Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Hidden Place II: Capítulo 4 - Pássaros


A enorme cortina inútil que cobria aquele enorme quadro incompleto de uma enorme dor guardada escorregou e caiu, um roçar de abstinência e amor se acomodou naquele lugar, a meia-imagem estava à mostra. Ele apagou seu cigarro num cinzeiro levantando-se da poltrona e se aproximando da tela, que o chamava, como se fosse uma ninfa semi-nua soltando gargalhadas pela floresta enquanto corre através das petunias, trevos, margaridas, e toda a variedade de flores e folhas borbulhando pelo ar. Mas era só um quadro. Ele ainda sentia o cheiro forte da tinta, tocou nos detalhes da pintura inacabada como se toca numa virgem, seu corpo todo reage num estado de medo e êxtase, mas pinturas não reagem, ou pelo menos não deveriam reagir. Mas aquela pintura reagiu, e tocou de uma forma cirúrgica-amadora no seu coração, e lá estava Frey. Ele perseguiu Frey por todo canto da sua casa e o devorou na cozinha. E quando ejaculou sobre o corpo daquela criatura, percebeu que não era Frey, não era ninguém, ele tinha acabado de acordar. Olhou pela porta aberta do seu quarto, a pintura estava coberta pela cortina branca.

A campainha tocou, e aquela campainha só tocava de manhã cedo por causa de sua sobrinha, Psiquê. Psiquê era uma daquelas garotas que choravam histéricamente, como se estivessem sendo torturadas ou sendo obrigadas a irem pro inferno. Psiquê realmente era uma garota histérica quando queria, Heimdall já sabia o motivo de tanto choro, ele sempre sabia, Psiquê contava tudo para ele, ele era o seu diário, o seu abrigo. Heimdall realmente não podia fazer mais nada a não ser consolar a pobre criança. Aquela criança suja com o próprio sangue, era como se ela adorasse se ferir. E sentaram na poltrona, de frente para as janelas daquele apartemento que davam uma ampla vista da cidade.

- Psiquê tem certeza disso? - Disse para Psiquê.

- Psiquê não sabe lidar com certezas. - Respondeu Psiquê.

- E ela sabe lidar com o quê?

- Com todas as dúvidas que surgem.

- Ela não parece ser muito corajosa. Imagine quando surgir uma tempestade...

- Ela se recolhe na sua concha.

- Ela não deveria fugir das coisas ruins o tempo inteiro. Aliás, ela está com uma aparência péssima, está parecendo um urso panda de tantas olheiras.

Uma outra Psiquê riu. Heimdall sempre conseguia. Talvez esse fosse o motivo da sua existência.

- Aliás, tio, o que tem atrás daquela enorme cortina branca?

- Um quadro.

- É seu?

- Não, eu o encontrei, num beco escuro. Está incompleto.

- Se o lugar era escuro, como você conseguiu ver?

- Eu tinha uma lanterna.

- Você sabe o nome desse quadro?

Heimdall acendeu as luzes da sua mente, e ouviu aquela voz preservada em seus devaneios.

Jezebel.

O nome da sombra sobre a janela, uma ilha. Um personagem qualquer. Uma vida de um outro lugar.

- Eu posso?

- Claro.

Psiquê se levantou e se aproximou do quadro, com calma, puxou a cortina, e ela foi caindo. Parte da imagem era negra, os detalhes em vermelho, e um pouco de cinza no centro que ainda ía se completar, dentro do meio-círculo cinza um meio-coração, e nele uma enorme asa avermelhada que se estendia pela tinta negra, e dava uma sensação de que iria se debater naquela escuridão. O coração de Psiquê acelerou, como se fosse explodir e...

- Já chega, você já o viu. Agora cubra.

- Como você consegue guardar algo tão pertubador aqui? - Assustou-se a adolescente.

- Foi a única coisa que me restou.

- Você não o tinha achado num beco escuro?

- Acho que ainda era pior que um beco escuro. Eu nunca tive realmente coragem de entrar naquela escuridão.

Heimdall escovou os dentes e preparou o seu café-da-manhã , enquanto Psiquê, ainda atordoada, lia um de seus vários livros. Cada segundo de Heimdall era dedicado à Psiquê e Frey, talvez mais à Frey, o que era uma completa baboseira. Tomou banho, comeu o café-da-manhã, e saiu naquele sábado com a sobrinha, o aniversário dela estava chegando, e ele compraria um lindo vestido.

~

Forseti não chorou, em momento algum, e nem poderia, ela teria que mostrar confiança e força na frente daquela criança dali por diante. Noite quase-chegando, vinho espumado, jazz e um clima morno. Sua cabeça estava dando voltas em cima de seu pescoço, como se quisesse fugir, e se fugisse, ela com certeza nem sentiria falta, seu coração estava ocupado demais para isso. Olhou para a lareira apagada, e pegou o telefone ao seu lado, é, ela tinha que contar.

- Hermod...

- Forseti? Nossa que...

- Eu preciso da sua ajuda.

- Forseti, eu já entendi, eu vou sair de vez da sua vida e da vida do meu filho. Não vou me aproximar dele, está tudo bem.

Forseti sentiu vontade de vomitar. E não aguentou, seus olhos entraram numa imensa tempestade de tristeza, e o peso de uma responsabilidade maior do que qualquer coisa que ela já tenha sentido. A voz de Hermod, a voz de Tyr. Ela estava flutuando no meio de um oceano com uma barra de ferro de uma tonelada sobre seu corpo. E chorou, chorou por toda aquela semana em que não tinha chorado, desde aquela segunda-feira em que o médico deu a notícia de que seu filho provavelmente iria morrer, e talvez o provavelmente nem tivesse tanta certeza disso. O provavelmente também não sabe lidar com certezas.

- Tyr está muito doente. - Soluçou.

- Forseti, tenha calma, não estou entendendo.

- Tyr está com leucemia! - Gritou, fazendo o ursinho de pelúcia de Tyr cair de sua mão enquanto assistia à mãe na penúmbra de uma porta.

- O quê? - A testa de Hermod franziu.

- Por favor, eu só peço que me ajude. Eu não vou dar conta de tudo isso sozinha.

- Forseti eu...

Tyr correu para aquele mesmo mar em que sua mãe se encontrou uma vez, ao descobrir que seu ex maior amor não a amava. Mas não era inverno como daquela vez. Sua casa ficava ali perto. Era uma criança que já tinha noção do que era a dor, e a morte, era uma criança precoce, afinal. Ele não queria causar dor à sua mãe. E correu.

Por um breve momento pôde sentir uma música passando pela sua boca, querendo respirar, querendo amar, querendo cruzar todos os oceanos e possuí-los para imperar ao lado da solidão e da vontade. Solidão e vontade. A areia deixando marcas de seus passos, a areia gostava de Tyr. O céu com tons lilás, azuis, laranjas, e um pouco de vermelho naquele pôr-do-sol, um espetáculo, um requiém, o céu chamava Tyr para um doce luar. E o mar, a espuma do mar, as ondas do mar, como se estivessem numa orquestra, desejando nunca mais parar. O mar também pára as vezes. Mas não a solidão e a vontade.

Tyr foi chamado por aquele mar parado, e se transformou em água, afogado, cheio de dores pelo corpo. Mas aquelas dores não eram da leucemia. Eram outras dores, escondidas na penúmbra de uma porta, ouvindo o que nunca imaginava ouvir da sua única esperança no mundo.








~








Andrew Oliveira,
Desculpem por demorar a postar de novo :x

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