Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Witch Fire - 11: Desencanto


1663
A Floresta da Mandrágora estava calma, quieta, ausente de ruídos, até demais para parecer uma floresta normal. Por onde se encontrava o farfalhar das folhas nas copas e galhos das grandes árvores? O chilrear inconstante dos pássaros ou o som da mastigação de um animal se deleitando com algum monte de folhas doces para o seu olfato? Onde estava o chiado das águas nos carvalhos formando córregos e riachos, o tabefe das caudas dos peixes pulando na superfície das águas gorgolejantes e cristalinas vez ou outra ou o trabalho de pequenos roedores nos caules, raízes e galhos na terra escura e fértil? Aliás, que névoa estranha era aquela em plena cinco e meia da tarde, onde o sol ainda lutava para entrar e se contorcia entre os troncos da floresta?
Friddah estava exausta, passara o dia inteiro caminhando dependendo apenas das suas intuições e de uma voz que vinha raras vezes em seu subconsciente para lhe dizer que estava tomando o caminho errado. Desde pequena ela sempre soube que não pertencia à raça humana, que era algo parecido com ela, mas não completamente. E quando curou a mão de sua irmã, ou quando foi implorar pela mãe Mary Donna e esta a amaldiçoou pelos olhos, mas teve que desfazer a maldição para não correr o risco de sua espécie ser descoberta, ela tinha obtido as suas certezas.
Espécie... Essa palavra agora carregava um significado mais forte dentro dela. Friddah afinal tinha razão, ela não podia mais passar muito tempo na casa da mãe adotiva Almah e do pai amedrontado Lenin.
Mas algo a estava atormentando.
E começou a atormentá-la a partir do momento em que ela sofreu um corte na palma da mão direita quando foi se segurar num galho pontiagudo para pular sobre um tronco caído. Friddah se sentou numa rocha musgosa e puxou alguns cogumelos na lateral dela, engolindo, mastigando com louvor e cuspindo logo em seguida. Seu vestido estava rasgado em várias partes, suas pernas arranhadas de espinhos e galhos, seu rosto ainda guardando os restos da sujeira quando ela caiu de cara na lama após enroscar o pé num cipó esticado por pequenos animais roedores. Ela desejava muito agora tê-los capturado em vez de sentir dó e deixá-los ir... Dariam uma ótima refeição pela noite.
E a noite estava chegando como quem ameaça os instintos de outrem. Friddah não queria admitir para si mesma, mas estava morrendo de medo, de frio, de fome, e tendo a nítida impressão de que alguma coisa espreitava sua presença na floresta como... Como se estivesse saboreando o seu cheiro de longe para, na hora certa, saborear a carne.
Uma revoada de corvos voou e agitou a árvore em que Friddah se apoiava, a pequena bruxa se levantou num pulo e a névoa que se condensava cada vez mais desde aquela manhã já estava próxima novamente, parecia querer chamar o olhar da menina, deixá-la paralisada admirando-a, deixar Friddah quieta, imóvel, indefesa...
Demônio do Sol...
Friddah se levantou da rocha, agora mais descansada, e decidiu correr, rasgando ainda mais seu vestido, arranhando fortemente suas pernas e braços, estapeando seu rosto com as folhas que surgiam dos galhos tortos quando ela prestava mais atenção em olhar para trás do que para o caminho que começara a seguir. Caindo, enxotando aranhas que pulavam no seu cabelo, chorando. Friddah tropeçou mais uma vez, se encolheu entre raízes grossas de uma árvore escura, um raio de sol passou no meio da névoa que a perseguia e um rugido estremeceu a terra com uma vibração que nenhum animal conseguiria propagar.
Um feixe de escuridão manchou a névoa pálida e braços e pernas tão longos quanto os galhos lá em cima surgiram se mexendo freneticamente, dedos enormes que mais pareciam gravetos esqueléticos, pernas e mais pernas até enfim surgir o núcleo. Um núcleo cheio de pêlos, uma barriga escura e quatro cabeças disformes, com olhos em cima e embaixo e bocas circulares carregando dentes enormes, tortos, retos, amarelos com pontas escarlates, expelindo línguas negras cheias de furos e pupilas vivas que se moviam como vermes sobre pele apodrecida. O Demônio do Sol fedia à carne decomposta e seu fedor infestava todo aquele quilômetro quadrado da Floresta da Mandrágora.
Friddah se encolheu entre os galhos, fechou os olhos e o monstro desapareceu. Ao longe, entre as colinas e montanhas frias e desconhecidas, o sol se deixava descer e bordava um céu róseo-alaranjado com uma ou outra estrela a ferir as nuvens borradas, nuvens que formavam um céu de areia. Mas a menina não saiu do berço da natureza onde se encolhera, pois ela estava ouvindo o monstro galopar com seus pés cheios de dedos grossos e rígidos, de unhas pontiagudas perfurando a terra e afugentando cada ser vivo presente alí. Ele estava tomando impulso para engolir Friddah num único golpe.
Friddah engoliu o choro, levantou-se e ergueu o braço e a palma cortada, o monstro já estava visível novamente a centenas de metros correndo e destruindo tudo com uma loucura acima do nível do perigo, em direção à pequena bruxa, prestes a saltar com todas as suas bocas e dentes arreganhados. A menina congelou, o Demônio do Sol estufou o peito, curvou as pernas e pulou.
- KRISHNA!
Um tigre branco e reluzente com mais de um metro e meio de altura e olhos ferozes de pupilas verticais se materializou bem diante dos olhos de Friddah, enfiou as patas afiadas nas cabeças do monstro ao mesmo tempo em que o monstro pulava pronto para engolir a menina, e o imobilizou afundando metade do seu corpo disforme com seu peso divino na terra escura da floresta. Friddah fechou os olhos, mas os berros grasnados do monstro arrepiaram até a sua alma, quando os reabriu, havia apenas o tigre e uma névoa inodora se dissolvendo no ar frio do crepúsculo.
Friddah se levantou toda desleixada, entortou o pé e caiu pela milionésima vez de nariz ao chão. Uma patada carinhosa a fez se levantar num pulo, tanto de susto quanto pela força da divindade. A menina olhou nos olhos da fera, era tão bela, seus pelos brancos não paravam de reluzir e o começo da noite deixava-os ainda mais nítidos, era quase um animal gigante e suas patas outrora ameaçadoras agora descansavam uma sobre a outra, seu olhar repousado no rosto de Friddah era calmo, e sua presença firmava uma segurança acolhedora. A deusa terrena Krishna.
- Tu és forte, e tua mãe sabia disso quando lhe pediu para me invocar pela primeira vez, ela sempre soube que daria certo.
- Minha mãe?
- Sim. A única bruxa que obteve êxito e força no sangue e na alma para me fazer pular sobre as linhas foi Nefertiti, e isso há mais de quatro mil anos.
- Tu falas das linhas que tecem o destino, o futuro, o passado e mantém o equilíbrio de tudo nesse mundo?
- Percebo também que és inteligente. E para alguém inteligente, as linhas se tornam ainda mais perigosas. Elas sempre foram um carma na vida das bruxas... Aquelas que sabiam ler o que estava por vir, ou outras que ouviam as vozes dos mais antigos... Com o decorrer do tempo isso se tornou algo cada vez mais tormentoso, e bruxas como Nefertiti passaram a esconder as linhas aos olhos humanos. Nefertiti tinha unhas enormes, cabelos métricos... Era poderosa e sua presença já causava temor e respeito. Diziam que a origem do seu poder se dava à sua misteriosa carne imaculada, e quando uma xamã enviou um homúnculo para estuprá-la, Nefertiti fugiu em pleno deserto e nunca mais se soube da sua presença em seiscentos e sessenta e seis anos, até que um jovem beduíno adoentado disse que uma mulher que se intitulava rainha bebeu do seu sangue e desapareceu na noite. Imaginas o que ela tenha se tornado, não?
- Uma súcubo?
- Sim. Não sei que espécie de bruxa deseja se tornar isso... Uma dependente de sangue humano... Talvez para preservar sua beleza? Desconheço os sentimentos que sua raça obtém. Bruxas naturalmente vivem mais do que seres humanos normais... Mas muitas delas já buscaram a imortalidade completa, e como Nefertiti, encontraram meios ingloriosos de se fazerem eternas...
- Eu não quero viver para sempre...
- Sabes onde quero chegar, Friddah, não sabe? Tu és poderosa demais para qualquer escolha tua, qualquer mínima escolha tua, seja feita sem pensar.
Friddah abaixou a cabeça, não sabia se aquilo era um conselho ou uma repressão, a voz de Krishna era constante e terna, mas nem um pouco furiosa. Seus olhos extremamente azuis de pupilas escuras verticais eram ao mesmo tempo belos e agressivos, exalavam ordem e poder num misto de quietude, harmonia vitoriosa. Por um instante achou que a deusa a devoraria por fazer aquilo, mas a atitude foi completamente oposta, Krishna acariciou-lhe o nariz pequeno da menina com seu focinho escuro e úmido.
- Me deste muito sangue. Podes subir em mim, ainda tenho um bom tempo por aqui até o preço do teu pagamento se fazer finalizado.
- Eu dei?
- Eu não bebi só do sangue que estava na tua palma, Friddah. Tu espalhaste tua tinta de bruxa por toda a floresta, por isso estás se sentindo tão fraca, por isso atraíste um demônio do sol.
Pela primeira vez na vida Friddah se sentiu segura para falar o que sentia.
- Estou com medo, deusa Krishna.
- Isso é...
- Não! Estou com medo, estou sozinha, tenho sete anos e fui rejeitada por duas famílias, minha fome não me deixa pensar, e não posso nem me ferir por menor que o ferimento seja sem correr um risco mortal porque sou... Porque sou bruxa! Tudo acaba nisso! Bruxa! Bruxa! BRUXA! Por que não nasci humana? Por que as coisas não foram mais fáceis pra mim? Eu nunca quis isso, não acho bonito sugar a doença e depois vomitá-la em sangue, não acho bonito controlar o tempo, não gosto de ficar escondida como se eu fosse um monstro, não quero, eu... Estou cansada! E agora um tigre me fala que qualquer decisão que eu tomar pode causar um estrago maior do que eu possa alcançar! Eu não entendo isso! Eu quero brincar com uma boneca sem ter medo de ela virar pó na minha mão se eu ficar nervosa. Eu quero correr por algum campo de flores sem ouvir a voz de mortos. Eu quero andar entre as pessoas sem ouvir o que elas pensam ou o que desejam, e como elas vão morrer. Eu quero ter uma noite de sono sem precisar de barreiras espirituais para que nenhum demônio sugue o sangue do meu corpo enquanto estiver dormindo. Eu quero...
Krishna rugiu e lhe deu uma patada no rosto, arranhando brutalmente a face de Friddah e fazendo-a cair no chão e chorar escandalosamente. Krishna lambeu sua face logo em seguida fazendo a mutilação desaparecer, mas a menina ainda estava soluçando e se encolheu como se a deusa fosse um novo perigo para se proteger.
- O que tu queres então, Friddah? Adoecer o tempo inteiro? Viver pregada em mesquinharia e egoísmo? Depender de templos e velhos dizendo coisas inexistentes como paraísos e absolvições? Pensas no milagre que tua raça é. Pensas na coragem de Eva em enfrentar Deus antes de Deus fazer do Éden um lugar real. Pensas na inteligência de Lilith e Huracán em dar forças para ela continuar lutando pelo que ela achava certo. Pensas na dor de Eva, ao seu próprio sacrifício em despedaçar sua alma para a sangria bruxa permanecer pura. Ser bruxa é ser a maior dor da Terra, e também o maior milagre já existente aqui. Não fales da tua raça como se fosse uma maldição, mas como a maior força entre Carne e Espírito em sua mais autêntica luta pela sobrevivência. Se não fosse a generosidade das bruxas, os deuses terrenos estariam extintos. Se não fosse o amor das bruxas, os demônios e seus reinos jamais teriam forças para construir seus mundos, se não fosse o sacrifício das bruxas, o lugar que as Guardiãs de Sheol velam seria um completo caos, se não fosse o poder conjunto das bruxas, os céus despencariam sobre os seres humanos e anjos e arcanjos se alimentariam praticando o canibalismo como os antigos faziam... Tu és o milagre mais belo deste universo, Friddah, agora monte em mim, vou levar-te para um lugar seguro onde tu encontrarás tuas respostas à tua maneira.
Friddah deu um último soluço, tirou o rosto afogado entre as mãos e olhou para Krishna com certo receio, mas dessa vez sem medo, e montou na deusa.
As árvores e a noite passaram velozes pelos olhos da menina. Friddah tinha que segurar com força a pele e os pêlos brancos e fluorescentes no escuro para não cair, além de afundar o rosto como se Krishna fosse um travesseiro com pernas, pois não queria correr o risco de estapear a face com galhos e ramos. O frio noturno arranhava-lhe a pele com força, quase um ser orgânico e gelado querendo capturá-la no ato de cavalgar em cima de uma divindade. Krishna pulava longamente, as vezes flutuava por alguns segundos até alcançar a grama nas patas dianteiras mais uma vez, causando um pouco de enjoo e cansaço em Friddah como se ela estivesse correndo ferozmente floresta afora também.
Passou-se pouco mais de meia hora até a deusa desacelerar a corrida e fazer um suave grunhido para Friddah descer das suas costas, ordem que esta executou com eficiência. Friddah olhou melhor e reconheceu o Grande Campo, um campo extenso posterior à Floresta da Mandrágora, e onde também se iniciava a Floresta dos Deuses e a entrada para as montanhas que ela tanto contemplava de longe em Clevelier. Logo alí, uma cerejeira fresca e vibrante dançava na ventania fria e assoladora da natureza. A menina se sentiu tentada a conhecê-la, vê-la de perto, tocá-la...
- Não faça isso, a Floresta dos Deuses é regada de perigos, aquela cerejeira é uma miragem para chamá-la para dentro daquele lugar.
- Mas existem...
- Não, não existem deuses nessa floresta, assim como não há mandrágoras plantadas na Floresta da Mandrágora. Esses são nomes batizados pelos antigos, e que seus descendentes não perderam a tradição.
- E por que os antigos a batizaram de Floresta dos Deuses?
- Porque foi aí que aconteceu a Primeira Guerra das Dimensões.
- Guerra das Dimensões?
- Sim. Uma guerra entre deuses, demônios, anjos, bruxas e humanos, o que causou um colapso no destino deste universo e bagunçou as dimensões e o tempo cronológico.
- E o que houve depois?
- Os humanos que sobreviveram criaram as religiões, tendo como base as criaturas que viram. Os demônios fugiram antes das furiosas Guardiãs de Sheol fecharem as Dimensões e criaram seus reinos, assim como os anjos e arcanjos, que se humilharam para Deus para sobreviverem nos céus. As bruxas passaram a se ocultar entre os humanos para não sofrerem o perigo de serem extintas, e os deuses que não conseguiram voltar para os seus mundos ficaram presos entre a dimensão da Terra e as suas, pois as Guardiãs de Sheol, as Feiticeiras e Xamãs fecharam o Grande Portal com seis cadeados guardados pelos demônios mais poderosos. Apenas as bruxas foram piedosas com os deuses, oferecendo-lhe oferendas, sangue, ligações de alma e animais terrenos como alimento, sendo assim, nos tornamos Deuses Terrenos.
- Mas as bruxas também podem ter ligações com demônios.
- Com os demônios a ligação é diferente. Não se funde com a alma, é apenas por interesse. Se ambos conseguirem concluir seus objetivos e desejos um com a ajuda do outro, a ligação pode se partir normalmente, se não, a bruxa ou demônio deverá morrer. Ligações com Deuses Terrenos dependem da alma e do poder que o sangue de determinada bruxa possui, e são eternas.
Friddah olhou novamente para o lugar onde a cerejeira se encontrava, mas não estava mais lá. Ela encarou Krishna agora com mais intimidade e alívio, e a deusa apenas piscou lentamente numa espécie de aprovação ou bom humor, era difícil saber.
- Agora adentre os terrenos das montanhas, suba em algumas se precisar, teu caminho é longo, mas daqui por diante ele é certo. Tenho que ir agora, o tempo que tenho aqui já irá se esgotar.
- Se eu lhe der mais sangue, tu poderás ficar mais tempo?
- Sim, mas não aconselho a fazer isso. Estás fraca, precisas de água, alimento e descanso. Logo que entrar ouvirás o gorgolejar de uma pequena cachoeira, lá tem água pura e cristalina e algumas árvores frutíferas. Sinto o aroma de morangos, amoras e maçãs. E quando avistar algum coelho, não tenha compaixão em matá-lo. Tire a sua pele e faça fogo, assim que estiver bem assado e sem nenhum sangue, alimenta-te, ficarás revitalizada.
- Está bem.
- Adeus, Friddah, até breve. Estarei sempre a proteger teu espírito.
- Adeus, deusa Krishna.
E dizendo isso, correu para as penumbras das montanhas, seu lampião era a lua cheia.



~
1680
Inanna primeiro pôs os dedos finos e pequenos sobre os lábios ressecados com um leve sobressalto, avaliou cada uma das seis enormes asas negras pairadas e tapando o céu, depois para o corpo imenso e armado com músculos estufados de Radamathys, seu rosto rígido e másculo, seus chifres espessos brotando dos dois lados da cabeça e entortando nas pontas, sua presença soberana causando uma ventania inapagável na natureza ao redor das seis bruxas que admiravam o demônio com tal fome de poder e ganância que era difícil distingui-las de um forte instinto animal.
Ela não teve medo, hesitação, tampouco cuidado algum, caminhou até ele como se fosse um antigo e conhecido amigo com aquele sorriso falsamente infantil moldando-lhe o rosto de forma tão simétrica e perfeita como bizarra. Como se aquele sorriso ocultasse décadas de existência de uma velha bruxa.
Radamathys injetou seu olhar em cada uma das cinco bruxas subalternas, demorando-se um pouco mais em Carlotta, que respondia a observação apreensiva, mas determinada. Os olhos de Carlotta não carregavam ambição, queriam respostas aos pensamentos que acabara de ouvir.
Então a situação mais desconcertante aconteceu: Inanna deu a costa da mão direita para Radamathys beijar, o nariz arrebitado para o céu. Radamathys não fez o gesto, Inanna continuou com a mão desocupada no ar, mas seu sorriso se diluía lentamente da face pueril.
- Sana Sacra Sangria Estae.
Um enorme crucifixo de madeira escura e maciça surgiu sobre o círculo das seis bruxas quando a mais forte delas, Inanna, ergueu seu pedaço de galho para o alto proclamando aquelas palavras com um timbre de voz grosso e ressonante. Radamathys foi atraído até a escultura como um imã, suas asas foram invisivelmente puxadas para baixo, e pregos de um ferro bronzeado que se solidificaram na ventania da natureza penetraram em suas mãos e pernas aprisionando-o na cruz.
Aquilo era uma das maiores humilhações para a sua raça.
- Certa vez, há exatas duas décadas, quando eu era venerada e mimada no Egito, pois lá fazia uma busca por Nefertiti, invoquei um dos demônios mais poderosos de seu reino para que este me desse algum conselho sobre como encontrar uma súcubo experiente. Ele era esperto, no mesmo segundo em que cedi minha mão gentilmente para ser beijada, ele a beijou. Mas também era ambicioso... Em uma noite calorosa após tanta carne e suor, ele tentou extrair o meu sangue em um vaso antigo para levar ao seu reino e curar seus tantos feridos de uma guerra recente. Tudo o que obteve foi a sua morte, e quem venceu com sangue fui eu. Arranquei víscera por víscera do seu corpo, guardei a vida de seus chifres em um medalhão, escondi sua alma no mesmo vaso em que deveria estar o meu sangue...
Cada bruxa ouvia com atenção, até Carlotta que não sabia se ficava horrorizada com o feitiço de Inanna ou com a história que ela estava contando.
- Então, meu caro Radamathys – e sua voz se fez grossa novamente. -, eu não faço acordos com demônios, eles me obedecem porque são inferiores a mim. Eu não sou vulnerável a demônios, eles são vulneráveis à mim. E tu, com cada fibra do teu ser, te ordeno a abrir o primeiro cadeado do Grande Portal, do contrário, acabarás como o teu pai.

~
- Tens certeza do teu pedido, bruxa Friddah?
Baco franziu o cenho, se ergueu segurando a mão de Louvier, e a mulher se aproximou com ainda mais cautela. Friddah, assim como o jovem e trêmulo padre, chegavam apenas na metade da sua altura. Ammaleth também estava se aproximando, quase oculta, quase um fantasma.
- Como nunca tive na minha vida, senhor Baco.
- Pois bem, imagino que tenhas um pagamento para isso, sim? Não posso fazer isso pela boa graça de minha bondade...
- Tenho um pagamento e ele está atrás daquelas montanhas.
- Por que tão longe?
- Não sentes o cheiro?
- Sinto. Escuras. Escuras como tu.
- O pagamento é a maior delas.
- Ela?
- Sim. Ela.
- Não posso matá-la, ninguém pode matá-la. Ela é o único ser vivo em que deuses e demônios mais temem.
- Eu conheço seu maior ponto fraco. Sei como destruí-la em segundos. Afinal, deuses e demônios almejam ardorosamente o sangue dela... Não?
- Nas vias de fato, bruxa Friddah. Quando queres que eu destranque o segundo cadeado?
- Quando for o momento certo, eu o invocarei.
Auguste estava imóvel, Arpe permanecia apenas parado e raivoso, Ammaleth se espreitava para mais perto de Baco, pronta para puxar Louvier ao seu domínio. Friddah não a olhou mais, todavia um pensamento tombou sobre a cabeça de Ammaleth como um raio.
“Não faça isso, Baco irá matá-la. Terás Louvier de volta em breve. Vou precisar dele, não me interrompa.”
O braço de Friddah se contorceu e se quebrou, o céu começou a escurecer num cinzento espesso, Louvier largou-se de Baco para por as mãos sobre a boca, Auguste correu em direção a ele. Grito, sangue e trovão se fundiram num único segundo. Baco se enfureceu com o desdém.
- Estás me enganando, bruxa! Queres debochar de mim trazendo chuva e se deformando aos meus olhos! Irei embora daqui!
Antes mesmo de pensar, Baco abraçou Louvier e desapareceu numa rachadura fluorescente no ar que surgiu e se diluiu sem tempo para o raciocínio humano compreender.
Friddah se levantou do chão e se curou pela mais pura autossuficiência. Descabelada e irada se voltou para Ammaleth.
- Sua estúpida! Baco não vai querer mais devolver Louvier! Deverias ter me escutado!
Ammaleth levantou a saia do vestido para caminhar mais rápido em direção a Friddah e lhe estapeou a face com força. Friddah lhe fuzilou com o olhar, indignada.
- Estúpida és tu. Aquele não é Baco. Baco necessita apenas do prazer masculino para ser invocado, e não da morte de mais de vinte homens! Aquele é Sorath. Baco não guarda cadeado nenhum. É Sorath quem guarda! E maldição! Terei que ir ao inferno buscar Louvier por culpa tua, que não sabe diferenciar um deus de um demônio!








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Black Cherry
Arte: Nicole Absher, com edição de Black Cherry
Photografia: Diego Lema - "Dionisio"

sábado, 14 de janeiro de 2012

Killing


Mata-a quantas vezes for necessário para mantê-la fraca, frágil, impotente de palavras.
Mata-a, sombra obliterada, engrandecida, ensaiada,
faz-se de fogo e vento, não saia de perto de mim, mas. Mas. Mata-a a ama.
Mata-a, destrua seus exércitos, engane seus reforços, não se desespere
Continuarei penumbra, e sou penumbra e penumbra me-faço-o-faço
Disfarço
Mata-a, não te cansa de matá-la, não, cala tua asma
Descala teu pulmão, desprega-os, separe-os, elétrico
Senso, sem o, em, o, descalça
Mata-a, violino, não me contas das vezes em que
acordaste para roubar a madrugada
debaixo do teu lençol
enquanto te masturbas
com mel e açúcar de magnólias
Em que, em que, ohh, ahh,
Em que fizeste das estrelas um ponto de fusão
ebulição da tua cegueira de cigarro
Meinspiromedormetortomegozomefode
Não faz dela tua carência
Não faz dela teu caos
Mas, ah, mas, ah, mas
Mata-a, estraçalha-a, caça-a,
caçador das praias escondidas
em fantasmas canibais
de veias verdes nas montanhas orgânicas
enevoadas com dentes lambuzados
dos ovos de uma ventania parida em chuva
Morta, sufocada em ela mesma
Mata, morta, mata, morta,
Esquece-a, arranca-a da tua memória
E volta para os meus braços
Imploro
Imploro
Imploro
Imploro
Imploro
Oro
Impar
Moro
Imploro
Ohh
Tua amnésia me dói
Eu sei
Não me esqueço de nunca me esquecer
Sai
Vá embora
Não te quero mais
E eu te quero ainda
Ainda bem que te odeio
Ah, e eu te quero mais
Quero
eu
Oh
Me leva pra casa
Me leva






~










Andrew Oliveira
Photo: Darren McDonald - "Cold After Midnight"

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Mon Petit Vulcán



Minhas mãos frias.
O vidro estava embaçado. Estacionei o carro numa calçada alí perto, entre uma esquina em que um bar dizia-se vender sonhos por 99 centavos, acho estranho vender sonhos às quatro da manhã.
Eu estava meio alto, minha vida não se apresentava uma das melhores, e vodka é uma boa pedida para quem vive criando expectativas cegas em cima de pessoas tão pequenas que mal chegam a saber o que significa isso. Eu sei, sou meio bobo, mas eu não posso fazer nada, sou um romântico clichê, daqueles que adoram filmes clássicos. Audrey Hepburn, Vivien Leigh, Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, essas são as mulheres da minha vida. Por que nunca conheci alguém assim? Vivi num musical? Tornei-me rico por ter o acaso de encontrar alguém que me possibilitasse isso? Enfrentei adversidades que atravessaram décadas, gerações? Falei frases imortais numa vida em preto-e-branco? Não me pergunte, detesto respostas, detesto a compreensão, essa ideia de me conhecer, tudo isso é impossível. Ninguém se conhece, ninguém se ama, estamos sós e ponto final.
Sou tão amargo que sinto graça de mim.
Mas essa não é a ideia geral das coisas, o andamento mais simples das nossas vidas? Achar graça da própria desgraça?
Saí do carro com uma flanela e comecei a tirar o hálito frio da chuva no vidro, a chuva também não estava colaborando muito. Terminada a missão, voltei pro carro, e o melhor aconteceu: o carro morreu, faleceu, foi-se para o limbo dos carros alí mesmo. Ótimo. Saí do meu ford velho mais uma vez, chutei sua porta e declamei uma poesia de palavrões e pragas. As ameaças infelizmente não deram certo, mas chamaram a atenção de outrem.
Um grupo de gangsters veio com expressões de cinismo e crueldade, me apontaram uma faca, deram socos na minha barriga até me fazer cair, dessa vez me enchendo de chutes, e o gran finale: o carro voltou a funcionar e eles foram embora com a maior alegria do mundo.
Azar? Que nada, era só o término de um dia longo, horrível e desventurado. Mais um pra minha lista de dias assim, e acredite, não são poucos.
Esse dia começou assim: minha namorada (ou ex) era uma vadia. Ela era aquele protótipo de barbie, loira, de olhos claros, corpo curvilíneo, fotogênica, linda. Eu estou mais ou menos nessa linha, exceto pelo fato de eu ter músculos... Não muitos, não tão grandes, mas os tenho, e o meu louro chega perto de um castanho-claro, e tenho um furinho no queixo que não acho muito atraente, embora ela tenha passado esses dois anos de namoro dizendo que era o que eu tinha de mais belo. Se ela achasse realmente isso, talvez eu não a tivesse encontrado pagando um boquete num cara desconhecido (se fosse, por exemplo, no meu melhor amigo, eu o teria perdoado porque ela é deveras irresistível). Foi o que ocorreu mais ou menos na meia noite, depois de eu ter pedido demissão de um dos meus bicos e estar com uma dor de cabeça ao limite do absurdo.
Nunca tive muita sorte, eu sei, mas eu a amava de verdade. Gostava do seu carinho me reconfortando quando eu chegava em casa, gostava da sua respiração nas minhas costas e dela se encolhendo atrás de mim quando as madrugadas ficavam frias demais. Quando me pedia para fazer um trabalho pesado e depois dizendo que havia feito meu prato favorito (me sentia até casado), do seu cheiro em cada canto da casa como se fosse onipresente, da sua imprevisibilidade de quando completamos um ano de namoro e ela me convenceu a ir numa boate cara e requisitada. Poderíamos ter uma vida perfeita, ter filhos que herdassem nossos cabelos louros e olhos claros, uma menina que fosse sua miniatura, um menino que tivesse o mesmo furinho no queixo que eu. Mas alguma coisa a atormentava, e ela nunca me contou o que era, já se passaram cinco horas desde o nosso término e eu ainda não sei o que é. E acho que tive um pouco de culpa também, tenho essa suave impressão, então não a culpo completamente por ter a flagrado fazendo sexo oral num homem qualquer.
Passaram-se poucos minutos até minha roupa estar completamente encharcada, meus dentes começarem a tilintar, e meu corpo estar implorando por um lugar seco, quente, um recanto de roupas secas e cobertores perto de uma lareira, e um bom copo de chocolate quente pra me aquecer por dentro também. Não podia me esquecer dos meus cigarros, mas agora o único maço que eu tinha num bolso de trás do minha jeans estava tão molhado quanto eu. Levantei-me do meio da rua com dificuldade, minhas costelas ainda estavam doendo como o inferno, e uma dor me impossibilitou de respirar direito, minha visão estava um pouco turva, talvez da dor de cabeça ou da minha bebedeira mesmo. Sei que um carro parou quando eu já estava me encostando num poste, vomitando na calçada pra completar a visão de sarjeta em que eu estava. Sem estrelas e lua, só água e vento.
- Ei, cara, o que aconteceu com você? – uma voz grossa e rouca me despertou do meu cochilo em pé.
- Oi?
- O que você tá fazendo aí?
Limpei o resquício de vômito no canto da minha boca, e voltei a cruzar os braços.
- Eu estou bem.
Uma sombra imensa se aproximou de mim.
- Vem, eu te levo pra sua casa.
- O quê?
- Você é surdo também? Disse que posso levá-lo pra sua casa.
- Eu estou bem, obrigado.
- Cara...
- Olha, eu não costumo aceitar gentileza de estranhos.
Ouvi uma risadinha abafada.
- O que é que tem graça?
- Você pensa que eu sou algum psicopata ou coisa parecida? Relaxa, não vou tirar seus órgãos ou algo assim.
- Não penso que você seja algum psicopata – levantei a cabeça e vi malmente seu rosto, a chuva não dava muita trégua, só percebi que ele era bem alto. -, só que no mundo real, esse tipo de coisa não acontece comigo, é só.
- E o que aconteceria com você? Eu lhe enfiar uma faca na barriga?
- Escuta, eu acabei de ter meu carro roubado, e meu dia não foi dos melhores, então sim, espero que você faça algo parecido.
- Sinto muito não responder às suas expectativas. Venha logo, acho que vai começar a nevar, você não vai querer pegar nada sério...
Descruzei os braços enquanto ele abria a porta do passageiro do seu carro.
- Está bem.
Entrei no carro e um antro de calor e alívio tirou minhas mãos da imobilidade completa, meus sapatos e meias também estavam encharcados, o que me fez tirá-los alí mesmo, no carro daquele estranho gentil. Ele não parece ter objeções quanto a isso, apenas começou a dirigir.
- Em que bairro você mora?
- Estação das Glicínias, terceira rua à direita. E você?
- Moro no centro, num bairro onde só tem prédios, eu nunca soube o nome dele.
- Você mora em apartamento?
- Moro.
- Que horror.
- Por quê? Apartamento é... É legal.
Eu ri.
- Já morei em apartamento com a minha mãe, foi uma época apertada nas nossas vidas. Não sou um grande fã.
- Qual é a sua idade?
- Dezessete.
- E o seu nome?
- Malcolm.
- E por que estava naquela rua a essa hora da madrugada?
- Terminei um namoro, estava só dirigindo por aí.
- Tenta esquecer a tristeza dirigindo por aí?
- Não, eu fiquei bêbado antes disso.
- Por isso estava vomitando?
- Por isso e por ter recebido uma dose de chutes na minha barriga dos gangsters que me assaltaram.
Ele se calou, eu também. Esfreguei a manga do meu moletom no vidro embaçado da janela do passageiro, acho que Nick Cave estava tocando na rádio ligada do estranho gentil. Senti-me até melhor, não estava mais com frio, e aquele estranho tinha um cheiro forte que abafava todo o carro, mais forte do que o cheiro da minha ex, talvez fosse só o seu hálito, ele tinha uma respiração intensa como se estivesse fumando. Descansei a cabeça no banco e fiquei olhando para as luzes da madrugada que se deformavam no vidro e na chuva, amarelas, vermelhas, azuis, amarelas de novo, e algumas até róseas. Onde estava mesmo aquele lugar em que se vendiam sonhos por 99 centavos?

- Chegamos, qual é o número?
- Vinte e quatro quarenta e cinco. É aquela casa logo alí com as roseiras selvagens.
- Que casas bonitas essas do seu bairro...
- É um dos bairros mais antigos. Os mais velhos decidiram preservar a mesma arquitetura do ano de 1920, e os moradores novos respeitam isso, então só mudam o design interno...
- Estou tão acostumado com prédios que... Olha, é essa a casa?
Levantei a cabeça do banco.
- É sim. – e abri a porta do carro. – Obrigado pela carona... E por ter sido uma ótima companhia quando eu não tinha mais ninguém.
- Eu quem agradeço, Malcolm... E não faça nada que possa se arrepender depois.
- Não farei.
Bati e porta e atravessei a rua. Chamei pela minha mãe várias vezes até me tocar de que ela estava viajando a negócios, e eu nunca que iria dormir na casa da minha ex. Sentei na calçada perto da roseira selvagem e fiquei pensando no que iria fazer, o jeito era dormir alí mesmo.
Mas o carro do estranho ainda estava alí, e lá estava ele saindo de novo para ver como é que eu estava. Levantei a cabeça e pude vê-lo melhor sob os postes mais bem iluminados. Tinha os cabelos escuros e lisos, o nariz um pouco protuberante, porém belo, e os olhos de um intenso hazel, talvez verdes, não soube definir muito bem naquele momento, mas pelo que imaginei ele devia passar de 1,98 de altura. Ele tinha a maxilar levemente ressaltada sobre a barba por fazer, o que dava uma tonalidade máscula e severa, apesar de estar quase o tempo inteiro sorrindo com aqueles lábios róseos e claros, contrastando com a sua pele branca. Era bonito em sua totalidade.
- Venha, eu tenho um sofá no meu apartamento.
Não fiz objeções. Ele me pareceu tão seguro, tão confiante, simples em suas palavras que carregavam um significado acolhedor. Ele não me deixaria na chuva, na neve que estava por vir, não me deixaria afundar. Quem era aquele estranho que era agora meu único amigo?
Entrei no seu carro e, novamente, descansei a cabeça no banco, filosofando com as luzes que embaçavam na janela molhada. Eu já estava com os olhos sonolentos quando ele parou o veículo bruscamente e olhou pra mim.
- Tire seu casaco.
- O quê?
- Olhe o seu estado, você vai pegar um resfriado desse jeito.
- Eu não me importo.
O estranho gentil buscou alguma coisa no banco de trás, revelando-se ser um casaco escuro, com apenas um bolso no lado direito do peito. Tirei o meu encharcado, ficando apenas com minha camisa branca colada e transparente, e pus o casaco que ele jogou no meu colo quando voltou a dirigir. Pensei ter a impressão de que ele estivesse enrubescido, embora não tenha pensando muito nisso, a vodka e a exaustão ainda imperavam sobre a minha alma.
Passaram-se apenas dez minutos até chegarmos ao edifício em que ele morava, ele entrou num estacionamento e depois entramos no seu prédio. Eu estava tão cansado que a viagem pelo elevador me pareceu durar segundos.
Seu apartamento era belíssimo, e sua descrição de “tenho um sofá” me pareceu até cretina, porque havia vários espalhados, até na varanda. Uma televisão na parede e aparelhos de som da mais recente tecnologia, luminárias de aparência antiga, provavelmente eram mesmo antigas, e sendo assim bem caras. Além delas, abajures artesanais se encontravam em alguns cantos do local, e dois iluminavam belamente o quarto com a cama de casal, mais outra televisão, mais uma luminária. Agora eu estava mais tonto com a beleza de toda aquela explosão de antigo e contemporâneo do que de fato bêbado.
- Quer tomar um banho?
- Eu adoraria.
- O banheiro é logo aí. – ele apontou para uma porta próxima a um criado-mudo no seu quarto, enquanto tirava seu casaco e sua camisa. – Já arrumo uma toalha pra você.
- Tudo bem.
Abri a porta e entrei no banheiro, provavelmente maior do que o meu quarto, com uma banheira de hidromassagem, não sei dizer. Tirei minhas roupas até ficar só de cueca e olhar a minha situação no espelho. Apenas a lateral da minha barriga estava um pouco inchada e vermelha, mas nada grave, e havia um pequeno corte ao lado da minha sobrancelha castanho-loura. Mas eu fiquei preocupado com a trilha de pelos louros abaixo do meu umbigo que havia crescido de novo.
Evitei a banheira (pois provavelmente dormiria nela) e usei a ducha. Abri para esquentá-la e tirei minha cueca. A água quente pareceu reavivar cada célula do meu corpo, peguei o sabonete e me esfreguei agora com mais entusiasmo, e depois me deixei apenas recebendo a água no rosto, minhas orelhas e nariz gelados, meus pés desamparados pelo calor. Detestei tanto o verão e o verão me era agora tentador. Abri os olhos e o estranho estava lá, no vão da porta, me olhando com a toalha na mão.
Saí da ducha ainda esfregando os olhos e os cabelos e peguei a toalha, enrolando-a na minha cintura logo em seguida. Só pude sorrir.
- Eu coloquei um edredom e um travesseiro num sofá de frente para a televisão. – ele retribuiu o sorriso, embora não estivesse olhando para mim, e sim para a maçaneta da porta.
- Obrigado, de verdade.
- Não se preocupe com isso. Vá descansar um pouco, você está precisando.
Dessa vez ele me encarou, foi quando me senti uma formiga perto da altura que ele tinha. Fui para a sala e peguei um roupão que ele também deixara alí, desenrolei a toalha e enxuguei minhas pernas e cabelos, depois me encostei na vidraça e fiquei olhando os prédios acesos, as ruas movimentadas lá embaixo. Céus, essa deveria ser a cobertura...
A noite ainda estava cinzenta e espessa, o frio ficou ainda maior, mas não tanto, e até me surpreendi quando olhei para o lado e vi uma lareira acesa.
Foi quando me lembrei de que durante toda a madrugada eu não havia feito àquilo que eu deveria fazer, após beber, ser assaltado e encontrar a casa da minha mãe fechada: chorar.
Alguma música, ao longe, estava tocando, algo como “blame it on my burnin’ heart”, e meu sono estava forte, mas não era ele que estava embaçando minha visão, me fazendo sentar perto da vidraça e descansar as costas sobre ela, deixar o frio e o calor percorrerem ao mesmo tempo no meu corpo. Não era aquela estranha situação de estar no apartamento de um desconhecido gentil, com seu roupão, sua lareira acesa, sua televisão desligada, seus olhares inquietos.
Encolhi-me num canto e deixei o que quer que fosse escorrer pelos meus olhos, molhar meu rosto, fazer-me expressar a verdadeira presença de tudo aquilo que me corroeu sem dar explicações, o estranho gentil saiu do seu quarto agora apenas com uma cueca branca, sentou-se ao meu lado, me abraçou, e começou a nevar.
Afundei-me no seu peitoral quente, confortante, enorme, e ele me abraçou com força. Encolhi-me entre o seu corpo e aproximei minhas pernas das suas. Seus músculos formavam agora um santuário de calor, pude ver seu mamilo róseo arrepiado, ousei colocar minha mão sobre seu peito esquerdo, arfante, enquanto seu queixo repousava nos meus cabelos. Tudo aquilo era tão novo pra mim... E tão perfeito...
Eu não perguntei, mas ele cuidou de responder, porque de alguma forma ele já sabia o que eu queria saber.
- Merlyn.
Merlyn beijou minha cabeça, aspirou nos meus cabelos louros, passou os dedos para sentir a maciez, enquanto eu massageava suavemente seu peitoral gigante e também cuidava de sentir seu aroma. Um perfume forte, meio adocicado, meio amadeirado, na medida. Foi então que algo me veio à mente. Mordi seu mamilo, puxei com força entre os meus dentes outrora trêmulos de frio, suguei, fiz círculos com a língua, enquanto já respirava com a boca e o abraçava, passeava minhas mãos pelas suas costas nuas e ardentes, e ele me abraçava com mais força, mais brutalidade, suas mãos enormes apertando meus braços, sussurrando baixinho um gemido inviolável, me pressionando contra seu peitoral e sua pele branca quase parda.
Afastei-me. Ele abriu os olhos.
- Me desculpa... É que eu nunca fiz isso com... Com outro cara antes. – eu disse, olhando para meus braços que o desabraçavam.
Merlyn me deu um beijo na testa.
- Está tudo bem, não vou fazer nada que você não queira.


Eu o encarei. Mesmo sentado, Merlyn ainda era um armário de pessoa, isso era óbvio, ele não havia perdido o tamanho nem nada. Mas sua beleza me pareceu ainda maior, mais convidativa, menos abstrata de se admirar. Sua respiração sobre o meu rosto me deixou apenas mais amedrontado, todavia curioso por alguma coisa, pelos seus lábios entreabertos agora, talvez.
Merlyn me segurou com carinho pelo queixo, eu deixei, uni minhas pálpebras e senti sua boca descer e se compressar sobre a minha, afetuosa, devoradora, úmida, rancorosa. Sua língua aconchegou-se suavemente em cima da minha, e eu serpenteei em resposta, sentindo o sabor das suas pupilas e gengivas, da sua respiração me enchendo de vida, reavivando a minha alma-marionete com os fios arrebentados. Acho que eu estava chorando, porque o nosso beijo ficou ainda mais molhado do que já se encontrava. Eu não me importei, ele também não. Apenas me entreguei ao ritmo da sua boca engolindo a minha, cada vez mais desesperada, e seus braços fortes e grossos me abraçando, me encolhendo no seu corpo todo músculos, me pressionando contra o seu peitoral onde eu podia inconsequentemente sentir as batidas aceleradas do seu coração ansioso, e minhas mãos voltando a se aquecer nas suas costas lisas, pareciam-me um campo infinito de pele e osso banhado no mais suculento sangue da carne lívida frenética lamuriosa que era somente minha naquele recanto em lareira me toque me toque me toque me abraça mais forte mais forte não se retenhas não tenhas receios eu gosto do teu abraço teu santuário de músculos no teu peitoral que me aqueceu me tirou me expulsou dessa dor que me corroeu me escondeu isso agora novamente me abraça mais forte eu adoro seus bíceps seu recanto de calor e são tão duros e me parecem ferro sobre essa pele tão cheia de arrepios e aromas não se retenha mais porque lhe deixarei me abraçar.
Merlyn me puxou para cima dele e enfiou suas mãos ásperas e enormes embaixo do meu roupão, pegando no meu par de nádegas com força, mas sem parar de me beijar. Comecei a ficar excitado, e tão logo meu sexo já estava se esfregando na sua barriga dura enquanto eu fazia uma dança lenta e constante naquele mar de arrepios incansáveis. Ele era um pouco mais escuro que a minha pele bronzeada, e sua cabeça pequena era clara, o prepúcio rosado, devia passar de dezenove centímetros facilmente, mas minha bunda era completamente branquela. Merlyn ainda não as havia largado, pegava com força, enchia sua mão com o volume dela, mas em momento algum deixou de se dedicar à minha boca.
Ele mordeu meu queixo, arrancou meu roupão e me empurrou no chão, abriu minhas pernas para norte e sul e colocou sua língua no meio do meu par de nádegas. Senti-me vulnerável e assustado, mas aquele calor úmido no meio das minhas coxas era tão bom que me dei ao trabalho apenas de gemer. Merlyn urrou, cuspiu, e começou a colocar o primeiro dedo. Foi uma dor perto do absurdo, mas ele passou um bom tempo apenas com o dedo médio dentro de mim e acabei por me acostumar e sentir prazer naquilo, era como ser aceso no próprio recipiente de prazer que se guardava no meu interior. Mexendo, fazendo círculos, enganchando.
Foi a vez do segundo dedo, mas dessa vez Merlyn se posicionou para que eu pudesse tirar seu sexo da cueca. Parecia-me ameaçador mesmo dentro dela. Tirei-o pelo lado da roupa íntima e ele praticamente pulou no meu rosto, era grosso, de uma rigidez quase metálica, tinha a cabeça perfeita ao tamanho do corpo, daquele formato que afina na ponta e vai engrossando quando chega ao prepúcio, e era pardo, o pardo completo que a pele do seu corpo não alcançava, além de ter alguns pelos pubianos, apenas para não deixá-lo completamente depilado. Estava pingando.
Brinquei com a cabeça, até ter a coragem de colocá-lo goela abaixo, consegui alcançar apenas a metade, mas era uma delícia tê-lo na minha boca. Merlyn não parava de passar a língua dentro de mim, e eu estava me engasgando com seu pênis como um sedento por água. Ele começou então a movimentar os quadris e socá-lo na minha garganta aberta, fez-me desesperar-me em minha própria saliva.
Merlyn se levantou e eu me ajoelhei, afundei meu rosto entre seu par de nádegas trabalhadas, diferentes das minhas que eram normais e moles, as suas eram másculas e firmes, como todo o resto do seu corpo que agora involuntariava em movimentos do mais erótico dançarino e seus adornos na pele que eram as fibras musculares em conjunto, ressaltadas, seguras em artérias, sabor suave salino salvo. Passeei minha língua pela sua fenda por um bom tempo, enquanto ele gemia cada vez mais alto e empurrava sua bunda na minha cara, estava cheirando a sabonete de morango.
Ele me puxou pelas axilas e me carregou a beijos gulosos, sentindo seu próprio suor na minha boca. Colocou-me na sua cama com carinho, cuidado, como se eu fosse uma criança frágil e doente, e tirou uma camisinha de uma das gavetas do criado-mudo. Eu me sentei na cama e tomei a camisinha, colocando-a com todo o prazer do mundo no seu mastro infinitamente duro. Merlyn abriu a minha boca com seus dedos ágeis e cuspiu dentro dela. Engoli e cuspi de volta e várias vezes no preservativo residente alí.
Merlyn pulou em cima de mim e por alguns momentos achei que fosse sufocar com seu peso, seu tamanho e seus beijos. Ele depositou minhas pernas em cima dos seus ombros e me penetrou, ainda arranhando a pele do meu rosto liso com sua barba por fazer, puxando meu lábio inferior com os dentes, de leve, gemendo mais alto, comigo gritando, sobre meu grito calando, e no meu grito ardendo, e no meu grito sufocando.
Mata-me, mata-me, mata-me mais uma vez, eu te imploro.
Seus lençóis já estavam encharcados com o suor das minhas costas, e eu já estava banhado com o suor que ele pingava sobre mim, deixando tudo mais fácil de movimentar e ressecando nossas línguas. Mas não queríamos água, queríamos mar salgado, pérola líquida, praia deserta.
Quando ele já conseguia colocar todo o seu instrumento dentro de mim, passou a ir mais rápido, batendo seu saco escrotal na minha bunda com tal voracidade que eu sentia ainda mais sensivelmente as estocadas cruéis abafadas em respirações ofegantes e grunhidos de macho alfa. Foi quando, nas últimas estocadas mais ferozes e nos beijos que agora mais pareciam querer arrancar meus lábios que eu já estava no meu ápice, e ele tirou a camisinha jogando-a em qualquer canto, socando seu pau por apenas alguns segundos até ejacular e banhar o meu corpo já banhado com o sêmen que eu também expelira. E para o seu gran finale, lambeu e engoliu em cada centímetro que ele via sobre a minha carne, até onde o seu olfato alcançava.
Merlyn desabou em cima de mim, depois se deitou de peito aberto na cama, e aí pude me aconchegar em cima do seu braço e abraçá-lo, e ele fez o gesto que tanto gostava de fazer: beijar a minha cabeça e cheirar o meu cabelo. Minha perna direita em cima do seu sexo agora mole, repousando e despencado para um lado, o calor da sua barriga dura, seu peitoral subindo e descendo lentamente, as mãos não mais frias. Meu pequeno vulcão.
- O que você vai fazer agora? – eu sussurrei.
- O que você vai fazer agora? – ele retrucou.
- Eu estou cansado demais para saber o que vou fazer.
- Eu não quero saber o que você vai fazer.
- Então não lhe contarei mais os meus segredos.
- Seus segredos agora me pertencem, és o meu escravo enquanto eles forem de meu domínio.
- E o que fazes com os seus escravos, você, que tem o nome de um mago?
- Eu os amo. Esse é meu encanto.
- Desencanto.
- Desiderato.
- Eu sei o talvez.
- Desconheço possibilidades, eu quero certezas, eu amo certezas, sou feito delas.
- Então faça-me uma.
- O que você vai fazer agora?
Não respondi, ele provavelmente saberia a resposta, eu era deveras previsível, fácil de entender... E ele, o completo oposto, porque eu não compreendia sua gentileza, sua voz rouca e grossa me salvando de uma febre na chuva depois de ser assaltado e traído, sua necessidade de ter o meu corpo tão perto, seu calor que tirava... Tirava qualquer excesso de gelo e neve sobre a minha lucidez catatônica, minha lamúria ao vento, meu nada. Seria ele o mago da neve? Pois ele me disse certa vez, numa madrugada dessas, uma qualquer, para eu sair da chuva que em breve nevaria... Como ele sabia disso? Neve?
Neve não se faz de tristeza, rapaz, não a culpe por deixar-te o frio, ela só não sabe como se ama direito, não há um direito, não é verdade? É a única forma que ela conhece do amor. E que amor, que inverno, o que é isso que me faz de solidão? Os anos, os anos, neve não vai falar de novo.















~









Black Cherry
História criada a partir de uma solicitação de um grande amigo. Essa é pra você <3
Trecho "blame it on my burnin' heart" tirado da canção Firestruck, da banda canadense Young Galaxy, se você ficou interessado(a) em ouvir e sentir o clima da história =)

sábado, 7 de janeiro de 2012

Witch Fire - 10: Krishna



1661
Ammaleth veio chorando, daqueles choros estridentes de bebês de quatro aninhos que descobrem o mundo mais do que os mais velhos. Friddah levou um susto e deixou sua boneca de porcelana cair quando a porta foi aberta sozinha e sua irmãzinha entrou no quarto com o maior drama. Ela passara a tarde penteando os cabelos da pálida Carlotta de vidro, cuja parte de trás da cabeça já estava rachada com a queda. Carlotta foi abandonada alí mesmo.
Friddah levou um tempo suficientemente irritante correndo atrás de Ammaleth pelos quatro cantos da casa, querendo saber se poderia ajudá-la na sua dor ou mandá-la calar a boca se ela estivesse fazendo isso por atenção ou para aborrecer Friddah. Quando Ammaleth já estava a caminho da porta que levava a um enorme campo atrás da casa, que dava a vista da Floresta da Mandrágora e, mais adiante, das montanhas que rodeavam Clevelier, a irmã mais velha ergueu o braço e a porta se fechou com vigor, fazendo Ammaleth dar mais um grito.
- O que foi? – ela disse, suada, irritada, mas curiosa.
- Mi... Minha... – e voltou a soluçar tanto que era impossível distinguir qualquer palavra.
Friddah olhou melhor e viu que Ammaleth segurava a mão direita frouxa com tanto cuidado que tinha a impressão de que ela fosse cair a qualquer momento. A irmã mais velha se aproximou e puxou a mão, abrindo sua palma e fazendo Ammaleth chorar ainda mais, se é que isso era possível. Estava extremamente vermelha, ou melhor dizendo, queimada.
- Ammaleth! O quê que ‘cê fez?
- O... O... Caldei... – Ammaleth se concentrou ao máximo para não soluçar no meio das palavras, embora não se pudesse afirmar que ela tenha obtido êxito no esforço.
Friddah se dirigiu à porta da cozinha entreaberta e viu um caldeirão borbulhando e esfumaçando um delicioso aroma de sopa. Tão logo entendeu. Mesmo nessa idade, uma bruxa pode ter mais perspicácia do que um ser humano comum.
- Vamos. – ela pegou a mão esquerda da irmã e juntas foram para o campo atrás da casa. Era espaçoso e tinha uma grama tão esmeraldina quanto os olhos de uma Coeurcourt. Afinal, Friddah tinha os olhos mais verdes do que qualquer uma de sua família, isso relevando o fato de que os olhos de Ammaleth chegavam a cintilar, mas perdiam porque absorviam facilmente a cor ao seu redor. Sobretudo a cinza de uma chuva. Friddah não via nada demais nesse detalhe, Mary Donna via muita coisa.
- Onde está mamãe? – Foi a primeira frase inteira e sem arranhões chorosos da menininha.
- No porão. – Friddah lhe solicitou.
As duas meninas se sentaram embaixo de uma velha cerejeira, que já tinha mais folhas douradas do que róseas, o frio comum que vinha das montanhas soprava com cautela sobre a pele e os cabelos negros cacheados. Ao longe, o sol mornava com as nuvens que o cobriam de ora em ora, embora ele já estivesse nos seus últimos minutos de vida. Friddah se sentou de frente para Ammaleth, que cruzou as perninhas e estendeu a mão para a irmã, numa expectativa simples, numa certeza cega e inexorável.
- Lembre-se do que mamãe disse: concentração. – Friddah lhe aconselhou, mesmo que não fosse normal uma criança de cinco anos falar aquilo, mesmo que ela nem soubesse o significado total da palavra que declamara.
- Sim...
Ammaleth apertou os olhinhos e por um momento Friddah teve vontade de rir com a carinha fofa que ela fez, mas ela também se concentrou e pôs a mão direita da irmã menor sobre as suas. A irmã mais velha passou algum tempo sussurrando uma oração para si mesma, e então já não havia mais queimadura alguma, apenas a palma pálida e macia da menina.
Ammaleth pulou num grito – e dessa vez era um grito de alegria – e abraçou Friddah, que se desvencilhou e lhe pediu para esperar. Ela subiu a cerejeira e puxou uma corda, que logo depois se revelou ser duas, que logo depois se revelou ser um balancinho. O rosto de Ammaleth se iluminou.
- Quer voar?
Ammaleth se sentou no mesmo instante no brinquedo, Friddah começou a empurrá-la e passado algum tempo quando o sol já não era mais do que a metade de uma bola alaranjada entre duas montanhas escuras, Ammaleth pairava no ar e seu vestidinho inchava e ela parecia tão próxima das estrelas, parecia ela mesma uma constelação, a mais bela de todas. E depois caía na grama e gargalhava com Friddah que fazia o mesmo. A árvore e as duas pequenas bruxas.
Mary Donna saiu da casa em direção às filhas a passos largos, Ammaleth e Friddah ficaram sérias no mesmo instante e se levantaram do chão, as vestes imundas. A mulher usava um vestido púrpura-escuro e suas mãos estavam sujas com o que parecia ser terra ou barro.
- Ammaleth, para dentro.
E Ammaleth desapareceu adentrando os aposentos da mãe. Friddah segurou as mãos e abaixou a cabeça. Mary Donna puxou um punhal prateado escondido em alguma parte daquele vestido.
- Daqui a seis meses tu farás seis anos, está na hora de aprender a defender teu sangue.
- Por que preciso... – ela ergueu a cabeça – defender meu sangue? Ele não está dentro de mim?
- Em breve me compreenderás, por ora apenas me obedeça. Dê-me a mão.
Friddah sabia aonde aquilo acabaria, embora não pudesse compreender suas tantas certezas. Ela não deu, Mary Donna teve que puxar um dos braços à força até obter enfim a palma da mão direita aberta de Friddah. A mãe passou o punhal num golpe veloz, o sangue esguichou e a Friddah soltou um urro terrível de dor, caindo de joelhos no chão e chorando como Ammaleth estivera chorando há meia hora.
- Chame!
- Não quero!
- Chame! O ferimento que este punhal causa não pode ser curado sem precisar invocar! Chame!
- Kr... Kri... KRISHNA!
Friddah ergueu o braço e abriu a palma ferida para o céu, o corte profundo se curou e um tigre branco e reluzente se materializou ao seu lado num salto, correndo livre e glorioso pelo campo até desaparecer entre as árvores da Floresta da Mandrágora e deixar apenas um rastro de luz, um rastro da sua divindade.
Friddah não mais chorava.
- Para que preciso disso, mamãe?
- Demônios do Sol.
- Demônios do Sol?
- Sim, e não me faça falar isso mais uma vez. Vamos para dentro, antes que Ammaleth queime sua mão novamente.
E antes de Friddah se levantar do chão, cansada e sem muitas forças nas pernas, Mary Donna olhou para ela uma última vez e entrou. Friddah pensou tê-la visto sorrir.

~
1680
Estava abafado.
Louvier tentou se mexer, mas alguma coisa atrás de si o segurava, e algo mais pesado pousava sobre seu peito e suas coxas, até mesmo seus pés. Uma respiração passeava pelos cabelos de sua nuca até seu ouvido. E então tudo pareceu ainda mais quente, insuportavelmente abafado, como se aquela respiração não fosse a única a sugar o oxigênio naquele lugar.
Ele abriu os olhos com cautela, o teto estava pintado com uma tinta escura, as paredes com vários balaústres e candelabros com velas pela metade, alguns lampiões aqui e ali já com pouco querosene. Mas aquele era um pequeno detalhe. Louvier estava nu no meio de tantos outros homens nus, que dormiam tranquilamente entre corpos e cabeças como algo comum, irrelevante, indigno de atenção.
O jovem padre virou um pouco a cabeça e se deparou com um rosto áspero, uma barba leve sombreando um rosto másculo que despertou e começou a se mexer atrás dele, esfregando seus músculos suados nas costas também banhadas de água salgada do rapaz. Ele começou a lamber e mordiscar carinhosamente a orelha de Louvier, fazendo-o semicerrar os olhos novamente, e um segundo acordou, um jovem louro de musculatura leve e magra que ofegava em sua barriga, e passou a beijar com cautela e arrepiar a trilha de pelos no ventre do padre, puxando com os dentes o pequeno monte de cabelos escuros no seu íntimo, enquanto acendia seu íntimo com as mãos. Um ainda mais jovem, provavelmente não passando dos dezessete anos, de rosto belo, olhos azuis e ombros largos, escalou no seu corpo e beijou o homem que violentava a orelha de Louvier, e depois beijou Louvier enfiando sua língua bruscamente entre dentes e gengivas, até alcançar a linha de chegada que era a garganta. Louvier o abraçou e o rapaz de olhos azuis permaneceu como estava enquanto engatinhava, de quatro, e o loiro que se encantava com pelos escuros descobriu nas coxas do moreno sua fonte de diversão, até chegar em suas nádegas musculosas e colocar o rosto entre elas, esfregando-se nelas.
Crucificaram então, Louvier. E pouco a pouco, mais e mais daqueles homens iam acordando e fazendo parte do banquete. Puxaram e esticaram os braços e pernas do padre nas quatro direções, brincando com seus dedos, tanto os dos pés quanto os das mãos, colocando sexos, braços, bocas, sentando em cima, dançando.
Tão logo, todo aquele lugar estava num ritmo único, homens mais velhos, mais fortes e mais peludos buscavam os mais jovens, menores e mais lisos no centro onde se deitava Louvier, para agarrá-los e invadí-los, devorá-los em qualquer canto, enchê-los daquele clímax espesso, perolado, morder a pele e sentir sua elasticidade nos dentes afiados, beber suor e saliva, aspirar aquele odor masculino e viril, afogar-se naquele calor inacabável.
Louvier se levantou, e o homem que estivera o tempo inteiro nas suas costas fez o mesmo, ergueu-o pelas pernas e colocou. Louvier tentou gritar, gemer, mas outro homem, um sombreado por barba e cabelos castanhos beijou-o, engoliu seus lábios, puxou-os, torturou cada pedaço daquela pele sensível, e o que o carregava o obrigava a pular, sentir com mais gravidade aquela dor aguda e insuportável como se estivessem enfiando uma agulha na alma. E mais um veio para participar do beijo, seu irmão gêmeo. Breve foi esquecido pelo primeiro homem, que após sujar suas nádegas de sêmen e saliva, foi-se devorar uma carne nova. Louvier deitou-se sobre um dos gêmeos, abriu suas pernas e coxas grossas e colocou seu sexo longo e torto na boca, pegando-o pela base com uma mão e massageando seu saco escrotal com a outra, ao mesmo tempo em que o segundo gêmeo afastava suas pernas não para sugá-lo, mas para penetrar seus dedos e buscar o sêmen do primeiro homem para provar, ainda no íntimo de Louvier, até conseguir beber tudo, cuspir incansavelmente e colocar a cabeça. Louvier gemeu novamente, porém dessa vez foi fácil, o que causou em cada fibra do seu corpo um prazer grandiosamente insuportável. O gêmeo que estava apenas aberto e recebendo a boca do padre, grunhiu e ejaculou em sua boca, Louvier engatinhou para o seu pescoço enquanto o segundo gêmeo o penetrava com mais força e rapidez, e cuspiu todo o sêmen na língua do seu dono, que engoliu e o beijou ainda mais ardorosamente.
E mais dois vieram para penetrar e sugar Louvier, e aquilo parecia não ter um fim, porque quanto mais ele chegava próximo da exaustão, mais fortes e mais dispostos os vinte e tantos homens naquele porão se tornavam. Desde cedo, ele sentia que alguma coisa estava errada, algo mais forte que isso, como uma energia presente naquele ar odorífero de homem nu. Uma energia que se apoderava do prazer de cada um deles, e fazia-os produzirem mais para se tornar mais forte... Mais... Sólida.
Louvier saiu do meio dos gêmeos que se beijavam e se enfiavam dedos e línguas, e começou a andar em direção a uma portinhola no teto ao lado de um lampião, deu-lhe a ideia de que aquela era a entrada e a saída do porão. Então um jovem o puxou, o beijou e se sentou sobre ele, reacendendo o padre novamente e fazendo-o expelir seu líquido dentro dele. Mas Louvier começou a se sentir mais cansado, mais exausto, quase como se tivesse uma tonelada sobre seu corpo completamente e extremamente dolorido. Ele empurrou o jovem que queria mais e se levantou de novo, mas dessa vez dois homens que passavam de dois metros de altura o seguraram pelos braços e o ergueu pelas pernas, enquanto um ruivo de cabelos cacheados e sedosos, barba rala e uma trilha de pelos vermelhos no ventre duro e trabalhado saiu de um grupo de louros molhados de suor e sêmen, dirigiu-se a Louvier sequestrado e colocou-se dentro dele, seu peitoral amassando o rosto do padre, pingando sobre ele. Era enorme. Louvier gritou e se debateu, mas o ruivo parecia gostar do seu desespero, parecia ficar mais rígido com isso, e consequentemente mais veloz em socá-lo com fúria.
Mas Louvier já não estava mais sentindo prazer algum, gozando com aquele calor, reconfortado em cada musculatura e sessão de beijos e abraços, violência e devoção à carne.
Ele estava sendo estuprado.
Louvier estava exausto e cada parte do seu corpo doía como se estivesse quebrada, e seu único desejo era que tudo aquilo acabasse. Porque de alguma forma, em alguma parte da sua mente, ele sentia que tinha algo errado, e aquela energia se alimentava de tudo, até dos seus sentimentos negativos.
- Por favor... Parem... – ele começou a implorar, o pescoço agora despencado para um lado, sufocado com aqueles músculos ofegantes em cima dele, e aquelas mãos ásperas apertando suas coxas pareciam agora prender a circulação do seu sangue. Aquele homem ruivo e furioso estava pela quarta vez ejaculando dentro dele. Mais, mais.
Sua visão começou a embaçar, mas ele ainda podia distinguir um jovem deitado e de pernas abertas recebendo uma fila indiana de homens enormes, um outro sendo carregado e escravizado por mais quatro, um moreno mais adiante de cabeça para baixo recebendo mãos e bocas em suas nádegas, e logo alí um jovem pardo e choroso tossindo e se engasgando com vários colocando em sua boca ao mesmo tempo, imperdoáveis com o quanto sua maxilar já estava escancarada.
Louvier já estava no seu limite, não aguentava e não tinha fôlego. Estava com fome, muita fome, seu estômago doía tanto quanto seus músculos. E sede, aquele banho de água salgada e quente que saía daquele antro de homens ressecava sua boca, sua garganta, sua língua com odor de órgãos e machos.
A porta do porão foi arrebentada, uma escada caiu e um tiro ecoou, todos pararam, se levantaram e olharam para a invasão, Louvier foi jogado como um pedaço de carne inútil e já usada demais, trêmulo, suando frio, chorando silenciosamente.
Ammaleth foi a primeira a entrar, com seu habitual vestido preto balonê de mangas longas e carregando um lençol branco num dos braços, seguida de Auguste que carregava uma espingarda numa mão e uma espada prateada na outra.
Os vinte e sete homens no porão começaram a piscar e balançar a cabeça ao mesmo tempo, pareciam ter acabado de acordar de um sonho, passaram a se tocar com nojo e se entreolharem com total repugnância, como se jamais tivessem imaginado fazer aquilo com outros homens, cobrindo seus sexos ainda rígidos com as mãos, o que não causou grande resultado. Louvier saiu da escuridão das costas e pernas e se rastejou em direção à luz que o cegava, Ammaleth o socorreu e o cobriu com o lençol branco que trouxera, ajudando-o a se levantar e levando-o em direção ao irmão mais velho, que o abraçou e o beijou na cabeça.
- Eu... Eu... Estou tão envergonhado de mim mesmo. – foi então que ele começou a chorar de verdade.
- Não se sinta assim, você estava hipnotizado pelo poder persuasivo de Arpe. – Ammaleth pousou a mão direita no ombro do padre encolhido e abraçado no irmão, olhando de esguelha de minuto a minuto para o grupo de homens e jovens desnorteados.
- A... Arpe? – o nome na boca de Louvier o fez sentir mais nojo de tudo aquilo.
- Arpe é um seguidor de Baco, padre Louvier. Ele usou o prazer de todos esses homens para tentar invocar o deus que tanto adora.
- Mas... Baco? Ele me disse... Ele me disse que era uma festa pra Saturno...
- Saturno é comemorado no final do ano e início dos solstícios, padre. Ainda estamos na metade de outubro.
- Mas... Por quê? – ele olhou para Auguste, que ainda apontava a espingarda para os homens nus, como se esperasse que ele desse uma resposta.
- Desculpe, não posso lhe falar muita coisa de Arpe, isso não pertence à sua raça. De qualquer forma, também ainda não descobri o que ele é. Vamos, esses pobres coitados podem se cuidar sozinhos.
Louvier não compreendeu muito bem o que Ammaleth falara, e porque o tratara como se fosse algo à parte do que ela era, mas esqueceu segundos depois.
Ammaleth foi a primeira a subir a escadinha, ajudando Louvier que ainda estava trêmulo e nervoso, e por último Auguste que aconselhou ao grupo dos hipnotizados para fazerem o mesmo e saírem daquela casa o mais rápido possível. Louvier pôde olhar melhor para a morada em que estava, pois entrara nela pela noite, e ele mal sabia quantas noites haviam se passado desde então. As paredes eram todas pintadas com imagens de chifres, homens e deuses se sobrepondo em tonalidades púrpuras, como se todos aqueles corpos fossem um só, se formassem num só para aquele deus. Baco. E havia ainda um zumbido inquieto de várias moscas, um fedor sutil que se espalhava pela brisa fria dentro da casa bagunçada, uma lamúria, uma canção.
Ammaleth caminhou por um corredor de frente para uma cozinha em direção à última porta oculta sobre uma penumbra, Louvier a seguiu, mas Auguste segurou seu braço.
- Não, Louvier, você já passou por coisas demais, temos que ir embora, deixe Ammaleth fazer o que tem que ser feito.
- Eu... Eu preciso ver, Auguste! – ele se virou com uma expressão de quem implora, que Auguste detestava por sempre se render a ela. – Não quero ter pesadelos de novo... Se eu puder ver... Seja lá o que for, vou me sentir... Vou me sentir livre de tudo isso.
Auguste segurou seu braço por mais um tempo, Louvier sabia que ele estava processando a informação na sua cabeça, então esperou. Ammaleth chegou na porta e segurou a maçaneta, e Auguste afrouxou a mão no braço do irmão caçula.
Ammaleth olhou para trás e Louvier ficou ao seu lado, segurando o lençol branco que cobria sua nudez com firmeza, ela abriu a porta e uma fumaça negra de moscas choveu sobre eles e se espalhou pela casa. Louvier cobriu o rosto, Ammaleth assoprou e as moscas caíram, limpando o ar da escuridão descompassada. Mas o fedor era impossível de se tirar, e era tão forte que os dois tiveram ânsias de vômito e acessos de tosse até conseguirem ver a origem de tudo aquilo.


Uma mulher apodrecida deitada no que outrora deveria ser uma cama, mas a cama agora era um ninho concentrado de ratos, baratas, centopeias, escaravelhos, urina e fezes. Sua pele estava tão pálida que chegava a uma tonalidade verde-amarelada, tão magra que podia se ver cada osso sobre a cortina da tal pele, repleta de feridas abertas e que esguichavam pus e um sangue escuro que borbulhava quando caía no chão. Sua cabeça já estava quase que completamente careca, exceto por alguns tufos de cabelos mais resistentes, mas ainda assim piolhos e insetos furavam o couro cabeludo para beber do seu sangue adoecido e se parasitavam alí mesmo. As baratas entravam e saíam das feridas, uma lacraia saiu do seu ouvido e agitou as antenas, e a mulher ergueu os dois braços, urrando alguma coisa, talvez implorando para tirarem-na dalí.
- O que é isso? – Os olhos de Ammaleth se encheram de lágrimas, e ela pôs a mão na boca, tanto pelo fedor quanto pelo horror.
- Deve ser a parenta adoecida de Arpe...
- Mas Arpe não é...
Porém, antes que Ammaleth pudesse falar alguma coisa, a mulher submersa em podridão abriu a boca e cuspiu uma barata, e então falou com todo o fiapo de força que lhe restava.
- Destrua... O amor... De Arpe...
A mulher se deitou novamente, e num último suspiro, os insetos e ratos se empenharam em se alimentar de sua carne com mais voracidade. Louvier saiu do quarto para tentar respirar no corredor, e Ammaleth esperava o que vinha a seguir.
Os ossos e o crânio pairaram no ar, as baratas, moscas e centopeias também, grudando-se e formando uma espécie de corpo, enquanto os ratos montavam pernas longas e pés pontiagudos. Um monstro em sua forma completa urrou, na sua garganta feita de asinhas e pernas, nas suas cordas vocais feitas de antenas, e tentou pular sobre Ammaleth, que já estava cortando sua mão no ar, saindo do quarto e trancando a porta.
Arpe ainda estava vomitando quando ela reabriu o quarto, agora quase que completamente vazio, exceto por uma cama arrebentada, uma janela escancarada recebendo o sol matutino, e um coelhinho branco de olhos azuis pulando para lá e para cá, desaparecendo segundos após numa fumacinha pálida com cheiro de jasmim.
O momento de paz se desfez em pouquíssimo tempo.
- Essa não... Auguste! AUGUSTE!
Ammaleth correu e saiu do corredor com Louvier no seu encalço, a porta dos fundos da casa estava arrebentada, a espingarda jogada num canto e a espada num outro. A bruxa foi para o quintal onde ainda restavam resquícios da festa, garrafas e roupas aos montes, e lá estava seu marido imobilizado pelos homens hipnotizados.
- Ammaleth! – ele se debateu e urrou, pois as marionetes começaram a rasgar suas roupas com rapidez.
Ammaleth ergueu o braço e tirou um punhal de uma das mangas, mas uma lufada de ar a jogou a mais de um metro para trás enquanto Louvier também saía da casa, segurando a espingarda do irmão. A mulher se recompôs no mesmo instante e voltou a erguer o braço, abaixando-o quando viu Louvier.
- Louvier! Vá embora daqui! – ela esbravejou.
- Não posso!
- O quê?
- Não posso! Eu quem trouxe vocês para cá! Isso é culpa minha!
- Não seja estúpido! Eu e Auguste podemos nos salvar! Agora fuja!
- Não vou fugir, Ammaleth. Ele é meu irmão!
A espingarda voou para longe do domínio de Louvier, Ammaleth foi erguida no ar por mãos enormes e invisíveis puxando seus braços e pernas, e Arpe saiu das sombras das árvores alí perto com um sorriso presunçoso no rosto.
Ele olhou primeiro para o padre amedrontado, depois para a bruxa imobilizada, e por fim para Auguste, nu e vulnerável, assim como os homens que o seguravam e o ameaçavam com um facão. Deu uma risada baixinha e falou:
- O sangue dele servirá para a oferenda final. Matem-no.
- Não!
Louvier se aproximou do conjunto de homens hipnotizados.
- Por favor, me use no lugar dele.
Arpe olhou para Louvier com curiosidade, franziu o cenho levemente e chegou perto dele a passos largos e ritmados, quase uma canção com os pés descalços.
- Tu és o meu convidado, padre, não posso lhe matar.
- P-Por favor... Eu adoraria ser um presente para Baco mais do que... Ele. – e apontou para Auguste, torcendo para que a sua mentira parecesse convincente.
- LOUVIER! NÃO! CALE A SUA BOCA! SAIA DAQUI! – a reação do irmão mais velho foi imediata.
- Lou... Vier... Es.. Pere! – Ammaleth sussurrou, tentando ao máximo perfurar sua carne com o punhal escondido numa das mangas do vestido.
Arpe olhou para Ammaleth e Auguste, acabando de ter uma ideia peralta e sorrindo marotamente. Fez um aceno de mãos e seus súditos jogaram Auguste para longe com chutes, puxando Louvier para o centro deles, que já se despia do lençol branco que Ammaleth trouxera para ele. O ruivo que o estuprara era quem estava segurando o facão, apontando para a sua barriga branca, pronto para perfurá-la à mínima ordem.
- O que está esperando? Mate-o!
Uma manada de antílopes destruiu a parte da trás da casa de madeira e explodiu para todos os cantos do quintal, Ammaleth caiu com o braço sangrando, o ruivo penetrou o facão em Louvier que soltou um grito infinito de dor, tiros para todos os lados vindos de Auguste e sua espingarda fizeram cair vários homens e assustar ao restante que fugiu para dentro da floresta enquanto o estuprador enfiava a lâmina pela segunda vez na última oferenda, que já tossia sangue e tentava gritar com a voz rouca e afogada.
- LOUVIER! LOUVIER! – a voz de Auguste vinha de todos os cantos, uivadora, clamando por piedade.
Não obstante, uma quantidade formidável de faunos saiu de baixo da terra com punhais enferrujados pulando em cima dos antílopes que mordiam e atiravam as criaturas para longe, dando chifradas e coices enlouquecidamente. Ammaleth pulou em cima de Arpe e enfiou as mãos no seu pescoço pronta para estrangulá-lo, mas Arpe só se pôs a rir.
- O que é... Você? – ela franziu o cenho ao sentir aquela pele dura, que mais parecia cera...
- Eu sou – ele a segurou pelos braços e se prostrou em cima dela – imortal. – e lambeu seu rosto com a língua gelada.
- Saia... De cima... De mim! – Arpe tossiu sangue sobre o decote do vestido de Ammaleth, se levantou e tirou o punhal do peito, mas sem parar de rir, o ferimento não estava mais lá.
- Isso é impossível... – Ammaleth levantou-se num pulo e se posicionou para atacar de novo – Homens não podem ser bruxos...
- Não sou um bruxo. Minha mestra me fez imortal! Tão poderoso quanto ela! E tenho sua energia percorrendo por cada parte do meu corpo! Ela é quem me movimenta, ela é quem me ama, ela é minha fonte de vida!
- Quem é tua mestra, Arpe?
Ammaleth estava amedrontada, mas não teve muito tempo para pensar, pois os homens que fugiram para as florestas voltaram como que por magnetismo, atraídos um pelo corpo do outro até todos formarem forçadamente o que parecia ser um círculo envolto do corpo de Louvier.
A pele de todos eles, exceto a do padre-oferenda, foi puxada e sugada por um redemoinho cada vez mais visível no meio do círculo, sobre o corpo de Louvier. Eles pareciam agora conscientes em vez de hipnotizados e manipulados, pois urravam e imploravam por perdão a Deus, como se Deus estivesse participando de todo aquele festim pagão. Depois foi a vez dos músculos, eles estavam agora em carne viva, esguichando sangue para todos os cantos, por fim as veias, os órgãos, e os ossos que, por um breve momento, fundiram-se num grande triangulo, até explodirem e pular dalí um homem extremamente grande e musculoso, passando dos dois metros de altura, cabelos castanhos e levemente cacheados chegando até os ombros, uma saia de couro que cobria até a metade das coxas volumosas e os pés descalços, a beleza tão tragante que parecia vinho evaporado, uma presença tão voluptuosa que dava a sensação de querer tirar as vestes e dançar nu por campos verdejantes e noites de bebedeira.
Baco olhou para Arpe e Ammaleth, depois para Auguste que apenas chorava ajoelhado com as mãos cobrindo o rosto, e por fim para Louvier falecido, que com um toque do seu dedo aspirou o ar da vida como se tivesse acabado de chegar à superfície de um mar. Baco ajoelhou-se ao lado de Louvier que ainda abria os olhos, fitava desnorteado o ambiente ao seu redor, e então recomeçava a chorar.
- Tu és a última oferenda? – a voz de Baco ressoou quente, grossa e confortante. Ele depositou a mão enorme no ombro do jovem, que encolheu as pernas e abraçou a si mesmo.
- S-Sou, eu acho.
Auguste tirou as mãos do rosto e tentou correr para o irmão ressuscitado, mas Ammaleth foi mais rápida e fê-lo afundar os pés na terra com um rápido movimento de dedos.
“Não, Auguste, eu não conheço Baco, não sei como é o temperamento deste deus, por favor, não se mexa.” – o pensamento de Ammaleth ecoou na cabeça do marido.
- Meu jovem rapaz, conheces a lenda de que a última oferenda é a que vive ao meu lado? E não quem tentou me invocar?
- Não...
- Se não conheces, desejas viver ao meu lado? Em vez de ficar neste mundo de dor e martírio?
Louvier lembrou-se do estupro que sofrera, e se abraçou ainda mais forte.
- Não pense nisso, garanto que não passarás por isso novamente, não ao meu lado, não no meu mundo.
Louvier olhou para Baco pela primeira vez, ele estava sorrindo, um sorriso gentil, que se formava num suave cinismo, mas ainda assim, tranquilo e convidativo. Era tão belo, talvez o homem mais belo de todos... Mas não era um homem, era um deus. A razão de um deus é diferente da razão de um homem.
- Ele está mentindo, eu sou a última oferenda, grande Baco! – Arpe caminhou em direção ao deus, com óbvia ânsia de inveja e fúria.
Baco mal olhou para trás, continuou fitando Louvier.
- E por que não sinto teu sangue na minha boca? Por que sinto o sangue deste rapaz em vez do teu, já que tu és a oferenda verdadeira, mortal?
- Mortal? Eu não sou mortal! - Arpe deu mais uma daquelas risadinhas abafadas, quase doentias. – Viverei para sempre.
Foi a vez de Baco rir.
- Quem te enganou, pobre criatura? Quem te fez pensar que és imortal? – ele olhou de esguelha, mas não virou completamente o pescoço. – Eu sou imortal, Louvier, o meu novo sangue, será imortal. Mas tu? Quem és tu? Parece-me mais um boneco vivo de alguém morto...
- Arpe é meu súdito.
Uma voz feminina saiu da floresta, apesar de ter uma tonalidade mais vibrante, como voz de veludo. Seguida da voz, sua origem surgiu em poucos segundos: uma mulher alta usando um vestido longo e vermelho com um decote que desnudava as costas, os cabelos negros e cacheados chegando até a cintura, o rosto sagaz e altivo, nariz arrebitado e sobrancelhas arqueadas, os lábios pequenos que de longe pareciam ser um coração, e os olhos... Que olhos verdes, que olhos estranhamente verdes, que olhos extremamente verdes...
- Quem és tu, bruxa?
Ammaleth estava de visão arregalada, espantada, o coração a mil, embora não soubesse explicar por que estava assim com a presença daquela bruxa... Alguma coisa no seu coração, na sua mente, lhe implorava para lembrar, mas algo mais forte a impedia de fazer isso. A bruxa fitou Ammaleth com intensa curiosidade, depois se dirigiu a Baco com cautela e leveza.
- Friddah. E lhe solicitei a invocação de tua presença para destruir o segundo cadeado do Grande Portal.


~
1663
- Leve-a de volta.
- O quê?
- Me ouviste, leve-a de volta, não quero mais aquela... Aquela menina na minha casa.
- Lenin, eu não posso fazer isso... Friddah nunca nos fez nada, ela é a criatura mais doce que já entrou na minha vida!
- Almah, preste atenção... Tem uma coisa, uma espécie de aura, de energia, envolta dessa criança que me assusta...
- Isso é um absurdo.
- Me ouça! Essa aura parece ao mesmo tempo fazer e não fazer parte dela... É uma coisa que pode fugir do controle dela e... Eu não sei! Eu não quero mais Friddah perto do nosso filho!
- Lenin, tu não estás falando coisa com coisa... E eu não posso renunciar à Friddah, levá-la à Mary Donna assim, sem mais nem menos! Ela é um ser humano, não um brinquedo que podemos devolver porque nos desinteressou!
- Não quero saber, Almah. Quando eu chegar...
Almah esbofeteou Lenin, Lenin devolveu com um soco, fazendo a mulher se desequilibrar no criado-mudo da sala e cair, e chorar, e esconder o rosto.
- Vá ver como nosso filho está, pareces pensar mais em Friddah do que nele.
Lenin calçou as botas e bateu a porta com força quando saiu.
Friddah saiu de trás da porta da cozinha ao lado da sala de estar e ajudou Almah e se levantar, envergonhada, do chão. Ela fitou a mãe com aquele olhar que a mãe tanto adorava, não de súplica, mas de uma compreensão fora do normal, incomum à uma criança de sete anos.
- Não dê atenção às palavras do seu pai, Friddah. Ao contrário dele, sinto algo de bom em você, porque você é meu anjo, o meu próprio milagre, não vou...
Ela voltou a chorar, Friddah tirou as lágrimas do seu rosto com sua mãozinha pálida, macia, morna.
- Papai tem razão, mãe. Eu não sou o que vocês são.
- O quê? Não! Friddah! Não!
- Mãe, ouça, eu posso curar o meu irmãozinho.
- Friddah, minha querida, do que tu estás falando?
Friddah fez um muxoxo de impaciência, pegou a mão de Almah e a levou até o corredor da casa, entrando no quarto do seu irmão de criação e deixando a mãe perto da porta. O menino estava deitado na cama, os braços sobre o lençol marrom e a expressão abatida, sua pele estava branca como o mais autêntico marfim, suas mãos frágeis descansando uma em cima da outra, a respiração pesada, rouca, tinha-se a impressão de que a doença já estava até na garganta, e a qualquer momento sairia pela boca.
A pequena bruxa pousou suas mãos saudáveis sobre as frágeis e febris do menino adormecido, disse-lhe baixinho que tudo ficaria bem, fechou os olhos e esperou. O momento não demorou a chegar, nas pontas dos seus dedos, nas palmas de suas mãos, sobre as pálpebras de seus olhos fechados e se concentrando ao máximo, a doença estava sendo sugada ao máximo por Friddah e entrando no seu próprio corpo. Era a sensação de uma escuridão tóxica estar se alojando em cada osso da sua caixa torácica, braços e pernas.
Friddah se levantou e correu, empurrando uma Almah sobressaltada que assistia o filho despertar como quem desperta em um belo dia de sol, e vomitou sangue por todo o corredor formando uma poça escura, fétida e amedrontadora. Almah não sabia para quem olhar, mas decidiu ajudar a menina que agora era quem estava sofrendo.
- Eu estou bem, mãe. – Friddah limpou o sangue escorrendo no canto da boca com a manga das vestes e sorriu. Almah se sentiu desfalecida. – O mal já não reside mais aqui.
Almah a abraçou e, pela terceira vez no dia, chorou. Friddah aguardou a mãe conseguir controlar os soluços para assim falar o que em breve iria fazer.
- Friddah, tu és um anjo, eu sei disso, Deus lhe enviou a mim porque sabia do teu poder... Oh, Friddah!
Friddah lhe segurou a mão com força.
- Eu preciso ir, mamãe.
- O quê? Não! Friddah! Não! Não volte de novo para aquela mulher! Eu sou sua mãe agora! Fazer isso não lhe trará bem algum!
- Perdoe-me, mamãe.
Almah bateu com os joelhos no chão, ela sabia que o que Friddah fizera para sugar a doença do seu filho, estava fazendo agora para sugar suas energias e não ter forças que pudessem impedir Friddah de ir embora. A menina beijou sua testa, Almah desmaiou e ela foi embora, rumo ao único lugar em que sabia que se sentiria realmente num lar: a natureza.










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Black Cherry
Artes: Nicole Absher, Kim Akrigg, "Plastic Freak".

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Firestruck



Estou em chamas
Eu deixei tudo o que tínhamos abandonado
E eu lhe devia mais
A ferida que eu dei é o preço que pago
Eu não posso ajudar, mas acender um amor?
Ah, acender um amor...

Estou em chamas
E faria tudo o que posso fazer para lhe aquecer
Até que você volte para casa
E você irá me encontrar
Me desonrar
Mas eu sou atraído para a chama do seu coração
Uma chama, uma chama...

Uma vida destroçada
Por calor e luz
Você me deixou há tanto tempo
Ainda sinto-te certo e quente

E farei da forma mais simples
Irei me culpar
E a culpa é desse meu coração ardente

E farei da forma mais simples
A culpa é minha
A culpa reside em mim
A culpa é desse meu coração ardente







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Young Galaxy
Photo: Sylvain Norget

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sadness



Tu seguras a minha mão com força, eu me retenho e digo que não, eu me recuso porque é o melhor a se fazer, e quem tu pensas que és para dizer que conhece a ventania? Eu sou assim não porque foi o destino que quis, mas porque não tive escolha. Então tu me seguras de novo, e sacode meus ombros, me obriga a olhá-lo erguendo-me pelo queixo com teus dedos ásperos, tua palma ardente e meu silêncio cáustico.
Não é a segunda vez, com certeza não. E eu te peço, te imploro, me humilho até a própria humilhação se cansar de mim. Quem é aquele que não desiste de si mesmo, que não caminha pela própria loucura que é a vontade de construir uma solidão mais consistente? Eu te chamo como chamei a chuva que agora me deixa aborrecido como me deixava encantado. Lhe pergunto, lhe pergunto de novo, em vinte e quatro dias sinto sua falta, e sinto também no pulo dessa era.
Últimas palavras, eu devia saber quem elas eram. Últimas palavras, elas desenham uma série de imagens dos meus sonhos, fazem-me um criador de uma vida inventada, fútil em devaneios demais, calores demais, mais alegria, isso, mais alegria, tristeza não se esvai, tristeza quer comer meu coração.
Estive cego por isso e por tudo que me detinha. E tu continuas segurando minha mão, teu santuário de amor e harmonia, ardor e agonia. Tu gostas da minha insanidade. Mas eu sei, e por que não? Por que não? Eu tenho o direito! Ninguém tira o meu direito de me afogar na minha poesia. A superfície me deixa viver, prefiro morrer em mim mesmo, arrancar minha pele com a minha boca, sucumbir-me ao meu sangue vinho, do que ficar tanto tempo nessa superfície. Não tanto amena, e mais desmiolada, pudera ser pequena e portátil para eu levar no bolso.
Isso mesmo, a rua fria, eu durmo na sarjeta, tu não me deixas dormir, tu não me deixas em paz. Eu não te suporto, eu te detesto, eu quero o teu sofrimento e o teu castigo, e desejo te ver arder no inferno e morrer cedo e quebrar cada osso teu como gravetos por aí. Estou confuso porque isso me fazia te amar.
Eu não encontro os ensaios, eu perdi as contas de lágrimas em algum lugar, em algum abrigo em que dormi, uma sarjeta em que me alimentei. Não sei mais onde está a poesia, a última vez em que a explorei foi quando tu disseste aquelas palavras da superfície, as que tanto detesto e as que tanto me acompanharam. Eu reencarnei e elas continuam a me perseguir, e eu corro, meus pés doem, mas eu pouco me importo, eu só desejo isso, eu só desejo desejar. Faz tempo que tristeza não se sente viva.
Ah, beije-me com força, sei que esse beijo não é forte o suficiente para permanecer por muito tempo, mas me beija. Não me faça mais isso, me prometa, me prometa de novo, fale, ajoelha-te porque essa é a última vez em que meu silêncio severo declara a proclamação da dor eterna.
Não me segure mais porque não te suporto, já não te disse? Isso é difícil, não consigo respirar com esse sentimento, é por isso que de vez em quando o mato, por ele ser perigoso, terminal, mais inconsequente do que a minha língua. Ah, eu queria tanto te falar, e poder dizer que tudo isso é real numa fotografia que guardei debaixo da minha cama, e olho quando menos preciso antes de ir escovar os dentes.
Eu sou liquefeito e solidificado na esperança da vontade de ter vontade que a vontade se foi. É impossível explicar, foi como não lhe contei e tu compreendeste na distância descompassa e injusta da chance que mal tive para perder. O tempo em que tive para dizer que não foi meu, jamais será meu, eu sei disso e já estou conformado com essa ideia. É sempre assim. Me dou a esse trabalho... Compreendo ao máximo, e tudo o que quero é a não compreensão, tudo o que quero é que me digas que não consegues me entender, e que não faz questão disso, porque sou assim. Tenho asco porque foi isso que aprendi. Não adianta. Não insista. Há como entender a ventania, a tempestade que sacode a tal superfície desconexa?
Escolha. E teu último caminho, e é o meu primeiro. Sei que poderíamos ter tudo, é clichê, é asquerosamente romântico, mas eu tenho certeza disso. Tu perdes a graça do brinquedo antigo quando ganha um novo. Que engraçado, que fofo, que previsível. Então pare com isso, pare de falar de mim, pensar em mim, dizer o quanto sou especial, porque não sou. É tua última chance, e se agora já não te suporto mais, não é porque te amei, é porque o que me encantava agora me causa desprezo. Um asco tão intenso que sou capaz de invocar um demônio pra se alimentar da tua carne enquanto dormes. Então deixa-te, pare, não conheces nada, não conheces o mundo, não sabes de nada da chuva, e ela nunca pertencerá a ti.








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Black Cherry