Forseti acordou. Não porque ela queria, mas porque tinha que acordar, já fazia três dias que não fora para a escola, e ainda estava tendo acessos de raiva e soluços sem parar. Era uma garota estressada e exausta. Mas ainda conseguiu arrumar a mochila, ou pelo menos tentou. E após acordar tomou um banho e escovou os dentes, pôs um absorvente na mochila e se vestiu. Não com a fúria que estava, tampouco com o vazio entregue por obrigação à ela, se vestiu com a delicadeza que almejava um dia ter, ou com a força que um dia sonhara. Na verdade ela era forte, era uma garota forte e repleta de atitudes que passavam confiança. Só não sabia disso. Não sabia quase nada. E não queria saber. Mesmo se soubesse, colocaria isso onde? No coração é que não, ele já estava pesado demais, carregando uma tonelada ou mais de fortes sensações e pesadelos constantes numa cinza solidão.
Não entenderam? Fortes sensações e pesadelos são mais conhecidos como depressão. Ou simplesmente um estúpido, rude e estabanado vazio. Ah, o vazio era um tédio e uma necessidade, mas não se pode fugir disso. Não se pode fugir do vazio e tentar levantar a cabeça? É claro que não. Pelo menos não por enquanto.
Quando estava prestes a sair de casa, olhou mais uma vez para a estante no seu quarto, e lá estava ele, esperando ser admirado pelos olhos quase sempre marejados de Forseti, esperando ser compreendido, ele também era um vazio, mas ao menos tinha uma fotografia preenchendo-o. Diferente de Forseti, que só tinha um gosto amargo e horrendo e imcompreensível e instável da perda no seu coração de costas largas.
Eu prefiro estar me decompondo numa vala pútrida a ter que aguentar essa maldita fotografia, pensou Forseti. Mas claro que ela não preferia isso, só estava tentando machucar a si mesma. E estava conseguindo.
Um
Dois
Três
E saiu.
E abandonou o sorriso de Frey ao seu lado naquela alegria improvisada. Certo dia numa praia de uma cidadezinha invernal.
~
E claro que ele jamais abandonaria o sorriso de Frey, nem se tentasse. Mas o que mais ele faria quando fosse necessário esquecê-lo e continuar a caminhar? Quer dizer, não que fosse necessário esquecê-lo para seguir em frente. Para seguir em frente basta caminhar. E é tão fácil decorar essas frases de lugar-comum.
Tudo isso não passa de uma baboseira.
Ah, mas talvez nem chegasse ao patamar deplorável em que Hermod estava. Nu numa banheira sem água, sem comer nem tomar banho desde que saíra do enterro de Frey, dois dias engolindo as próprias tripas. Viver não era tão necessário. E por quê? Por que tudo aquilo não poderia acabar de uma vez só? Mas Hermod não se matou, não chegou nem perto disso. Hermod era tão fraco quanto Frey. E o cheiro de velas ainda se impregnava no seu corpo que não exalava o mínimo de odor, era inverno, era sempre inverno por lá, e ele não se mexera desde que entrara naquela banheira. Acostumando-se a dormir por umas duas horas até acordar excitado e chorando, pensando em Frey. No seu cabelo, nos seus olhos, nas suas orelhas frias, na sua nuca próxima ás mechas lisas e negras, nas suas bochechas, na sua boca, no seu nariz, na sua língua. E depois no seu pescoço, nos seus ombros, nos seus sinais pintando a pele quase albina de tão branca, como um dia ensolarado demais. E terminando na sua barriga magra, nas suas costas, no seu sexo, nas suas nádegas, nas suas pernas, nos seus pés,
na sua alma negra e inconstante.
Era disso que ele precisava.
Ele precisava de uma boa trepada. De uma boa cama, de um bom verão, e do amor de Frey. O amor dele era infinito demais para o infinito, incômodo demais para o universo, caloroso demais para o verão inexistente, amado demais para o próprio amor. Hermod ainda ouvia sua voz, seus gemidos, suas canções sussurradas, e ainda via seus sorrisos tímidos, seu suor a percorrer-lhe a face, seus lábios se mordendo, e ainda sentia suas frases incompletas, o seu calor necessitando de outro calor, sua sombra fria e infeliz, tão desgraçada e tão bem escondida que ele só percebeu quando o viu morrendo na banheira de sua casa, e ainda pensava no que ele estaria pensando ou em todos os seus sonhos rasgados por uma lâmina afiada como um anjo negro. E Frey era um anjo de sangue. Fugindo para não se sabe onde. Chorando pelo que não se sabe o quê. Guardando os gritos na sua caixa torácica, ou silenciando seus pulmões para que não notassem que ainda estava vivo. Mas Hermod notara, Hermod notara e sabia.
Ele sempre soube
Chega
Chega de Frey.
Não, não chega, porque ele ainda estava com o cheiro do seu amado nos seus dedos, nos seus lábios, em cada pupila da sua língua, na sua ereção, nos seus sonhos, em cada pêlo da sua pele e em cada póro da sua paixão. Talvez maior do que paixão, do que amor.
Amor e paixão são coisas limitadas.
- No que você está pensando? - Diria Hermod.
- Não posso te contar. - Diria Frey.
- E o que você pode me contar? - Retrocederia Hermod.
- Eu não posso descrever. - Responderia Frey.
E ele o abraçaria, e depois morderia seu pescoço, e depois o beijaria, e o faria gritar. Então, por quê? Tudo isso por nada? Deus estaria brincando com a sua cara? No que ele estava pensando em tirar Frey da sua vida? Mas não foi Deus, não foi ninguém. Frey foi dono da própria vida à ponto de tirá-la. Mas Hermod não se importava se aquilo fosse egoísmo, na verdade nem se foi ou não Deus, tudo aquilo continuava uma droga do mesmo jeito.
Voltou a chorar, chorar como uma criança abandonada ou um cachorro atropelado. A criança? Sempre só. O cachorro? Sempre machucado. Era sempre assim, ele sempre acabava assim, pelado no frio e sem ninguém pra desabafar. Sem nada para fazer, e até ser levado pelas ondas furiosas da sua tristeza. E mesmo depois de tudo aquilo, ele não sabia como começar tampouco como terminar de chorar. Mas nada mais importava, pois ele levantou, magro e com fome, nu e com frio, para perambular pela sua casa no terceiro amanhecer, e lá estava, a fotografia na estante do seu quarto.
Três
Dois
Um
Ele a pegou e a abraçou
Tocou nos seus detalhes, ainda chorando.
- Você está ouvindo, Frey? Você consegue ouvir? Meu coração não pára de bater. Isso é sua culpa. Você deveria pensar mais nele, e em como ele está agora. Tudo isso é culpa sua.
Você consegue ouvir?
~
Andrew Oliveira
Um pequeno epílogo que não está em Hidden Place I, mas aí está (=
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