano que tu pegares será um demônio tão forte e corajoso como tu, Radamathys.
Radamathys não soube o que falar. Então apenas abaixou a cabeça novamente, as seis asas negras e os três olhos também.
- Obrigado, Metatron.
- Não demore.
Radamathys hesitou uma última vez, quando já estava próximo às grades de ferro, olhou para trás e viu Metatron velando-o com calma, as asas descansadas e caídas, o rosto bondoso, porém inexorável. Ele já podia ver o quanto longa era a saia de seda vermelha do serafim, podia até sentir seu coração pulsando de nervosismo.
- Raphael era parecido contigo, Metatron...
Metatron pensou um minuto antes de falar.
- Raphael era meu pupilo. Amei Raphael. Raphael se foi.
Os olhos do serafim umedeceram, mas Radamathys não viu mais nada, pois entrou nas portas do paraíso, tateou o ar até sentir algo quente, braços pequeninos e aflitos, braços de uma criança chorosa e perdida, procurando seu colo. Seu corpinho minúsculo foi levantado com apenas um braço de Radamathys, que sentiu um peso nos três olhos e no seu coração como nunca havia sentido antes em toda a sua fria imortalidade. Todo aquele sangue, todos aqueles arcanjos mutiladores, todas as guerras pelas quais ele passou foram esquecidos, desfizeram-se, sumiram do seu peito, e pela primeira vez ele sentiu o alívio, a leveza e a simplicidade do que era ser feliz.
Abraçou o corpinho minúsculo com lágrimas a descer-lhe do rosto cansado e fechou os olhos, abrindo-os no mesmo instante em que ele descia nos campos gramados do reino de Tunridha. Veja, alí está o castelo da princesa Archiri!
Radamathys se desfez em névoa negra para se transportar com mais rapidez aos aposentos de sua amada, surgindo no meio do salão central com a criança no colo e as seis asas batendo e fazendo ventania de norte a sul.
- Archiri! Archiri!
Ele já podia ver os cabelos negros e lisos de Archiri em cima de uma almofada, numa das várias e longas poltronas, e uma outra presença alí.
Adramelech, o príncipe do reino de Hiranyagarbha, saiu de cima do corpo nu de Archiri num pulo. Archiri também se levantou assustada e descabelada, o coração pulsando tão forte que Radamathys poderia sentir a quatro metros de distância seu nervosismo e ânsia por contar uma mentira.
- Radamathys! Meu amor! – Ela tentou. Adramelech apenas assistia a tudo, calado.
Os olhos de Radamathys se escureceram por completo. Ele não chorou, não destruiu e não assassinou. Apenas segurou o bebê adormecido no seu colo com mais carinho e cuidado, virou as costas e foi embora.
- Volte! Meu amor! Volte aqui com meu filho! – Archiri gritava, ora furiosa ora desesperada.
Ele não voltou.








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Black Cherry

Artes: Nicole Absher, Herbert Draper

Witch Fire - 04: Archiri


16.074 - Tempos dos Reinos-Demônios



Quando Archiri chegou cavalgando no seu bode gigante, Radamathys a recebeu com seu habitual abraço cavalheiro. Archiri tinha uma aparência juvenil, era pequena e seus cabelos longos e negros chegavam até o chão, possuía um chifre torto abaixo da nuca, e sua testa era marcada por um círculo negro e profundo, como um grande vazio na sua cabeça, mas na verdade era apenas uma tatuagem feita pela deusa Tunridha.
- Chegaste, minha dama dos beijos. – Radamathys dizia, com sua voz grossa de veludo demoníaco.
Archiri o enlaçou pelo pescoço com esforço. Radamathys era grande, musculoso, tinha a pele dourada e usava apenas um pedaço de couro de bode para cobrir seu nu frontal. Sua beleza era estranha, exótica, e atiçava. Ao contrário de Archiri, que era dona de olhos claros, os de Radamathys eram escuros e discretos. Tinha um par de chifres que nascia nas laterais de sua cabeça, entre os cabelos meio lisos e meio cacheados que chegavam até os ombros.
- Estou cansada, meu demônio, mande preparem um banho para mim. – sua voz era doce e aguda, porém rouca, e combinava com seu corpo e aparência juvenis.
- Mas é claro. – ele enrolou uma mecha dos seus cabelos nos dedos grossos, grandes e ásperos, e depois eram apenas cabelos ao vento e Archiri de frente para uma névoa negra.
Archiri, princesa do reino de Tunridha, entrou na sua grande morada a passos lentos e calculados na majestosa escadaria coberta por um infinito carpete violeta. A mansão era sustentada por pilares circulares, as portas de ouro escondiam uma beleza ainda maior. Dentro desta, os tetos mal podiam-se ver, eles se confundiam com os céus em meio a pinturas extremamente realísticas nas abóbadas e lustres que suspendiam centenas de luzes brandas. Espíritos de humanos condenados.
Ela fez o mesmo que seu marido Radamathys, se desfez em névoa negra e se teletransportou para o seu quarto, tão grandioso e luxurioso quanto o salão de entrada. Desabotoou seu longo vestido negro que deixava os ombros nus e partiu descoberta para o banheiro. Deitou-se numa banheira cheia de uma água avermelhada – água mesclada a sangue humano – e lavou-se com toda a sensualidade que um demônio poderia ter. Radamathys surgiu nu na banheira circular, passeando sua língua vermelha e longa na barriga magra de Archiri, subindo nos seus seios de mamilos púrpuros e aconchegando seu queixo no pescoço da sua princesa.
- Quero um filho, meu Radamathys. Quero um pequeno demônio para amar e criar. Quero que ele seja o rei de Tunridha, que governe esta terra com toda a força que herdar de nós.
Radamathys respondeu com beijos e carícias, segurando o chifre na nuca de Archiri e engolindo seus lábios com tal ferocidade que ela estremeceu sob seu corpo grande, duro e nu. Ela se ergueu sobre ele, mordeu e penetrou seu peitoral com seus dentes afiados, e sorveu do seu sangue negro e apetitoso, com um gosto de homem, de coragem e ao mesmo tempo de um sentimento obscuro que ela não conseguia distinguir ou reconhecer.
Radamathys penetrou em Archiri debaixo da água ensanguentada, enquanto ela dançava lentamente em cima de suas coxas grossas, e soltava gemidos e uivos agudos comemorando o acasalamento. Apenas ele sabia que ela nunca poderia ter filhos, e teria de encontrar uma forma de obter um para aquela princesa tão amaldiçoada.
Condenada a viver presa no reino de Tunridha, sem procriar. Apenas ela, alí, desamparada, governando aquela terra esquecida sobre tantas terras e tantos países maiores, mais poderosos e infinitamente superiores.
Ah, como Radamathys desejava a felicidade de sua alma gêmea!
O que ele poderia fazer? A não ser enganá-la e manipulá-la pelo máximo de tempo possível até ter um plano em mãos?
Quando terminaram, ele a carregou para a cama triangular, da qual pingava sangue nas bordas dos lençóis. Os acolchoados eram corpos, eram caça, eram o símbolo de poder e força, usados como reles lugar de repouso. Um anjo de asas atrofiadas, machucadas e amarradas em cordas escuras, entrou com uma bandeja e serviu dentro de uma taça pontiaguda um líquido transparente com algo mais denso e azul no fundo. Archiri o bebeu e adormeceu.
- Boa noite, minha bela.
Radamathys se desfez em névoa negra e saiu do castelo de sua amada. Assoviou e dilatou as pupilas para chamar seu ajudante, um cavalo negro de seis pernas e duas cabeças, olhos escuros e bafo de inferno, para montá-lo e partir em busca de consolidar o plano ousado que ele estivera construindo em pouco tempo.
Ele subiria ao mundo dos humanos, para assim penetrar no mundo dos céus, e roubar uma alma pura para que pudesse, assim, dar vida a um filho.
Com fortes galopadas, rasgou as terras de Tunridha e empoeirou as estrelas do céu violeta, em que residia uma lua pentagonal, como um círculo de várias pontas, de cor azul-marinho e que pouco iluminava as colinas e o gramado logo abaixo.
O cavalo relinchou, ergueu as quatro patas dianteiras e balançou as cabeças como se estivesse enlouquecendo, Radamathys não o acalmou, permaneceu firme em cima do seu animal e, com uma unha afiada, fez um corte no seu pescoço e rugiu para o fim do horizonte.
Agora estava completamente escuro, mesmo sua vista acostumada com a mais mórbida das escuridões não conseguia distinguir nada. Ele caminhou em cima de algo mole, fedorento e que chiava a cada passo seu, queimando seus pés descobertos. Radamathys rugiu mais uma vez para se proteger e uma aura que saiu dos poros da sua pele repeliu toda aquela criatura disforme e gigante que queria engolí-lo. Ele rasgou todo o couro que cobria sua cintura, parte do seu peitoral e suas costas, ficando completamente vulnerável a qualquer toque e ato de agressividade. Mas ele já sabia o que fazer.
Radamathys rugiu o mais alto que pôde, quase estourando suas cordas vocais, fez movimentos rápidos com os braços e as mãos, numa dança mútua e veloz, e então pulou para fora de uma fogueira negra, enquanto seus súditos o olhavam em total apreensão.


~
1674


Sentiu aquele ar frio, com odor de espíritos vivos, carne humana e árvores enormes e apetitosas da qual ele poderia sorver a vida quando bem quisesse para sobreviver naquela dimensão.
Os súditos de Radamathys, criaturas horrendas com a pele escura como o breu, começaram a venerá-lo em ritmos perfeitamente compassados, voltando às suas canções interrompidas quando o próprio saíra da fogueira feita por eles para adentrar o mundo humano. Aquele lugar frio, cruel, cheio de criaturas que visavam somente o seu único bem.
Os homens gigantes trouxeram alimento e roupas de couro para seu dono se vestir. Radamathys se sentou na grama, ainda nu, e mordeu um pedaço grande e sangrento de carne de carneiro. Aquilo era incrivelmente amargo para ele, mas por ora era necessário.
- Por que demoraram? – ele falou, numa voz séria, repreendendo o trabalho, o único trabalho, que seus súditos tinham. – Gaia quase me engole, esqueceram que não é permitido alguém da minha espécie passar na porta dela?
- Perdão, senhor. – uma das anciãs abaixou a cabeça, e todos fizeram o mesmo. – Uma mortal nos interferiu enquanto clamávamos pelo senhor.
Radamathys descansou fitando o horizonte, o céu estava adquirindo tonalidades mais claras e mais bonitas, era o amanhecer.
- Uma mortal? Mortais não podem nos ver.
- Então... O que ela era, se não mortal, senhor?
Ele engoliu o último pedaço da carne crua, e então respirou fundo, procurando acalmar seu espírito daquele medo que ainda pulsava nas suas veias de quase ser devorado por uma titã furiosa, de um poder incomensurável.
- Bruxa.
Radamathys se ergueu, assustando seus súditos que o fitavam em total concentração, e então ergueu a palma da mão para eles, esticando os dedos para cima e colocando o polegar no meio, enquanto o longo anelar lentamente se aproximava da ponta do primeiro dedo.
- Vão. – ele sussurrou. Um sussurro que nem ele conseguira ouvir muito bem, e todos os seus súditos desapareceram, deixando um odor ocre de carne queimada e putrefata.
Radamathys adentrou a floresta de pinheiros, eucaliptos e extensas angiospermas e gimnospermas, e começou a acostumar suas pernas ao gosto daquela terra e ao cheiro daquele mundo. Já estivera alí uma vez, mas nunca conseguiria se acostumar à qualquer coisa daquele mundo, pensou.
Então começou a correr e a pular, já estava menos travado e mais solto para dar grandes saltos por cima das árvores quebradas e troncos retorcidos e despencados por trovões. Naquela floresta, aliás, havia uma quantidade imensa de troncos e galhos caídos, mais do que o normal, observação que ele associou a presença de humanos e bruxas não muito longe dalí. Provavelmente uma vila.
Radamathys tropeçou e bateu com o ombro numa árvore, caindo para o lado e olhando para todos os cantos com extrema surpresa. O que era aquilo do qual ele não sentira a presença?
Ouviu o choro de uma criança e imediatamente tomou uma forma mais humana e ocultou seus chifres com o poder da sua mente. Uma das leis de Gaia era a de que um demônio jamais deveria ir para o mundo dos humanos, pois, se topasse com um, seria rapidamente visto em sua forma original. Radamathys foi mais veloz e esperto.
Uma velha senhora com os cabelos grisalhos bagunçados, o nariz sangrando sem parar e os braços velhos e trêmulos buscou um bebê também ensanguentado que chorava escandalosamente. Ninou-o até que conseguiu fazê-lo se silenciar, e só então olhou para Radamathys, que estava bem convincente como humano.
Foi a vez da velha gritar e tentar correr, mas Radamathys a segurou pelos pés com as sombras das copas das árvores. Mil folhas caíram sobre eles.
- Me largue, demônio! – ela o fitou com fúria e desprezo. – Volta para teu mundo!
- Demônio? Não sou um demônio. Sou humano! Não vês? – ele esticou seu braço e beliscou a pele branca e humana, mas tudo o que conseguiu foi fazer a velha se encolher ainda mais.
- Tu não me enganas. Sei quem tu és, sinto tua aura maligna debaixo desta pele falsa!
- Então, quem eu sou? – Ele riu, brincalhão.
- Demônio! Criatura manipuladora e capciosa! Um adversário de Deus!
- Tu acreditas em Deus, mulher?
A mulher o repreendeu ainda mais com o olhar, como se ele tivesse feito algo asqueroso na sua frente. Radamathys se aproximou ainda mais, já até podia ouvir os pulmões da velha trabalhando e fazendo-a ofegar de medo. Ela gritou quando ele tocou nos seus cabelos e os cheirou.
- Mary Donna! É este o teu nome, não é? – E cheirou novamente para confirmar. – Foste tu, não foste? Que interferiu no ritual de abertura dos meus súditos e quase me fez ser engolido por Gaia?!
- Demônio! Afasta-te de mim! Vou lhe amaldiçoar como nunca amaldiçoei ninguém! Tu conheces as leis, finja que não existo, e eu finjo que tu não existes. Não invada meu mundo, que eu não invado o teu!
- Ahh... Então tu és uma bruxa! – ele sorriu vitorioso. – Senti isso a partir do momento em que topei contigo!
- Vá embora!
- E que criança é essa? Tu também sentes o poder dela? E que poder! – Ele fitou a criança, espantado e admirado, e então, aprisionando ainda mais a velha nas sombras, tocou na cabecinha que adormecia como um anjo minúsculo. – Sabes que ela é mais poderosa que tu? Esta pequena criatura?
- Conheço minha dinastia, demônio. Conheço seus poderes. Conheço quem veio antes de mim, e quem virá depois. Não ouse me advertir de algo que já sei, que na verdade sempre soube.
- Ela... Charlotte é o seu nome, não é? – Ele acarinhou ainda mais a cabecinha encolhida no manto manchado de sangue da velha. – Ela é... Ela é perfeita!
A velha se libertou das sombras e, ironicamente, se ocultou nelas, enganando o olhar do demônio Radamathys. Radamathys entrou em pânico, em um minuto havia encontrado a criança mais poderosa e mais apta a tornar-se uma filha de Archiri, e já estava cancelando seus planos de invadir o reino dos céus, e no outro aquela velha, aquela bruxa de nome Mary Donna, desaparecera com o objeto da sua felicidade e da felicidade de sua amada!
- Apareça, Mary Donna! Não ouse me desafiar! – Ele gritou para a floresta, que dava como resposta apenas o chilrear de pássaros e o farfalhar frondoso das árvores. – Mary Donna! Negocie comigo, bruxa ignorante! Tu podes ter o mundo com o poder que posso lhe oferecer!
- Vá embora, demônio! – a resposta se propagou, e ele não soube distinguir de onde viera. – Nunca negociarei nada contigo! Ela pertence a mim!
- Ahh... Não pertence não! – Radamathys gargalhou para a floresta. – Pensas que não senti? Ela não é tua filha! Ela é filha de tua filha! E a filha de tua filha clamará por uma vingança cruel a ti quando te encontrar, Mary Donna. E quer saber mais? Eu a ajudarei quando a hora de nos toparmos chegar!
- Não ouse... – a voz de todos os lados ameaçou.
Radamathys gargalhou ainda mais alto.
- Então me dê! Dê-me esta criança! Eu preciso dela mais do que tu, bruxa inconsequente!
- AAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!
A velha reapareceu quando as sombras a expulsaram de sua invisibilidade, e caiu de joelhos, mas em momento algum deixou de proteger a pequena Charlotte nos braços. Radamathys se aproximou e ela se recolheu toda, como um pequeno caracol.
- Dê-me! E não tente mais me repelir! Sou um demônio! Sou mais poderoso do que teu medíocre sangue humano!
Ele pisou nas suas costas e tentou amparar o pequeno bebê, mas ali não havia mais bebê ou Mary Donna. Era apenas um vestido velho, preto e sujo, e um manto manchado de escarlate.
Radamathys, cheio de raiva por ter sido enganado, rogou:
- MARY DONNA! OUÇA-ME BEM! IREI AO REINO DOS CÉUS E TENTAREI TRAZER UMA ALMA, PARA CONSEGUIR CRIAR UM FILHO PARA MINHA AMADA ARCHIRI! SE EU FALHAR, VOLTAREI AO MUNDO DOS HUMANOS E LHE PROCURAREI ATÉ CONSEGUIR TER CHARLOTTE NOS MEUS BRAÇOS!
A resposta demorou, mas veio:
- PEGUE CHARLOTTE E EU ENTRO NO TEU MUNDO PARA ROUBAR A ALMA DE ARCHIRI, ARRANCAR SEUS OLHOS E MUTILAR SEU SEXO!
Depois, mais uma vez, apenas o som de pássaros, árvores e pequenos animais roedores. Radamathys se contorceu em agonia e desespero, chorando e apodrecendo árvores a cada passo firme que dava, voltando à sua forma original de um segundo para o outro.

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1680


Ammaleth deitou-se na sua cama com delicadeza e, com dois dedos, tirou um pouco do líquido espesso e denso do pequeno caldeirão, colocando-o nos olhos, na testa e, abrindo um pouco o vestido, no meio dos seios. Buscou um pano molhado com água quente em cima do criado-mudo, com um leve estalar de dedos fez as cortinas serem fechadas da janela do quarto, pôs a farpela sobre as pálpebras trêmulas, e então adormeceu.
Sentiu uma dor profunda em cada osso do seu corpo, em cada nervo e, mesmo dormindo, em toda a sua pele. O seu espírito estava se despregando do seu corpo à força, ela sabia que na próxima vez teria de moderar a quantidade de fiapos de Rim de Tengu na poção, pois todo aquele desvencilhamento estava acontecendo de uma maneira rápida demais. Ela mal teve tempo para meditar ou se acalmar no seu subconsciente.
Por uma centelha de momento, viu a si mesma em lembranças segurando pela primeira e única vez Charlotte nos braços, enquanto Mary Donna a olhava impetuosa e pronta para tomá-la do seu domínio. Ela tinha que se concentrar, ela devia se concentrar, e então abraçou seu corpo espiritual e saiu daquela recordação no mesmo instante.
Ammaleth, em espírito, assistiu seu corpo na cama respirando lenta e profundamente, temeu que alguém quisesse visitá-la, ou que entrassem na cama. Pior ainda, que esse alguém fosse Auguste. Ela confiava em Auguste, sim, mas e se a sua fé fosse maior que o seu amor por ela?
Ammaleth temeu por tudo, mas saiu da sua casa flutuando com leveza e rapidez. Era bom estar em espírito, era agradável e ela não conseguia sentir nada de ruim. Mas se ficasse muito tempo assim, seu corpo físico poderia morrer e apodrecer na cama em poucas horas.
A bruxa enfim chegou à floresta, piscando várias vezes para se habituar à visão espírita. Quando se sentiu pronta, passou a fechar os olhos e tentar captar a energia do livro de Ramadathys.
- Rosanne, mãe de minha mãe, dê-me forças para captar a energia do segredo de Radamathys. Rosanne, Bruxa Clara, senhora das ilusões e mestra da curandeira, ajude-me.
A floresta pareceu responder a todas as preces de Ammaleth. Os pássaros empoleirados nos galhos se agitaram e passaram a piar escandalosamente, num estridente coral de notas agudas. Sentiu o cheiro dos orvalhos, dos eucaliptos, ipês, pinheiros, tudo de uma vez. Mesmo em espírito, aquilo era maravilhoso. Apenas o sol Ammaleth não via. Na verdade, em espírito era impossível de se ver. Aquele sol era para os mortais, se Ammaleth quisesse sol, ela teria de estar realmente morta para subir a outro plano e presenciar o Paraíso ou os reinos submersos.
Rosanne, mãe de Mary Donna, filha de Catherine e avó de Ammaleth, surgiu numa aparência cansada e taciturna. Os olhos verdes estavam fundos na pele enrugada e flácida, os cabelos cacheados cinzas e se misturando ao negro, um vestido preto e longo, a beleza da dinastia Coeurcourt desaparecendo desagregadamente.
- Ammaleth! – Ela sorriu, um sorriso triste e generoso, e sentou-se em cima de um tronco grosso e despencado.
- Rosanne, avó! Ajude-me!
- Onde está o preço?
- Eu lhe pagarei depois.
- Então. Eu confio em ti.
Como um sopro de vida e alegria, o espírito de Rosanne entrou no espírito de Ammaleth e, impulsivamente, passou a guiá-la em direção ao “caixão” do livro. Ammaleth sentiu-se puxada pelo peito sem ar, flutuou e passou entre árvores e galhos, folhas e frutas, sentindo seu sabor, mas sem poder prová-las de fato. Rosanne a levou até uma pequena gruta, escondida em rochas e montes de folhas secas, resultado de um trabalho árduo de pequenos animais daquele habitat.
Rosanne desapareceu de dentro da neta, deixando um suave calor emanando do seu espírito. Proteção.
Ammaleth pousou sobre as pedras frias e cobertas de musgo, penetrou na caverna estreita e então sentiu a força negativa do livro. Correu até ele, enterrado com desespero perto de um córrego e oculto por mais e mais pedras, enfiou a mão impalpável na terra, tocou na capa e despertou caindo com força no chão, enquanto cadeiras e mesas faziam o mesmo na sua casa. Além dela, quase tudo estava levitando nos quarenta e três minutos em que passou fora de seu corpo.
Levantou-se com dificuldade, sentindo uma dor de cabeça insuportável pelo atrito com o chão de madeira, e então abraçou o livro achado, por algum tempo, até sentir sua quentura negativa fazer seu coração pulsar mais rápido. Ammaleth o largou no mesma hora, buscou-o de novo, correu para o porão e começou a ler.
Radamathys e Archiri, Radamathys e os três arcanjos, Radamathys e a busca incansável e sangrenta por alguém ou alguma coisa que pudesse ser um filho para sua amada.








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Black Cherry
Arte: Nicole Absher

domingo, 23 de outubro de 2011

Witch Fire - 03: Radamathys


1680
Formigas lhe picaram os pés descalços e sujos, ele correu com determinação, sentindo os galhos caídos e as folhas secas estralarem sob seus pés. A floresta estava gélida e silenciosa, como se todos os seres vivos estivessem de luto por alguma coisa. Entre galhos grossos e árvores esqueléticas. Pinheiros e angiospermas, uivando em movimentos ondulantes, naquela noite aterradora e alaranjada...
Alaranjada?
Alí estava, mais adiante, uma fogueira gigante e incontrolável, um pouco mais distante da floresta para que esta não corresse o risco de ser consumida em chamas. Barulhos, uivos, urros, gemidos, a cada passo Louvier podia distinguir um som diferente, como se todos juntos formassem uma canção, definhando-se ao vento e entre as formas trágicas das árvores, muito próximas, muito separadas. Agora, ele já via a luz da lua entrando em espaços maiores, rochas cobertas de limo e um ou outro zumbido infernal.
Louvier sentiu um medo, um instinto gritante no peito de sair daquela floresta, procurar o seu lar e se esconder debaixo da cama segurando um rosário e orando mil Ave Marias para espantar o terror na sua cabeça. Mas aquela fogueira, aquela fogueira alta e dançante ao luar cheio, era tão encantadora, tão curiosa e estranha. O que uma fogueira fazia alí, após a floresta, enquanto criaturas disformes cantavam e dançavam ao seu redor?
Criaturas. Algumas esguias e gigantes, com mais de dois metros, agitando os braços e pernas e pulando, outras medianas, as que cantavam, e outras menores, miúdas, estas segurando com cuidado animais pequeninos e mortos entre seus braços. Louvier engoliu todo o medo, embora lhe parecesse infinito, e avançou para chegar mais perto daquele ritual tão aterrador e feroz. Nenhuma daquelas coisas sentiu sua presença, e se estavam sentindo, não deram importância.
Tinham a pele escura, como se queimada por um fogo tão brusco quanto aquele que feria as estrelas no céu, os olhos eram saltados das órbitas, tinham cílios enormes, do tamanho de mãos humanas, e as bocas eram redondas e cheias de dentes afiados, exibindo línguas bifurcadas e tão negras quanto os seus corpos. As criaturas menores eram corcundas e tinham o rosto murcho, provavelmente as mais velhas. As medianas rebolavam e agitavam a língua no ar, ressoando cantos guturais e que doíam na alma, enquanto suas mãos longas e pontiagudas massageavam seus sexos, estas deviam ser as mulheres se preparando para o acasalamento. E os gigantes, os que dançavam nus enquanto seus órgãos se agitavam e se excitavam, eram os homens.
Por um breve instante Louvier se sentiu hipnotizado pela voz das mulheres, que chegavam a notas altíssimas e tão agudas que poderiam causar um ferimento nos tímpanos como uma agulha ferroando. Então algo fez seu coração bater tão forte que ele temeu ser ouvido pelas criaturas.
As anciãs levantaram os corpinhos dos animais para cima, mostrando para a lua branda e fugaz, mas aqueles pequenos corpos não eram de animais. Eram bebês.
Bebês mortos, com suas boquinhas abertas e suas línguas para fora, as cabecinhas prematuras despencadas para o lado nos pescoços moles. De longe, eram como bonecos.
As anciãs começaram a se agitar como os homens, e as mulheres elevaram suas vozes numa única nota. Os homens, o vento, o zumbido, as línguas, tudo parou, até a grande fogueira estava quase parando, mas tudo o que aconteceu foi a mudança de seu ritmo. Ficou lenta, entorpecida, hipnotizada.
A primeira das cinco anciãs jogou sua oferenda na fogueira, e algo como uma cabeça monstruosa se formou nas labaredas, engolindo o corpo e o consumindo em poucos segundos. Então veio aquele odor horrível de carne humana apodrecida invadindo as narinas de Louvier, que nada podia fazer a não ser assistir. Um minuto depois, a segunda e a terceira também atiraram, com determinação e orgulho. A quarta hesitou e atirou de olhos fechados, quando os abriu, estava extasiada. A sensação de jogar uma criança morta naquela fogueira demoníaca, para aquelas criaturas, era a sensação de um orgasmo.
E antes que a quinta jogasse o último bebê, um gigante desceu da encosta e foi na direção de Louvier. Era nesse momento que ele acordava, era nesse momento que ele nunca deixava o pesadelo continuar. Mas já era a sua sexta noite tendo o mesmo sonho, e começou a acreditar que, se deixasse tudo continuar, ele poderia se livrar daquele inferno onírico de uma vez. E deixou.
O homem gigante puxou o braço de Louvier que se encolhia atrás de uma árvore e o levou para perto do seu grupo. A última anciã o olhou com desdém e curiosidade, mas aceitou sua presença no ritual.
Eles fediam, fediam a fezes e pus, à carne queimada e podre, a fungos e a um veneno desconhecido. Pareciam ter vindo debaixo da terra... Mas se não eram humanos, não eram animais, e muito provavelmente não eram deuses, o que eles eram?
A anciã não o deixou pensar em mais nada, ela se aproximou, ainda com os braços esticados e as mãos longas segurando o corpo do bebê, e cheirou Louvier no pescoço. Louvier suava frio, mas não fazia nada, não tentou se defender nem gritar. Achava que, se fizesse algum movimento brusco, os gigantes o jogariam na fogueira, ele morreria nos sonhos e não saberia o final dele. Teria que sonhá-lo de novo.
O jovem padre segurou suas mãos, a anciã se afastou num pulo, jogou a última oferenda e gritou:
- Radamathys! Archiri!
E todos responderam em uníssono:
- Radamathys! Archiri!
Num instante, os gigantes e as mulheres entraram num estado de inconsciência coletiva, balançando a cabeça lentamente, enquanto as anciãs continuavam a gritar Radamathys e Archiri. Os sexos das mulheres sangraram, e os órgãos rígidos dos homens expeliram um líquido amarelado, o sêmen. A fogueira laranja se tornou branca, e depois escureceu. Um escuro autêntico e causticante, não o negro-azul da noite. Era a própria escuridão.
A fogueira então se partiu num uivo infinito, e uma menina de longos cabelos negros, com um círculo escuro na testa, surgiu segurando uma flor de lótus.
Foi então que Louvier tentou gritar, mas não conseguiu. Tentou se mexer, mas era impossível, seus músculos não respondiam ao seu chamado. Tentou esbravejar e sair correndo, tentou acordar. Mas aquelas criaturas de alguma forma haviam conseguido o que queriam, haviam aprisionado Louvier no seu próprio sonho.
Sua única saída foi orar, orar para que alguém o acordasse, antes que aquela menina de olhos assassinos fizesse alguma coisa, antes que ela saísse da fogueira. Porque o que ele sentia quando a via não era inocência e beleza. Era desespero, ódio, vingança, desejo por destruição. O desejo de abrir o primeiro dos seis cadeados do Grande Portal.
- Louvier! Louvier! Irmão! Acorde!
Louvier abriu os olhos e não conseguiu distinguir nada, sua visão estava embaçada, Auguste o agitou pelos ombros e só assim ele percebeu que havia finalmente sido acordado. Suas preces foram ouvidas.
- Louvier, tu não paravas de gritar. O que aconteceu? O que estavas sonhando?
Louvier olhou para o seu irmão, todas as suas palavras se engancharam na sua garganta, então ele o abraçou e chorou. Era a única coisa que seu corpo e sua mente pediam naquele momento.

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1664
Sete da manhã. O ar de grama e pinheiros entrou na janela aberta de Ammaleth, que levantou da cama num pulo e tomou um banho eficiente. Olhou para a pequena Virgem Maria de gesso empoleirada num palanquezinho de madeira feito de última hora na sala, segurando seu filho Jesus, e depois para sua mãe, Mary Donna, numa cadeira de balanço, amamentando sua irmãzinha Carlotta.
Ammaleth com sete anos já tinha olhos grandes e verdes, de um cristalino raro que absorvia a cor ao seu redor quando chovia. Sua pele branca, de um suave damasco, valorizava o rosto oval e pueril, em contraste esplêndido com os longos cabelos negros e cacheados, desde que nascera nunca foram cortados. Ammaleth, após dez anos, mudaria apenas de altura e ganharia seios.
Mas o que atiçava a curiosidade da menina era o grande anel de ouro que incrustava uma esmeralda arredondada e meio escura, no dedo médio de sua mãe. Ela um dia perguntou sobre o anel, e sobre o seu pai. Ele teria dado a Mary Donna aquele objeto explicitamente caro e valioso? Ela não respondeu, apenas foi buscar Carlotta que chorava no cesto de vime.
Mary Donna, após conseguir fazer o bebê dormir, o depositou no mesmo cesto, acomodou-o nas cobertas suaves e quentes, e puxou o braço de Ammaleth com aspereza.
- Venha comigo, Ammaleth. – sua mão era quente, dura e concisa.
Ammaleth já sabia o que era. Desde pequenina, sempre soube que era uma bruxa. Que teria apenas que procriar mulheres, se fossem homens, nasceriam estéreis, e teria de dá-los para Cernunnos. Que teria de esconder esse segredo pesado e mórbido pelo resto da sua vida. E pelo resto de sua vida, dificilmente encontraria um pouco de felicidade. Ela só não sabia que este pouco de felicidade se comparava a quase nada.
Mary Donna tinha uma casa invejável. Não chegava a ser uma mansão, mas era espaçosa, confortável, cheia de móveis ilustres e pinturas perfeitas nas paredes. Ela já ensinara uma vez a Ammaleth quem eram aquelas mulheres nas pinturas.
- Esta é sua bisavó Catherine. E esta é minha mãe Rosanne, sua avó. Aquelas são minhas irmãs, Mary Alice e Mary Chrétien. Mary Alice é um prodígio na nossa família. Uma vez, sozinha, conseguiu invocar Huracán para salvar sua filha dos súditos de Radamathys, que é o companheiro fiel de Archiri. Mary Chrétien, no entanto, é uma vergonha, ela nos detesta e se detesta por ser bruxa. Vive empoleirada nas igrejas esperando que Deus caia do céu para salvá-la... Uma pobre coitada, se você quer saber.
- Deus existe, mamãe?
- Deus, Ammaleth, é apenas um entre vários deuses. Já lhe ensinei isso. Huracán, Cernunnos, Krishna, estes podem ser até mais poderosos do que Deus. A diferença é que Deus tem um exército de arcanjos e anjos para as suas ordens, os outros deuses trabalham sozinhos, ou com alguns animais e elementos de Mãe Gaia. Mas na maioria das vezes, sozinhos.
- O que são os súditos de Radama...
- Radamathys? É melhor você não saber. Esta é magia escura. Nós somos Bruxas Claras, Ammaleth. As Bruxas Escuras são nossas adversárias. Não posso dizer se são boas ou más, porque em nossa família também há grandes mulheres ardilosas. Mas são adversárias formidáveis. Competimos com a obtenção de elementos, escritos, livros sagrados que são cruciais para a nossa raça, feitos por nossas ancestrais e enterrados em várias florestas por aí. Competimos até pela atenção dos deuses. Ter um deus amigo é a melhor virtude que uma bruxa pode ter, Ammaleth.
- Por que nossas ancestrais enterraram coisas tão importantes pra nós?
- Proteção, Ammaleth. Era preciso enterrar para assim repassar para as novas gerações. Ou então, quando um livro fazia descobertas demais sobre outros seres e magias, elas enterravam por medo e precaução. Temos que ter muito cuidado com as linhas.
- As linhas?
- As linhas que separam o nosso mundo de outros, as linhas que carregam os destinos, as linhas dos passados, as linhas que aprisionam criaturas que nunca devem ser libertadas, e que escondem portais que jamais deverão ser abertos. Estas são as linhas, Ammaleth. Invisíveis para os olhos humanos. Para os nossos olhos de bruxa, são como pequenas contas luminosas. Já vistes uma gota de água numa folha ao luar? As linhas são assim à primeira vista. Nunca as olhe por muito tempo, elas podem te atrair, e isso provavelmente não lhe trará benefícios.
- Mamãe...
- Chega de perguntas. Venha, vamos para o sótão, preciso lhe ensinar a se proteger dos Demônios do Sol. Eles sentem nosso cheiro a quilômetros de distância. E não existe nada mais poderoso para eles do que sangue de bruxa.

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1680
Ammaleth correu para casa. Entrou ofegante e descabelada pelo vento, Auguste só chegaria ao início da noite, e ainda era dez da manhã, ela teria bastante tempo para a sua busca.
Subiu no sótão e encontrou apenas teias de aranha e poeira. O porão estava fora de questão. Então se lembrou do costume das suas ancestrais. Ela teria que encontrar o livro sobre Radamathys, o fiel companheiro de Archiri, na floresta. Para isso, usaria uma velha forma de achar as coisas de um jeito mais fácil, meditando por tempo suficiente até sua alma se desprender do seu corpo.
Voltou para o porão e pegou três frascos enquanto uma chaleira cheia de água era fervida na lareira, em cima de finas vigas de ferro.
Óleo de Lótus, rim de Tengu e sementes de Maçã Azul. Com eficiência, desfiou o rim seco e bateu as sementes numa cuia até deixá-las esfareladas, para no fim misturar tudo no óleo de Lótus, despejado sobre a água quente. Agora o sacrífico, pensou.
Pegou uma faca recentemente afiada pelo marido e fez um pequeno corte na palma da mão, pingando três gotas do seu sangue na poção, que descansava agora num pequeno caldeirão. O caldeirão, apesar de não estar em cima do fogo, borbulhou com a entrada do último ingrediente, exalou uma fumaça avermelhada fazendo Ammaleth ter certeza de que o líquido estava pronto.
Por alguns minutos entrou no seu quarto, arredou uma madeira solta que se escondia debaixo de um tapete, e tirou de lá um lápis preto com uma ponta ameaçadora. Retornou para a cozinha, sentou-se numa cadeira e desenhou um pentagrama na costa da mão, que em poucos segundos pareceu fazer parte da própria pele de Ammaleth. Buscou um pouco da poção numa cuia menor e guardou o restante num frasco maior, tampando-o com um pano branco e depois com uma tampa de ferro, escondendo-o debaixo do piso de madeira ao lado do lápis.
Finalmente respirou, já havia se passado uma hora como se fosse um minuto. Ao meio dia Auguste poderia voltar para almoçar, ou almoçar na casa de um amigo, Ammaleth nunca sabia, mas era melhor prevenir. Ela agora tinha uma hora para sair do seu corpo e procurar o livro de Radamathys.









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Black Cherry
Arte: Nicole Absher, com edição de Black Cherry

sábado, 15 de outubro de 2011

Witch Fire - 02: Persuasão


- Desenha! – rugiu a velha num sussurro feroz. – Anda! Apressa-te!
- O bebê não pára de chorar! – reclamou a jovem moça, de cabelos negros e curtos que chegavam até os ombros em leves ondas, o rosto soturno sob a iluminação das velas, e as mãos trêmulas enquanto os braços carregavam o bebê.
- Sufoca-o então!
- Agora? De que servirá depois?
- Ele é útil apenas morto, não fará diferença se o trouxermos sem vida! Vamos, sua incompetente!
A moça lacrimejava com sutileza, piscava o menos possível, pois não queria que a velha percebesse que estava prestes a desabar num choro escandaloso. Deixou a pequena e inocente criatura deitada sobre seu braço esquerdo, enquanto o direito afundava a mão sobre a boquinha e o nariz cheios de catarro. Deixando-a mais desesperada em gritos sufocantes, e depois apenas o silêncio da vela dançante na respiração de ambas, derretendo-se num píres de porcelana branca.
- Dê-me! – a velha sacudiu os braços flácidos para a moça, que a entregou com certa hesitação. – Agora desenha! Ou Ele não concederá nossos desejos!
- Mas... Mas...
- Anda! Sua inútil!
A moça saiu da vista da velha e voltou da escuridão com um balde de ferro, transbordando uma tinta preta e fedorenta pelo piso da casa. A velha, de cabelos cinzas e rosto carrancudo, com verrugas nas mãos que segurava o bebê assassinado, apenas assistia a tudo impassível. Então a moça continuou o seu trabalho, com os dedos ágeis e um talento natural, desenhou seis pares de asas negras pelas paredes da casa numa rapidez até admirável. A porta da frente arranhou e se ouviu o tilintar de um molho de chaves, enquanto era destrancada com impaciência. A moça fitou a velha em desespero, a velha largou o corpinho frio no chão como um lixo qualquer, enfiou as duas mãos no balde de tinta negra e esfregou no rosto enrugado.
Um homem, muito provavelmente o dono da casa, entrou e olhou horrorizado para as asas que bruxuleavam sob a luz das lamparinas sustentadas nos baluartes das paredes da sala. Ele chegara mais cedo para ver a esposa desmaiada no chão com uma tinta vermelha pintando suas pálpebras. Estava enfeitiçada.
- Mas o que...
A velha pulou em cima dele, com o rosto todo pintado de preto, e abriu a bocarra de dentes amarelados e podres com força suficiente para desta sair um barulho demoníaco e vibrante, que acelerou tanto o coração do homem ao ponto deste explodir. Seus olhos injetados em veias pulsantes e escarlates sugavam toda a vida daquele ser, deixando-o seco, pálido e sem sangue.
A moça não conseguiu segurar as lágrimas dessa vez, chorava em soluços impulsivos, ao mesmo tempo em que suas mãos buscavam o corpo do bebê raptado. A velha voltou ao seu estado de consciência completa e, ao lado de sua pupila, saíram pela porta dos fundos, meia hora antes de tochas curiosas e aterrorizadas refletirem o vidro das janelas do local.
Dois rapazes, camponeses sujos e suados, e um padre entraram com pressa nos aposentos da humilde morada, e logo foram socorrer a esposa desmaiada perto do sofá. Um homem mais velho pousou um lençol sobre o corpo do marido, com medo e dó.
- Não estamos conseguindo acordá-la, padre Louvier. O senhor tem certeza de que ela está viva?
- É claro que está! Seu corpo ainda está quente e seu peito ainda respira... Tive uma ideia, me traga água quente e um pano! – o jovem padre ordenou, observando com minuciosidade a tinha vermelha cobrindo os olhos da esposa.
Os dois rapazes o obedeceram imediatamente, e tão logo o padre Louvier pegou o pano úmido e quente com cuidado, e limpou pacientemente a tinta de fácil remoção na vítima. Ele demorou um pouco, pois estava com medo de que o líquido escarlate escorresse para dentro das suas pálpebras, o que provavelmente seria um perigo.
Mas a ideia de Louvier dera certo, pois logo após a remoção completa, a mulher abriu os olhos num espanto total, e gritou por seu filho pelo resto da madrugada.

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Ammaleth acordou sem ar mais uma vez. Pulou da cama, ausente de Auguste, e foi lavar o corpo atrás de sua casa. A manhã em Clevelier se rebuscava com raios de um sol morno e brando, num céu laranja engordurado de nuvens róseas, os sinos da igreja tocavam com vontade, e um coral de crianças ecoava pelas ruas da vila. Ammaleth tomou coragem e finalmente saiu de casa, recebendo olhares de espanto, e outros de pura alegria. Mas ela precisava sair, ela queria sair, pois teria que obter informações sobre o “Demônio das Asas” que seu marido lhe contara na noite anterior. O sequestro do bebê de Justine, na casa de Justine.
Nas ruas úmidas e ladeadas de predas, com cheiro de gado, leite e orquídeas selvagens, no timbre agudo de pássaros desordeiros, Ammaleth caminhou com empolgação e medo. Há muito tempo não sentia aquele ar frio e gostoso no rosto, seus olhos estavam acostumados à luz das janelas de sua casa fugindo das grossas cortinas abafadadas. Chegando à Igreja, passou quase duas horas orando e agradecendo a Deus pela sua liberdade, exceto pelo fato daquele deus não ser o seu. Quando foi se confessar, o jovem padre Louvier de Saint Miguel a recebeu com um sorriso discretíssimo, e depois se iniciou uma conversa muito distante da confissão.
- Ammaleth, por que te escondestes por tanto tempo na tua casa? – ele perguntou, sem parecer raivoso ou ameaçador.
- Estava de luto pela minha filha, padre. – sua voz fez-se suave e melancólica, persuasiva. Uma bruxa deveria ser enganadora e manipuladora.
- É aceitável o seu luto por certo tempo, Ammaleth Coeurcourt. Mas lembra-te de que uma mulher deve pedir perdão a Deus mais do que um homem?
- Eu sei padre.
- E tu ainda te lembras do por quê?
- Somos o Pecado Original, padre. Seria um ultraje passarmos um dia sequer sem nos confessar.
- Oraste na tua casa durante estes sete anos, Ammaleth?
- Claro, padre! Nunca deixei de orar, nunca abandonei nosso Deus, e nunca irei abandonar.
- Tu sabes que, mesmo assim, tua dívida com Deus ainda é grande por passar tanto tempo sem ir a Igreja, não sabes?
- Sei Padre, e irei compensar isso. – ela abaixou a cabeça humildemente.
- Podes ir. – ele a enxotou balançando a mão no ar.
Ammaleth mordeu o lábio inferior. Ela precisava de informações.
- Padre?
- Sim?
- O que aconteceu na casa de Justine?
- Ninguém lhe contou?
- Auguste me contou, mas não me contou muitos detalhes.
- E por que queres saber?
- Porque quero orar por Justine também. – sempre, sempre a voz suave, delicada e pueril. Se ela descarregasse um timbre diferente na voz, seu encanto seria quebrado.
O padre bufou com aspereza, ele poderia culpá-la de ser uma mulher fútil e fofoqueira, assim como muitas outras, que não tinha nada na vida a não ser o puro interesse de saber da vida das pessoas. Mas Ammaleth tinha o rosto tão calmo e gentil, e sua voz era tão cantante e despida de malícia, que ele cessou sua barreira ainda imatura de sermões.
- Tudo bem... – ele começou. – Antes de ontem, ouvimos e vimos uma agitação estranha na casa de Justine, enquanto fazíamos uma novena para salvar aquelas pobres almas que ainda festejam na floresta por Saturno, uma das várias faces de Lúcifer. Chamei alguns rapazes e batemos na porta até decidirmos arrombá-la. Justine estava desmaiada na cozinha, o cesto de vime do bebê estava vazio e seu pequeno manto pisoteado alí perto. Auguste estava lá também, e me ajudou a acalmar Justine até seu marido e sua mãe chegarem. Auguste foi para sua casa, e eu tive que passar a noite na sua casa, porque a pobre coitada não queria que eu fosse embora. Estava com medo do demônio... E ontem, ontem de madrugada, apareceu mais uma mulher sem o filho, e ela tinha uma tinta vermelha nos olhos... E...
- E as asas?
- As asas? As asas eram horrendas! Três pares de asas negras, pintadas em todos os cantos da casa. Seis asas que não me deixaram dormir. Tive pesadelos com isso.
- Pesadelos? O senhor se lembra de como eles eram?
O padre a olhou com certa indagação no olhar, franzindo o cenho por detrás da janelinha de madeira do confessionário. Nesse momento, ele já estava tão absorto na beleza e na voz de Ammaleth que decidiu se abrir como se fosse um bom amigo do qual poderia se confidenciar sobre tudo.
Ele olhou para o teto, como que tentando captar as imagens dos seus pesadelos para assim narrar, e até abriu um pouco a sua boca, antes de voltar a falar.
- Eu estava caminhando numa floresta escura, procurando por luz, e a única luz que tinha estava distante demais de mim. Então corri para aquela luz, e descobri que era uma fogueira...
Ammaleth assoprou sutilmente no rosto do padre Louvier, com os olhos concentrados e a respiração compassada.
- Envolta da fogueira, algumas pessoas, ou formas, ou monstros, dançavam e pulavam, cantando e batendo a palma das mãos nas suas bocas, fazendo barulhos guturais...
Ammaleth suava frio, o feitiço estava dando certo, mas ela não sabia por quanto tempo duraria.
- Depois... Depois começaram a jogar corpos, corpos pequeninos... Corpos de bebês, dentro da grande fogueira... E eu, eu conseguia ouvir o choro dos pequeninos... Mas não vinha do corpo deles... Vinha no crepitar das fogueiras! E as criaturas continuavam dançando, festejando por Radama...
- Padre Louvier! Padre Louvier! Precisamos do senhor! – uma criança imunda e esfarrapada entrou com desespero na grande porta de entrada da igreja.
Ammaleth sentiu o peso do feitiço de volta no seu peito, Louvier saiu do seu transe e piscou várias vezes até ter certeza de que estava acordado. Ela controlou suas mãos trêmulas e então abaixou a cabeça novamente, assentindo para o padre como se tivessem tido uma conversa normal e cotidiana.
- Obrigado padre pelo seu tempo, prometo que nunca mais me ausentarei da igreja, mesmo que esteja doente virei aqui e...
- Padre! Justine está louca! – esbravejou o menino nos seus pulmões jovens, fazendo o padre sentir uma pontada de dor de cabeça. – Ela está correndo pelas ruas da nossa vila gritando pela filha! Ela está ameaçando matar todo mundo! Ela está gritando como se estivesse possuída! Padre! Ajude a minha prima! Minha tia Audrey não consegue controlá-la!
- Te acalma, menino! Já estou indo! – Louvier se levantou de prontidão e saiu do confessionário segurando seu rosário e o pressionando contra o peitoral. Olhou por um breve instante para Ammaleth, que ainda estava de cabeça baixa, submissa, e então saiu correndo do local.
Ammaleth foi atrás um minuto depois, levantando a grande saia do vestido preto balonê e procurando a rua em que a insana Justine se descontrolava, o que não foi difícil de achar.
Justine estava apenas com uma camisola branca e molhada de suor. O rosto e o pescoço arranhados e os cabelos desgrenhados como serpentes finas dançando ao vento gélido que vinha das montanhas. Tinha olheiras profundas debaixo dos olhos e segurava um facão de açougue na mão esquerda.
- CADÊ MEU BEBÊ? ONDE ESTÁ MEU BEBÊ? ONDE ESTÁ MINHA CRIA? DEVOLVAM MINHA CRIA! – ela gritava aos quatro ventos, completamente fora de si.
O padre Louvier tentou se aproximar, erguendo as mãos e caminhando a passos largos e ritmados, mas Justine ameaçava e cortava o ar, e ele tão logo recuava mais do que avançava. Audrey, mãe de Justine, chorava e se abraçava numa velha senhora que lhe afagava as costas, e os moradores se reuniam envolta da mãe louca em extremo horror.
- Justine... Minha querida, eu juro que irei encontrar sua filha, mas, por favor, largue esta lâmina, vamos para a igreja, vamos orar! – o padre voltou ao seu ritual de aproximação, falando palavras macias e consoladoras. Se não fosse humano, seria um bruxo excepcional, pensou Ammaleth por um instante.
- MINHA FILHA! MINHA FILHA!
Ammaleth sentiu um aperto imenso no coração, sabia o que era aquele sentimento, aquela perda. Aquela sensação terrivelmente obscura de ter tido uma parte da sua alma arrancada com unhas e dentes por uma criatura asquerosa.
Então, como se por instinto, Justine a avistou entre os curiosos de plantão, largou a faca e correu em sua direção. Ammaleth, sem ter o que fazer diante daquilo tudo, apenas ficou parada esperando o que viria lhe acontecer. Mas ela sentiu também o coração puro e ingênuo de Justine nos seus olhos lacrimosos, sentiu que Justine queria apenas compreensão.
E acertou. Justine chegou mais perto, e algumas pessoas ao lado de Ammaleth saíram de perto como se as duas mães fossem leprosas. Justine se ajoelhou de frente para Ammaleth e buscou suas mãos. Ammaleth franziu o cenho e sentiu vontade de chorar, mas tudo o que fez foi acarinhar o rosto de Justine com seus dedos finos e macios.
- Minha filha! Minha filha! – ela chorava, sem vergonha nem receio, com todos assistindo à sua cena trágica.
Ammaleth não conseguia falar, nem pensar em nada. Apenas numa forma de encontrar a resposta para o mistério das asas, consequentemente, uma forma de encontrar a filha de Justine.
Quando conseguiu se mexer, se abaixou um pouco e disse ao ouvido da mulher desesperada:
- Encontre-me hoje à meia noite, na Ponte dos Lírios. Não se esqueça. Não se atrase.
Justine afirmou com empolgação, o rosto confuso e os olhos agora apenas inchados, na lembrança das lágrimas ensurdecedoras.
Audrey se aproximou das duas com os braços abertos, Ammaleth assentiu de leve para a senhora, que buscou a filha, emocionada, e a levou para casa.






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Black Cherry
Arte: Nicole Absher, edição de Black Cherry

domingo, 9 de outubro de 2011

Witch Fire - 01: Barreira



França, 1680, sete anos depois.
Vila de Clevelier.

Auguste era um bom homem, trabalhava toda a manhã e toda a tarde e durante o crepúsculo sempre ía à igreja orar e pedir perdão a Deus. Caminhava pelas ruas estreitas da vila de Clevelier com sutileza, quase um fantasma sobre as calçadas de pedras e os lampiões que iluminavam as casas e os rostos dos moradores taciturnos. Em Clevelier podia-se ver pelo horizonte duas colinas, e antes delas uma boa quantidade de floresta, floresta essa que era possuidora de um campo aberto onde sempre comemoravam o aniversário de Saturno, apesar de a Igreja ser cruel com quem desrespeitasse os paradigmas da bíblia. Auguste não dava muita importância para essas festas, gostava de Deus e dos ensinamentos dos padres, foi por esse motivo que enviou seu irmão Louvier a aprender a ser um.
Auguste era um homem alto e robusto, sempre pedia à mulher para deixar sua barba rala, o que dava uma característica sedutora a sua boca delineadamente carnuda, seu queixo dividido e seu rosto desenhado em losango, mas um pouco retangular, talvez pelas bochechas finas, os olhos baixos e a testa curta, coberta pelos cabelos lisos e grossos, roçando nas sobrancelhas levemente mal-feitas.
Suas coxas eram naturalmente grossas e musculosas, e apesar do frio cortante em Clevelier, ele gostava de deixar a camisa branca desabotoada até a metade do seu peitoral duro com poucos pêlos a lhe enfeitar a pele. Alguns homens e mulheres silenciosos sentiam um prazer pecaminoso em observá-lo chegando mais perto e saudando com um “olá” na sua voz timbrosa e rouca, até caminhar horizonte adiante com tranquilidade. Gostavam de ver as calças de Auguste em movimento.
Mas Auguste era fiel à sua mulher Ammaleth, aquela a quem sempre perguntavam a ele o motivo desta nunca sair de casa. “Tem a saúde frágil”, ele falava com um sorriso entristecido e o cenho franzido, mas a verdade era que nem Auguste sabia o motivo de Ammaleth nunca sair de casa. Desde o dia em que ela tivera Charlotte tomada de seus braços pela sua desaparecida mãe Mary Donna, e ele desmaiara naquele dia por alguma força estranha da velha senhora, Ammaleth tornara-se apenas uma mulher afetuosa que lavava suas roupas e preparava sua comida com gosto. Sua sopa era a melhor de Clevelier, e ele a tinha somente para o seu único deleite.
E Ammaleth era saudável, talvez até mais saudável que ele, o dono de tantos músculos e pique para trabalhar nas plantações da vila e nos consertos de algumas velhas casas. Mas ela era tão boa e dócil que ele desistia de perguntar qualquer coisa e deixava tudo estar normal e constante como sempre. Ele não brigava ou a repreendia quando ela gemia nas suas horas íntimas, apesar de ser severamente proibido uma mulher mostrar prazer. Na verdade, ele deixava quando ela começava a massagear seus ombros tensos com suas mãos macias e seus dedos ágeis, e depois descia nas costas, e brincava com seus mamilos, e saboreava seu órgão sem questionamentos ou constrangimentos. Ammaleth tinha a pele pálida e extremamente macia, e Auguste sentia-se como um lobo áspero e peludo sobre aquele corpo tão belo e liso, ela deixava-o fazer o que quiser, pois ela era a rainha dos gemidos e sussurros eróticos, e ambos não tinham medo das suas descobertas carnais. Era óbvio que Ammaleth e Auguste tinham um segredo, nunca dito ou escrito, mas compreendido. O prazer deles vinha em mais prioridade do que a religião. E quem tentaria questioná-los? Auguste todos os dias ía orar numa das duas igrejas de Clevelier, e segundo ele, a esposa mesmo em casa rezava por mais de três horas sem parar sobre um pequeno palanque que ostentava uma Virgem Maria esculpida em gesso e pintada com toda a delicadeza do mundo, logo na sala mediana da sua casa.
Ainda havia os vizinhos insistentes, chamando Ammaleth de bruxa e pequeno demônio bonito, por nunca sair de casa para ir à igreja e pedir perdão pelos seus pecados, e assim deixar leve sua alma para esta partir para o plano maior que era o céu, e no céu sentava-se Deus com seu cajado da Justiça e do Castigo. Diziam alguns que Ammaleth preparava poções que evaporavam e exalavam por toda a vila, despertando a libido e fazendo as outras mulheres terem pensamentos errados e proibidos sobre Auguste, mas Auguste, o homem esbelto e respeitável, digno de ser o melhor marido de Clevelier, fazia todo mundo esquecer-se de acusar Ammaleth devidamente para algum padre. Auguste era tão formal com as pessoas que era impossível dizer se ele tinha alguma amante ou um caso que ia contra os ensinamentos da Igreja com algum homem.
Alguns transformavam Ammaleth em “filha da farra”. As filhas da farra, mulheres que nasceram sem um pai que pudesse chamá-las de filha, eram consideradas filhas dos deuses, e por isso muito admiradas por alguns pagãos secretos em Clevelier. Mas Ammaleth, desde criança, teve apenas Mary Donna como mãe. Mary Donna, aquela que durante tantos anos lhe parecia indiferente, de um momento para o outro lhe toma Charlotte do seu domínio e desaparece sem deixar motivos. “Nenhuma Coeurcourt pode ficar com a sua primogênita”, ela disse, e desde então foi a única pista infundada de Ammaleth para se segurar numa esperança de reencontrar a filha sequestrada.
Auguste deu quatro toques na porta e Ammaleth a abriu com seu sorriso habitual. Os lampiões, sustentados em baluartes de ferro, já estavam acesos e exalando uma leve fumaça de querosene na casa. A porta era o máximo que Ammaleth podia chegar, pois quando tentava sair (e suas tentativas já foram muitas), seu coração doía e pulsava rapidamente. Ammaleth sabia, era uma barreira invisível deixada por Mary Donna para que ela nunca saísse de sua morada a procura da filha. Sete anos presa no próprio lar.
- Chegaste cedo hoje. – ela lhe deu um beijo discreto na bochecha, mas ele a puxou para si e a beijou longamente na boca.
- Queria logo te ver, e de qualquer forma, o padre está ocupado com algumas coisas misteriosas na vila e acabamos não tendo missa hoje.
- Misteriosas?
- O bebê de Justine desapareceu.
- A filha da senhora Audrey?
- Sim. Justine está desesperada, e está culpando os organizadores do aniversário de Saturno. Ela está acusando todo mundo de bruxaria e satanismo.
Ammaleth sentiu um aperto no coração, pois sabia o que Justine estava sentindo mais do que qualquer um naquela vila. Auguste sentou-se com entusiasmo na mesa, mas logo foi repreendido como um moleque malcriado por Ammaleth, que o ordenou a lavar as mãos. Após sentar-se de novo, agora com as mãos limpas e o rosto carrancudo, voltaram ao assunto em questão.
- Mas o que um padre pode fazer num caso de sequestro? – Ammaleth sentou-se de frente para ele, a mesa era um quadrado, aliás, apenas para eles dois.
- O padre na verdade está cuidando de Justine. Ela está histérica e só se acalma quando ele está ao seu lado. – respondeu Auguste pegando a colher pousada ao lado do prato cheio, e afundando-a na sopa cheirosa.
Ammaleth levantou-se da mesa com o rosto petrificado, não de espanto ou de entusiasmo, mas de preocupação. Aproximou-se da janela e com a mão direita arredou a cortina branca para o lado, vendo um ou outro raio de sol nas ruas úmidas e escuras, do crepúsculo que anunciava os primeiros minutos da noite. Já estavam no mês de setembro daquele ano, e algo muito forte se aproximava. Ammaleth teria que encontrar um jeito de quebrar o feitiço que a deixou aprisionada por sete longos anos naquele lugar, condenada a esconder tudo do marido. Ela confiava nele, confiava mais do que em qualquer outra coisa no mundo, e sabia que se contasse para ela sobre o que ela era, ele jamais a abandonaria por isso, e talvez até se tornasse cúmplice. Mas por enquanto ela teria que se preocupar com outras coisas. Um bebê sequestrado era uma pista chamativa para isso.
- Por que Justine está tão desesperada em acusar a todos de bruxaria e satanismo?
- Porque no mesmo dia em que seu filho desapareceu, as paredes de sua casa estavam pintadas com asas negras.
- Asas negras?
- Sim. Três pares de asas, espalhadas pelas paredes.
- Hexagrama... – Ammaleth sussurrou para si mesma.
- O que tu disseste? – Auguste franziu o cenho.
- Isto é terrível. – ela cuidou de responder, torcendo a boca.
Auguste deu um sorriso tristonho, e então pôs-se a se concentrar na sopa da esposa. Logo depois, cuidou de tomar um banho na tina de madeira atrás de sua casa, com a água deliciosamente fervida por Ammaleth, que esfregou suas costas e cuidou das suas unhas com total dedicação. Auguste se perguntava por que Ammaleth parecera tão interessada e curiosa sobre o misterioso desaparecimento. Ele conhecia o seu sofrimento, é claro, e por esse motivo que era estranho ela demonstrar mais interesse do que horror.
Na noite silenciosa, enquanto moradores sujos e mulheres submissas faziam uma vida moralmente aceitável, Ammaleth abria sutilmente um pouco da curta cortina da janela do seu quarto para ter como iluminação a lua amarela, enquanto Auguste enxugava o seu corpo e se deitava na cama, nu e provocativo, para uma noite com a esposa.
Lua amarela, noites de Carlotta, ela pensou, e então entregou-se aos braços grossos e aconchegantes de Auguste.
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Entre as duas colinas do horizonte de Clevelier, logo adentrando a floresta, uma mulher nua mascarada e um cavalo negro rasgavam o véu esverdeado com galopadas determinadas sob o céu tão estranhamente iluminado. Havia um círculo de estrelas envolta da lua, mas que somente com muita concentração podia-se perceber aquele fenômeno tão taciturno.
A máscara da mulher era feita de madeira esculpida, com um nariz despencado e olhos semicerrados, enfeitada com ramos e alguns pequenos quartzos nas bordas e na parte superior, como que moldando sobrancelhas cintilantes. Seus longos cabelos lisos e negros ondeavam e faziam parte do vento, e o verde misterioso dos seus olhos assustava todo animal que ousava encará-la ou sentir seu cheiro adentrando a escuridão.
Revelou-se ser Carlotta. Aproximou-se de uma cachoeira que brilhava na lua e mergulhou o corpo na água cristalina e mágica por um certo tempo.
Quando saiu, caminhou ao lado de seu cavalo, que relinchava vez ou outra de medo, ela o acalmava com frequência, até chegar finalmente ao lugar planejado. Um grande campo aberto, onde um estranho círculo sombreava de branco a grama esverdeada. O círculo da Lua Amarela, o efeito das estrelas que a cobriam como que por instinto. Magia negra? Jamais. Magia de Carlotta não se segurava na escuridão tampouco na luz.
- Tenha calma, Joseph. Não irei demorar. – ela dizia com ternura, uma voz mais forte e ampla do que a de Ammaleth. – Já estou purificada, não acontecerá nada de ruim.
Joseph, o cavalo negro, voltou a relinchar em reclamação, parecia que ele compreendia tudo o que Carlotta falava, de alguma forma. Talvez Carlotta estivesse usando uma outra linguagem para com ele.
Carlotta buscou um punhal que se sustentava numa bolsa amarrada no pescoço de Joseph, caminhou até o centro do círculo e olhou para o céu, pressionando a lâmina contra a pele do antebraço esquerdo e se concentrando no que deveria fazer.
- Isfarikaime-se Nye! Oe ulyaerom nae zamewe om-no ikailâm-ny ya fisefar!
Por um único milésimo de segundo, as nuvens absorveram um tom avermelhado e as estrelas que formavam o círculo envolto da Lua Amarela se afastaram até desaparecerem e reaparecerem moldando um sutil triângulo. Carlotta suava frio, pois estava tudo dando certo.
Um enorme veado branco surgiu à sua frente, invadindo o que antes era um círculo na grama, e lambendo com vontade o longo ferimento de Carlotta no braço, que cicatrizou em pouquíssimo tempo.
- O que te fazes pensar que podes me invocar a hora que quiseres? – o veado tinha uma voz baixa e sussurrada, gentil.
- Tu gostas da Lua Amarela, pensei em presenteá-la para ti. – ela beijou o seu focinho com intimidade.
- É verdade. Ela é doce como a ambrosia, bem amada como o beija-flor e sedutora como a dália. Mas para que me queres nesse lugar tão perto dos humanos?
- Eu preciso que tu livres minha irmã de uma maldição.
- É justo, tu me deste um pouco do teu sangue ancestral, então é certo que farei esse pedido para ti.
- Ela está nesta vila.
- Sim, estou sentindo seu cheiro. É parecido com o teu, Carlotta, mas ela possui mais – ele cheirou o ar como se Ammaleth estivesse alí, na sua frente - ...ingenuidade. Ela precisará ser muito cruel nas suas decisões, Carlotta, e isso será terrível demais. Não se sabe se ela conseguirá se recuperar.
- E eu não sei se poderei ajudar mais.
- Poderás sim, Carlotta. Mas agora terei de ir fazer o que me foi pedido, ou tu terás de me dar mais sangue. Até breve. – ele abaixou a cabeça por três segundos, e Carlotta também.
- Até breve, Huracán.
O veado correu e desapareceu no horizonte, deixando um fiapo de luz na madrugada arrebatadora. Carlotta sorriu com o sentimento de missão cumprida, de liberdade e de alívio, e então subiu em cima de Joseph e correu adentrando a floresta.
Ammaleth acordou sem respiração, suada e desesperada, parecia estar ressuscitando. Naquela noite, ela correu para fora de casa, pois não conseguia respirar dentro desta, e jurou ter visto um belo espírito velando-a de longe. Mas antes que pudesse admirá-lo por mais tempo, percebeu que estava viva e inspirando o ar da escuridão fria com lágrimas a iluminar-lhe o rosto sorridente.







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Black Cherry