Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

sábado, 7 de janeiro de 2012

Witch Fire - 10: Krishna



1661
Ammaleth veio chorando, daqueles choros estridentes de bebês de quatro aninhos que descobrem o mundo mais do que os mais velhos. Friddah levou um susto e deixou sua boneca de porcelana cair quando a porta foi aberta sozinha e sua irmãzinha entrou no quarto com o maior drama. Ela passara a tarde penteando os cabelos da pálida Carlotta de vidro, cuja parte de trás da cabeça já estava rachada com a queda. Carlotta foi abandonada alí mesmo.
Friddah levou um tempo suficientemente irritante correndo atrás de Ammaleth pelos quatro cantos da casa, querendo saber se poderia ajudá-la na sua dor ou mandá-la calar a boca se ela estivesse fazendo isso por atenção ou para aborrecer Friddah. Quando Ammaleth já estava a caminho da porta que levava a um enorme campo atrás da casa, que dava a vista da Floresta da Mandrágora e, mais adiante, das montanhas que rodeavam Clevelier, a irmã mais velha ergueu o braço e a porta se fechou com vigor, fazendo Ammaleth dar mais um grito.
- O que foi? – ela disse, suada, irritada, mas curiosa.
- Mi... Minha... – e voltou a soluçar tanto que era impossível distinguir qualquer palavra.
Friddah olhou melhor e viu que Ammaleth segurava a mão direita frouxa com tanto cuidado que tinha a impressão de que ela fosse cair a qualquer momento. A irmã mais velha se aproximou e puxou a mão, abrindo sua palma e fazendo Ammaleth chorar ainda mais, se é que isso era possível. Estava extremamente vermelha, ou melhor dizendo, queimada.
- Ammaleth! O quê que ‘cê fez?
- O... O... Caldei... – Ammaleth se concentrou ao máximo para não soluçar no meio das palavras, embora não se pudesse afirmar que ela tenha obtido êxito no esforço.
Friddah se dirigiu à porta da cozinha entreaberta e viu um caldeirão borbulhando e esfumaçando um delicioso aroma de sopa. Tão logo entendeu. Mesmo nessa idade, uma bruxa pode ter mais perspicácia do que um ser humano comum.
- Vamos. – ela pegou a mão esquerda da irmã e juntas foram para o campo atrás da casa. Era espaçoso e tinha uma grama tão esmeraldina quanto os olhos de uma Coeurcourt. Afinal, Friddah tinha os olhos mais verdes do que qualquer uma de sua família, isso relevando o fato de que os olhos de Ammaleth chegavam a cintilar, mas perdiam porque absorviam facilmente a cor ao seu redor. Sobretudo a cinza de uma chuva. Friddah não via nada demais nesse detalhe, Mary Donna via muita coisa.
- Onde está mamãe? – Foi a primeira frase inteira e sem arranhões chorosos da menininha.
- No porão. – Friddah lhe solicitou.
As duas meninas se sentaram embaixo de uma velha cerejeira, que já tinha mais folhas douradas do que róseas, o frio comum que vinha das montanhas soprava com cautela sobre a pele e os cabelos negros cacheados. Ao longe, o sol mornava com as nuvens que o cobriam de ora em ora, embora ele já estivesse nos seus últimos minutos de vida. Friddah se sentou de frente para Ammaleth, que cruzou as perninhas e estendeu a mão para a irmã, numa expectativa simples, numa certeza cega e inexorável.
- Lembre-se do que mamãe disse: concentração. – Friddah lhe aconselhou, mesmo que não fosse normal uma criança de cinco anos falar aquilo, mesmo que ela nem soubesse o significado total da palavra que declamara.
- Sim...
Ammaleth apertou os olhinhos e por um momento Friddah teve vontade de rir com a carinha fofa que ela fez, mas ela também se concentrou e pôs a mão direita da irmã menor sobre as suas. A irmã mais velha passou algum tempo sussurrando uma oração para si mesma, e então já não havia mais queimadura alguma, apenas a palma pálida e macia da menina.
Ammaleth pulou num grito – e dessa vez era um grito de alegria – e abraçou Friddah, que se desvencilhou e lhe pediu para esperar. Ela subiu a cerejeira e puxou uma corda, que logo depois se revelou ser duas, que logo depois se revelou ser um balancinho. O rosto de Ammaleth se iluminou.
- Quer voar?
Ammaleth se sentou no mesmo instante no brinquedo, Friddah começou a empurrá-la e passado algum tempo quando o sol já não era mais do que a metade de uma bola alaranjada entre duas montanhas escuras, Ammaleth pairava no ar e seu vestidinho inchava e ela parecia tão próxima das estrelas, parecia ela mesma uma constelação, a mais bela de todas. E depois caía na grama e gargalhava com Friddah que fazia o mesmo. A árvore e as duas pequenas bruxas.
Mary Donna saiu da casa em direção às filhas a passos largos, Ammaleth e Friddah ficaram sérias no mesmo instante e se levantaram do chão, as vestes imundas. A mulher usava um vestido púrpura-escuro e suas mãos estavam sujas com o que parecia ser terra ou barro.
- Ammaleth, para dentro.
E Ammaleth desapareceu adentrando os aposentos da mãe. Friddah segurou as mãos e abaixou a cabeça. Mary Donna puxou um punhal prateado escondido em alguma parte daquele vestido.
- Daqui a seis meses tu farás seis anos, está na hora de aprender a defender teu sangue.
- Por que preciso... – ela ergueu a cabeça – defender meu sangue? Ele não está dentro de mim?
- Em breve me compreenderás, por ora apenas me obedeça. Dê-me a mão.
Friddah sabia aonde aquilo acabaria, embora não pudesse compreender suas tantas certezas. Ela não deu, Mary Donna teve que puxar um dos braços à força até obter enfim a palma da mão direita aberta de Friddah. A mãe passou o punhal num golpe veloz, o sangue esguichou e a Friddah soltou um urro terrível de dor, caindo de joelhos no chão e chorando como Ammaleth estivera chorando há meia hora.
- Chame!
- Não quero!
- Chame! O ferimento que este punhal causa não pode ser curado sem precisar invocar! Chame!
- Kr... Kri... KRISHNA!
Friddah ergueu o braço e abriu a palma ferida para o céu, o corte profundo se curou e um tigre branco e reluzente se materializou ao seu lado num salto, correndo livre e glorioso pelo campo até desaparecer entre as árvores da Floresta da Mandrágora e deixar apenas um rastro de luz, um rastro da sua divindade.
Friddah não mais chorava.
- Para que preciso disso, mamãe?
- Demônios do Sol.
- Demônios do Sol?
- Sim, e não me faça falar isso mais uma vez. Vamos para dentro, antes que Ammaleth queime sua mão novamente.
E antes de Friddah se levantar do chão, cansada e sem muitas forças nas pernas, Mary Donna olhou para ela uma última vez e entrou. Friddah pensou tê-la visto sorrir.

~
1680
Estava abafado.
Louvier tentou se mexer, mas alguma coisa atrás de si o segurava, e algo mais pesado pousava sobre seu peito e suas coxas, até mesmo seus pés. Uma respiração passeava pelos cabelos de sua nuca até seu ouvido. E então tudo pareceu ainda mais quente, insuportavelmente abafado, como se aquela respiração não fosse a única a sugar o oxigênio naquele lugar.
Ele abriu os olhos com cautela, o teto estava pintado com uma tinta escura, as paredes com vários balaústres e candelabros com velas pela metade, alguns lampiões aqui e ali já com pouco querosene. Mas aquele era um pequeno detalhe. Louvier estava nu no meio de tantos outros homens nus, que dormiam tranquilamente entre corpos e cabeças como algo comum, irrelevante, indigno de atenção.
O jovem padre virou um pouco a cabeça e se deparou com um rosto áspero, uma barba leve sombreando um rosto másculo que despertou e começou a se mexer atrás dele, esfregando seus músculos suados nas costas também banhadas de água salgada do rapaz. Ele começou a lamber e mordiscar carinhosamente a orelha de Louvier, fazendo-o semicerrar os olhos novamente, e um segundo acordou, um jovem louro de musculatura leve e magra que ofegava em sua barriga, e passou a beijar com cautela e arrepiar a trilha de pelos no ventre do padre, puxando com os dentes o pequeno monte de cabelos escuros no seu íntimo, enquanto acendia seu íntimo com as mãos. Um ainda mais jovem, provavelmente não passando dos dezessete anos, de rosto belo, olhos azuis e ombros largos, escalou no seu corpo e beijou o homem que violentava a orelha de Louvier, e depois beijou Louvier enfiando sua língua bruscamente entre dentes e gengivas, até alcançar a linha de chegada que era a garganta. Louvier o abraçou e o rapaz de olhos azuis permaneceu como estava enquanto engatinhava, de quatro, e o loiro que se encantava com pelos escuros descobriu nas coxas do moreno sua fonte de diversão, até chegar em suas nádegas musculosas e colocar o rosto entre elas, esfregando-se nelas.
Crucificaram então, Louvier. E pouco a pouco, mais e mais daqueles homens iam acordando e fazendo parte do banquete. Puxaram e esticaram os braços e pernas do padre nas quatro direções, brincando com seus dedos, tanto os dos pés quanto os das mãos, colocando sexos, braços, bocas, sentando em cima, dançando.
Tão logo, todo aquele lugar estava num ritmo único, homens mais velhos, mais fortes e mais peludos buscavam os mais jovens, menores e mais lisos no centro onde se deitava Louvier, para agarrá-los e invadí-los, devorá-los em qualquer canto, enchê-los daquele clímax espesso, perolado, morder a pele e sentir sua elasticidade nos dentes afiados, beber suor e saliva, aspirar aquele odor masculino e viril, afogar-se naquele calor inacabável.
Louvier se levantou, e o homem que estivera o tempo inteiro nas suas costas fez o mesmo, ergueu-o pelas pernas e colocou. Louvier tentou gritar, gemer, mas outro homem, um sombreado por barba e cabelos castanhos beijou-o, engoliu seus lábios, puxou-os, torturou cada pedaço daquela pele sensível, e o que o carregava o obrigava a pular, sentir com mais gravidade aquela dor aguda e insuportável como se estivessem enfiando uma agulha na alma. E mais um veio para participar do beijo, seu irmão gêmeo. Breve foi esquecido pelo primeiro homem, que após sujar suas nádegas de sêmen e saliva, foi-se devorar uma carne nova. Louvier deitou-se sobre um dos gêmeos, abriu suas pernas e coxas grossas e colocou seu sexo longo e torto na boca, pegando-o pela base com uma mão e massageando seu saco escrotal com a outra, ao mesmo tempo em que o segundo gêmeo afastava suas pernas não para sugá-lo, mas para penetrar seus dedos e buscar o sêmen do primeiro homem para provar, ainda no íntimo de Louvier, até conseguir beber tudo, cuspir incansavelmente e colocar a cabeça. Louvier gemeu novamente, porém dessa vez foi fácil, o que causou em cada fibra do seu corpo um prazer grandiosamente insuportável. O gêmeo que estava apenas aberto e recebendo a boca do padre, grunhiu e ejaculou em sua boca, Louvier engatinhou para o seu pescoço enquanto o segundo gêmeo o penetrava com mais força e rapidez, e cuspiu todo o sêmen na língua do seu dono, que engoliu e o beijou ainda mais ardorosamente.
E mais dois vieram para penetrar e sugar Louvier, e aquilo parecia não ter um fim, porque quanto mais ele chegava próximo da exaustão, mais fortes e mais dispostos os vinte e tantos homens naquele porão se tornavam. Desde cedo, ele sentia que alguma coisa estava errada, algo mais forte que isso, como uma energia presente naquele ar odorífero de homem nu. Uma energia que se apoderava do prazer de cada um deles, e fazia-os produzirem mais para se tornar mais forte... Mais... Sólida.
Louvier saiu do meio dos gêmeos que se beijavam e se enfiavam dedos e línguas, e começou a andar em direção a uma portinhola no teto ao lado de um lampião, deu-lhe a ideia de que aquela era a entrada e a saída do porão. Então um jovem o puxou, o beijou e se sentou sobre ele, reacendendo o padre novamente e fazendo-o expelir seu líquido dentro dele. Mas Louvier começou a se sentir mais cansado, mais exausto, quase como se tivesse uma tonelada sobre seu corpo completamente e extremamente dolorido. Ele empurrou o jovem que queria mais e se levantou de novo, mas dessa vez dois homens que passavam de dois metros de altura o seguraram pelos braços e o ergueu pelas pernas, enquanto um ruivo de cabelos cacheados e sedosos, barba rala e uma trilha de pelos vermelhos no ventre duro e trabalhado saiu de um grupo de louros molhados de suor e sêmen, dirigiu-se a Louvier sequestrado e colocou-se dentro dele, seu peitoral amassando o rosto do padre, pingando sobre ele. Era enorme. Louvier gritou e se debateu, mas o ruivo parecia gostar do seu desespero, parecia ficar mais rígido com isso, e consequentemente mais veloz em socá-lo com fúria.
Mas Louvier já não estava mais sentindo prazer algum, gozando com aquele calor, reconfortado em cada musculatura e sessão de beijos e abraços, violência e devoção à carne.
Ele estava sendo estuprado.
Louvier estava exausto e cada parte do seu corpo doía como se estivesse quebrada, e seu único desejo era que tudo aquilo acabasse. Porque de alguma forma, em alguma parte da sua mente, ele sentia que tinha algo errado, e aquela energia se alimentava de tudo, até dos seus sentimentos negativos.
- Por favor... Parem... – ele começou a implorar, o pescoço agora despencado para um lado, sufocado com aqueles músculos ofegantes em cima dele, e aquelas mãos ásperas apertando suas coxas pareciam agora prender a circulação do seu sangue. Aquele homem ruivo e furioso estava pela quarta vez ejaculando dentro dele. Mais, mais.
Sua visão começou a embaçar, mas ele ainda podia distinguir um jovem deitado e de pernas abertas recebendo uma fila indiana de homens enormes, um outro sendo carregado e escravizado por mais quatro, um moreno mais adiante de cabeça para baixo recebendo mãos e bocas em suas nádegas, e logo alí um jovem pardo e choroso tossindo e se engasgando com vários colocando em sua boca ao mesmo tempo, imperdoáveis com o quanto sua maxilar já estava escancarada.
Louvier já estava no seu limite, não aguentava e não tinha fôlego. Estava com fome, muita fome, seu estômago doía tanto quanto seus músculos. E sede, aquele banho de água salgada e quente que saía daquele antro de homens ressecava sua boca, sua garganta, sua língua com odor de órgãos e machos.
A porta do porão foi arrebentada, uma escada caiu e um tiro ecoou, todos pararam, se levantaram e olharam para a invasão, Louvier foi jogado como um pedaço de carne inútil e já usada demais, trêmulo, suando frio, chorando silenciosamente.
Ammaleth foi a primeira a entrar, com seu habitual vestido preto balonê de mangas longas e carregando um lençol branco num dos braços, seguida de Auguste que carregava uma espingarda numa mão e uma espada prateada na outra.
Os vinte e sete homens no porão começaram a piscar e balançar a cabeça ao mesmo tempo, pareciam ter acabado de acordar de um sonho, passaram a se tocar com nojo e se entreolharem com total repugnância, como se jamais tivessem imaginado fazer aquilo com outros homens, cobrindo seus sexos ainda rígidos com as mãos, o que não causou grande resultado. Louvier saiu da escuridão das costas e pernas e se rastejou em direção à luz que o cegava, Ammaleth o socorreu e o cobriu com o lençol branco que trouxera, ajudando-o a se levantar e levando-o em direção ao irmão mais velho, que o abraçou e o beijou na cabeça.
- Eu... Eu... Estou tão envergonhado de mim mesmo. – foi então que ele começou a chorar de verdade.
- Não se sinta assim, você estava hipnotizado pelo poder persuasivo de Arpe. – Ammaleth pousou a mão direita no ombro do padre encolhido e abraçado no irmão, olhando de esguelha de minuto a minuto para o grupo de homens e jovens desnorteados.
- A... Arpe? – o nome na boca de Louvier o fez sentir mais nojo de tudo aquilo.
- Arpe é um seguidor de Baco, padre Louvier. Ele usou o prazer de todos esses homens para tentar invocar o deus que tanto adora.
- Mas... Baco? Ele me disse... Ele me disse que era uma festa pra Saturno...
- Saturno é comemorado no final do ano e início dos solstícios, padre. Ainda estamos na metade de outubro.
- Mas... Por quê? – ele olhou para Auguste, que ainda apontava a espingarda para os homens nus, como se esperasse que ele desse uma resposta.
- Desculpe, não posso lhe falar muita coisa de Arpe, isso não pertence à sua raça. De qualquer forma, também ainda não descobri o que ele é. Vamos, esses pobres coitados podem se cuidar sozinhos.
Louvier não compreendeu muito bem o que Ammaleth falara, e porque o tratara como se fosse algo à parte do que ela era, mas esqueceu segundos depois.
Ammaleth foi a primeira a subir a escadinha, ajudando Louvier que ainda estava trêmulo e nervoso, e por último Auguste que aconselhou ao grupo dos hipnotizados para fazerem o mesmo e saírem daquela casa o mais rápido possível. Louvier pôde olhar melhor para a morada em que estava, pois entrara nela pela noite, e ele mal sabia quantas noites haviam se passado desde então. As paredes eram todas pintadas com imagens de chifres, homens e deuses se sobrepondo em tonalidades púrpuras, como se todos aqueles corpos fossem um só, se formassem num só para aquele deus. Baco. E havia ainda um zumbido inquieto de várias moscas, um fedor sutil que se espalhava pela brisa fria dentro da casa bagunçada, uma lamúria, uma canção.
Ammaleth caminhou por um corredor de frente para uma cozinha em direção à última porta oculta sobre uma penumbra, Louvier a seguiu, mas Auguste segurou seu braço.
- Não, Louvier, você já passou por coisas demais, temos que ir embora, deixe Ammaleth fazer o que tem que ser feito.
- Eu... Eu preciso ver, Auguste! – ele se virou com uma expressão de quem implora, que Auguste detestava por sempre se render a ela. – Não quero ter pesadelos de novo... Se eu puder ver... Seja lá o que for, vou me sentir... Vou me sentir livre de tudo isso.
Auguste segurou seu braço por mais um tempo, Louvier sabia que ele estava processando a informação na sua cabeça, então esperou. Ammaleth chegou na porta e segurou a maçaneta, e Auguste afrouxou a mão no braço do irmão caçula.
Ammaleth olhou para trás e Louvier ficou ao seu lado, segurando o lençol branco que cobria sua nudez com firmeza, ela abriu a porta e uma fumaça negra de moscas choveu sobre eles e se espalhou pela casa. Louvier cobriu o rosto, Ammaleth assoprou e as moscas caíram, limpando o ar da escuridão descompassada. Mas o fedor era impossível de se tirar, e era tão forte que os dois tiveram ânsias de vômito e acessos de tosse até conseguirem ver a origem de tudo aquilo.


Uma mulher apodrecida deitada no que outrora deveria ser uma cama, mas a cama agora era um ninho concentrado de ratos, baratas, centopeias, escaravelhos, urina e fezes. Sua pele estava tão pálida que chegava a uma tonalidade verde-amarelada, tão magra que podia se ver cada osso sobre a cortina da tal pele, repleta de feridas abertas e que esguichavam pus e um sangue escuro que borbulhava quando caía no chão. Sua cabeça já estava quase que completamente careca, exceto por alguns tufos de cabelos mais resistentes, mas ainda assim piolhos e insetos furavam o couro cabeludo para beber do seu sangue adoecido e se parasitavam alí mesmo. As baratas entravam e saíam das feridas, uma lacraia saiu do seu ouvido e agitou as antenas, e a mulher ergueu os dois braços, urrando alguma coisa, talvez implorando para tirarem-na dalí.
- O que é isso? – Os olhos de Ammaleth se encheram de lágrimas, e ela pôs a mão na boca, tanto pelo fedor quanto pelo horror.
- Deve ser a parenta adoecida de Arpe...
- Mas Arpe não é...
Porém, antes que Ammaleth pudesse falar alguma coisa, a mulher submersa em podridão abriu a boca e cuspiu uma barata, e então falou com todo o fiapo de força que lhe restava.
- Destrua... O amor... De Arpe...
A mulher se deitou novamente, e num último suspiro, os insetos e ratos se empenharam em se alimentar de sua carne com mais voracidade. Louvier saiu do quarto para tentar respirar no corredor, e Ammaleth esperava o que vinha a seguir.
Os ossos e o crânio pairaram no ar, as baratas, moscas e centopeias também, grudando-se e formando uma espécie de corpo, enquanto os ratos montavam pernas longas e pés pontiagudos. Um monstro em sua forma completa urrou, na sua garganta feita de asinhas e pernas, nas suas cordas vocais feitas de antenas, e tentou pular sobre Ammaleth, que já estava cortando sua mão no ar, saindo do quarto e trancando a porta.
Arpe ainda estava vomitando quando ela reabriu o quarto, agora quase que completamente vazio, exceto por uma cama arrebentada, uma janela escancarada recebendo o sol matutino, e um coelhinho branco de olhos azuis pulando para lá e para cá, desaparecendo segundos após numa fumacinha pálida com cheiro de jasmim.
O momento de paz se desfez em pouquíssimo tempo.
- Essa não... Auguste! AUGUSTE!
Ammaleth correu e saiu do corredor com Louvier no seu encalço, a porta dos fundos da casa estava arrebentada, a espingarda jogada num canto e a espada num outro. A bruxa foi para o quintal onde ainda restavam resquícios da festa, garrafas e roupas aos montes, e lá estava seu marido imobilizado pelos homens hipnotizados.
- Ammaleth! – ele se debateu e urrou, pois as marionetes começaram a rasgar suas roupas com rapidez.
Ammaleth ergueu o braço e tirou um punhal de uma das mangas, mas uma lufada de ar a jogou a mais de um metro para trás enquanto Louvier também saía da casa, segurando a espingarda do irmão. A mulher se recompôs no mesmo instante e voltou a erguer o braço, abaixando-o quando viu Louvier.
- Louvier! Vá embora daqui! – ela esbravejou.
- Não posso!
- O quê?
- Não posso! Eu quem trouxe vocês para cá! Isso é culpa minha!
- Não seja estúpido! Eu e Auguste podemos nos salvar! Agora fuja!
- Não vou fugir, Ammaleth. Ele é meu irmão!
A espingarda voou para longe do domínio de Louvier, Ammaleth foi erguida no ar por mãos enormes e invisíveis puxando seus braços e pernas, e Arpe saiu das sombras das árvores alí perto com um sorriso presunçoso no rosto.
Ele olhou primeiro para o padre amedrontado, depois para a bruxa imobilizada, e por fim para Auguste, nu e vulnerável, assim como os homens que o seguravam e o ameaçavam com um facão. Deu uma risada baixinha e falou:
- O sangue dele servirá para a oferenda final. Matem-no.
- Não!
Louvier se aproximou do conjunto de homens hipnotizados.
- Por favor, me use no lugar dele.
Arpe olhou para Louvier com curiosidade, franziu o cenho levemente e chegou perto dele a passos largos e ritmados, quase uma canção com os pés descalços.
- Tu és o meu convidado, padre, não posso lhe matar.
- P-Por favor... Eu adoraria ser um presente para Baco mais do que... Ele. – e apontou para Auguste, torcendo para que a sua mentira parecesse convincente.
- LOUVIER! NÃO! CALE A SUA BOCA! SAIA DAQUI! – a reação do irmão mais velho foi imediata.
- Lou... Vier... Es.. Pere! – Ammaleth sussurrou, tentando ao máximo perfurar sua carne com o punhal escondido numa das mangas do vestido.
Arpe olhou para Ammaleth e Auguste, acabando de ter uma ideia peralta e sorrindo marotamente. Fez um aceno de mãos e seus súditos jogaram Auguste para longe com chutes, puxando Louvier para o centro deles, que já se despia do lençol branco que Ammaleth trouxera para ele. O ruivo que o estuprara era quem estava segurando o facão, apontando para a sua barriga branca, pronto para perfurá-la à mínima ordem.
- O que está esperando? Mate-o!
Uma manada de antílopes destruiu a parte da trás da casa de madeira e explodiu para todos os cantos do quintal, Ammaleth caiu com o braço sangrando, o ruivo penetrou o facão em Louvier que soltou um grito infinito de dor, tiros para todos os lados vindos de Auguste e sua espingarda fizeram cair vários homens e assustar ao restante que fugiu para dentro da floresta enquanto o estuprador enfiava a lâmina pela segunda vez na última oferenda, que já tossia sangue e tentava gritar com a voz rouca e afogada.
- LOUVIER! LOUVIER! – a voz de Auguste vinha de todos os cantos, uivadora, clamando por piedade.
Não obstante, uma quantidade formidável de faunos saiu de baixo da terra com punhais enferrujados pulando em cima dos antílopes que mordiam e atiravam as criaturas para longe, dando chifradas e coices enlouquecidamente. Ammaleth pulou em cima de Arpe e enfiou as mãos no seu pescoço pronta para estrangulá-lo, mas Arpe só se pôs a rir.
- O que é... Você? – ela franziu o cenho ao sentir aquela pele dura, que mais parecia cera...
- Eu sou – ele a segurou pelos braços e se prostrou em cima dela – imortal. – e lambeu seu rosto com a língua gelada.
- Saia... De cima... De mim! – Arpe tossiu sangue sobre o decote do vestido de Ammaleth, se levantou e tirou o punhal do peito, mas sem parar de rir, o ferimento não estava mais lá.
- Isso é impossível... – Ammaleth levantou-se num pulo e se posicionou para atacar de novo – Homens não podem ser bruxos...
- Não sou um bruxo. Minha mestra me fez imortal! Tão poderoso quanto ela! E tenho sua energia percorrendo por cada parte do meu corpo! Ela é quem me movimenta, ela é quem me ama, ela é minha fonte de vida!
- Quem é tua mestra, Arpe?
Ammaleth estava amedrontada, mas não teve muito tempo para pensar, pois os homens que fugiram para as florestas voltaram como que por magnetismo, atraídos um pelo corpo do outro até todos formarem forçadamente o que parecia ser um círculo envolto do corpo de Louvier.
A pele de todos eles, exceto a do padre-oferenda, foi puxada e sugada por um redemoinho cada vez mais visível no meio do círculo, sobre o corpo de Louvier. Eles pareciam agora conscientes em vez de hipnotizados e manipulados, pois urravam e imploravam por perdão a Deus, como se Deus estivesse participando de todo aquele festim pagão. Depois foi a vez dos músculos, eles estavam agora em carne viva, esguichando sangue para todos os cantos, por fim as veias, os órgãos, e os ossos que, por um breve momento, fundiram-se num grande triangulo, até explodirem e pular dalí um homem extremamente grande e musculoso, passando dos dois metros de altura, cabelos castanhos e levemente cacheados chegando até os ombros, uma saia de couro que cobria até a metade das coxas volumosas e os pés descalços, a beleza tão tragante que parecia vinho evaporado, uma presença tão voluptuosa que dava a sensação de querer tirar as vestes e dançar nu por campos verdejantes e noites de bebedeira.
Baco olhou para Arpe e Ammaleth, depois para Auguste que apenas chorava ajoelhado com as mãos cobrindo o rosto, e por fim para Louvier falecido, que com um toque do seu dedo aspirou o ar da vida como se tivesse acabado de chegar à superfície de um mar. Baco ajoelhou-se ao lado de Louvier que ainda abria os olhos, fitava desnorteado o ambiente ao seu redor, e então recomeçava a chorar.
- Tu és a última oferenda? – a voz de Baco ressoou quente, grossa e confortante. Ele depositou a mão enorme no ombro do jovem, que encolheu as pernas e abraçou a si mesmo.
- S-Sou, eu acho.
Auguste tirou as mãos do rosto e tentou correr para o irmão ressuscitado, mas Ammaleth foi mais rápida e fê-lo afundar os pés na terra com um rápido movimento de dedos.
“Não, Auguste, eu não conheço Baco, não sei como é o temperamento deste deus, por favor, não se mexa.” – o pensamento de Ammaleth ecoou na cabeça do marido.
- Meu jovem rapaz, conheces a lenda de que a última oferenda é a que vive ao meu lado? E não quem tentou me invocar?
- Não...
- Se não conheces, desejas viver ao meu lado? Em vez de ficar neste mundo de dor e martírio?
Louvier lembrou-se do estupro que sofrera, e se abraçou ainda mais forte.
- Não pense nisso, garanto que não passarás por isso novamente, não ao meu lado, não no meu mundo.
Louvier olhou para Baco pela primeira vez, ele estava sorrindo, um sorriso gentil, que se formava num suave cinismo, mas ainda assim, tranquilo e convidativo. Era tão belo, talvez o homem mais belo de todos... Mas não era um homem, era um deus. A razão de um deus é diferente da razão de um homem.
- Ele está mentindo, eu sou a última oferenda, grande Baco! – Arpe caminhou em direção ao deus, com óbvia ânsia de inveja e fúria.
Baco mal olhou para trás, continuou fitando Louvier.
- E por que não sinto teu sangue na minha boca? Por que sinto o sangue deste rapaz em vez do teu, já que tu és a oferenda verdadeira, mortal?
- Mortal? Eu não sou mortal! - Arpe deu mais uma daquelas risadinhas abafadas, quase doentias. – Viverei para sempre.
Foi a vez de Baco rir.
- Quem te enganou, pobre criatura? Quem te fez pensar que és imortal? – ele olhou de esguelha, mas não virou completamente o pescoço. – Eu sou imortal, Louvier, o meu novo sangue, será imortal. Mas tu? Quem és tu? Parece-me mais um boneco vivo de alguém morto...
- Arpe é meu súdito.
Uma voz feminina saiu da floresta, apesar de ter uma tonalidade mais vibrante, como voz de veludo. Seguida da voz, sua origem surgiu em poucos segundos: uma mulher alta usando um vestido longo e vermelho com um decote que desnudava as costas, os cabelos negros e cacheados chegando até a cintura, o rosto sagaz e altivo, nariz arrebitado e sobrancelhas arqueadas, os lábios pequenos que de longe pareciam ser um coração, e os olhos... Que olhos verdes, que olhos estranhamente verdes, que olhos extremamente verdes...
- Quem és tu, bruxa?
Ammaleth estava de visão arregalada, espantada, o coração a mil, embora não soubesse explicar por que estava assim com a presença daquela bruxa... Alguma coisa no seu coração, na sua mente, lhe implorava para lembrar, mas algo mais forte a impedia de fazer isso. A bruxa fitou Ammaleth com intensa curiosidade, depois se dirigiu a Baco com cautela e leveza.
- Friddah. E lhe solicitei a invocação de tua presença para destruir o segundo cadeado do Grande Portal.


~
1663
- Leve-a de volta.
- O quê?
- Me ouviste, leve-a de volta, não quero mais aquela... Aquela menina na minha casa.
- Lenin, eu não posso fazer isso... Friddah nunca nos fez nada, ela é a criatura mais doce que já entrou na minha vida!
- Almah, preste atenção... Tem uma coisa, uma espécie de aura, de energia, envolta dessa criança que me assusta...
- Isso é um absurdo.
- Me ouça! Essa aura parece ao mesmo tempo fazer e não fazer parte dela... É uma coisa que pode fugir do controle dela e... Eu não sei! Eu não quero mais Friddah perto do nosso filho!
- Lenin, tu não estás falando coisa com coisa... E eu não posso renunciar à Friddah, levá-la à Mary Donna assim, sem mais nem menos! Ela é um ser humano, não um brinquedo que podemos devolver porque nos desinteressou!
- Não quero saber, Almah. Quando eu chegar...
Almah esbofeteou Lenin, Lenin devolveu com um soco, fazendo a mulher se desequilibrar no criado-mudo da sala e cair, e chorar, e esconder o rosto.
- Vá ver como nosso filho está, pareces pensar mais em Friddah do que nele.
Lenin calçou as botas e bateu a porta com força quando saiu.
Friddah saiu de trás da porta da cozinha ao lado da sala de estar e ajudou Almah e se levantar, envergonhada, do chão. Ela fitou a mãe com aquele olhar que a mãe tanto adorava, não de súplica, mas de uma compreensão fora do normal, incomum à uma criança de sete anos.
- Não dê atenção às palavras do seu pai, Friddah. Ao contrário dele, sinto algo de bom em você, porque você é meu anjo, o meu próprio milagre, não vou...
Ela voltou a chorar, Friddah tirou as lágrimas do seu rosto com sua mãozinha pálida, macia, morna.
- Papai tem razão, mãe. Eu não sou o que vocês são.
- O quê? Não! Friddah! Não!
- Mãe, ouça, eu posso curar o meu irmãozinho.
- Friddah, minha querida, do que tu estás falando?
Friddah fez um muxoxo de impaciência, pegou a mão de Almah e a levou até o corredor da casa, entrando no quarto do seu irmão de criação e deixando a mãe perto da porta. O menino estava deitado na cama, os braços sobre o lençol marrom e a expressão abatida, sua pele estava branca como o mais autêntico marfim, suas mãos frágeis descansando uma em cima da outra, a respiração pesada, rouca, tinha-se a impressão de que a doença já estava até na garganta, e a qualquer momento sairia pela boca.
A pequena bruxa pousou suas mãos saudáveis sobre as frágeis e febris do menino adormecido, disse-lhe baixinho que tudo ficaria bem, fechou os olhos e esperou. O momento não demorou a chegar, nas pontas dos seus dedos, nas palmas de suas mãos, sobre as pálpebras de seus olhos fechados e se concentrando ao máximo, a doença estava sendo sugada ao máximo por Friddah e entrando no seu próprio corpo. Era a sensação de uma escuridão tóxica estar se alojando em cada osso da sua caixa torácica, braços e pernas.
Friddah se levantou e correu, empurrando uma Almah sobressaltada que assistia o filho despertar como quem desperta em um belo dia de sol, e vomitou sangue por todo o corredor formando uma poça escura, fétida e amedrontadora. Almah não sabia para quem olhar, mas decidiu ajudar a menina que agora era quem estava sofrendo.
- Eu estou bem, mãe. – Friddah limpou o sangue escorrendo no canto da boca com a manga das vestes e sorriu. Almah se sentiu desfalecida. – O mal já não reside mais aqui.
Almah a abraçou e, pela terceira vez no dia, chorou. Friddah aguardou a mãe conseguir controlar os soluços para assim falar o que em breve iria fazer.
- Friddah, tu és um anjo, eu sei disso, Deus lhe enviou a mim porque sabia do teu poder... Oh, Friddah!
Friddah lhe segurou a mão com força.
- Eu preciso ir, mamãe.
- O quê? Não! Friddah! Não! Não volte de novo para aquela mulher! Eu sou sua mãe agora! Fazer isso não lhe trará bem algum!
- Perdoe-me, mamãe.
Almah bateu com os joelhos no chão, ela sabia que o que Friddah fizera para sugar a doença do seu filho, estava fazendo agora para sugar suas energias e não ter forças que pudessem impedir Friddah de ir embora. A menina beijou sua testa, Almah desmaiou e ela foi embora, rumo ao único lugar em que sabia que se sentiria realmente num lar: a natureza.










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Black Cherry
Artes: Nicole Absher, Kim Akrigg, "Plastic Freak".

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