Freya não sabia pintar as unhas, nem de tirar as cutículas sem se ferir, nem de fazer um bom penteado, nem se portar como uma mocinha. Muito menos se controlar. É, ela queria muito encher a cara de Apolo de porrada, ele merecia, realmente, mas apenas parcela da culpa era dele. De qualquer forma, Psiquê conseguiu convencê-la a não socá-lo, e no dia seguinte todos ficaram calados, tristes e sem vontade de estudar.
Psiquê gostava muito de ir à praia na frente da cidade, ela e Freya quase não se lembravam da época em que aquela cidade era completamente cinza e sem sol, tão fria que até na lareira de suas casas as pessoas usavam agasalhos, tão fria que as pessoas congelaram todas as suas lembranças ruins naquele inverno que durou décadas e de uma hora pra outra sumiu. Forseti, Hermod e Heimdall nunca esqueceram do dia em que viram o verão pela primeira vez, foi a melhor sensação que já tiveram, a melhor visão que seus olhos cheios de lágrimas congeladas já vislumbraram, era como se Deus tivesse lembrado daquele recante. Vou aquecê-los também.
Forseti sempre esquecia de ligar o celular, e já havia mil e uma chamadas perdidas nele quando ela se lembrava de ligar. Uma das mil e uma era de Hermod, por que Hermod? Tomou uma pequena decisão e discou os números.
- O que você quer Hermod? - Disse, ríspida.
- Olá Freya, só queria saber como Tyr está e...
Freya respirou fundo, ele sabia disso.
- Está começando a perguntar porque não tem um pai, Hermod. Por quê?
Hermod calou-se.
- Hermod, por favor, não comece essa história de novo. Eu já criei uma mentira pra ele, e é assim que vai ficar.
- Forseti, ele precisa de um pai...
- Precisa de um pai? Como você tem a cara de pau de dizer isso? Só agora você se arrepende?
- Você não me deu alternativas, disse que iria cuidar dele sozinha.
- Deixa de ser infantil, Hermod. O que eu mais queria naquela época era de alguém pra me ajudar a criar Tyr. Nem isso você percebeu.
Desligou.
Droga, essa história nunca vai ter fim?
Não.
Esperou até que chegasse o dia seguinte. E de manhã, bem cedo, chamou Tyr e Freya para irem a praia, Freya convidou Psiquê, que entusiasmada aceitou na hora. De manhã cedo foram para a praia, bem a tempo de ver o nascer do sol, de manhã cedo já estavam pensando em faltar às aulas, de manhã cedo seus corações se aqueceram, e conseguiram esquecer, ao menos um pouco, do mundo real. Pegaram conchas, estrelas-do-mar, corriam atrás das gaivotas, e aquele parecia ser o dia perfeito. Forseti parou para passar protetor solar no seu filho, tirando sua camisa, e vendo vários hematomas em suas costas, o sol matutino doeu nos olhos. O mundo real tinha voltado, e tudo voltou a passar rápido demais.
- Tyr, meu filho, o que é isso?
- O quê mamãe?
- Essas manchas horríveis nas suas costas.
- Eu não sei.
Freya e Psiquê pararam de brincar com a água, e encararam a mãe e o filho, até mesmo as gaivotas pararam de piar, só se ouviam as ondas chiando e fazendo espuma, que jogavam alguns gravetos pra lá e pra cá na maresia, e conchas, nem tantas nem poucas. As rochas ali perto soltaram um gemido, Forseti sentiu algo doer dentro de si, e não era no coração.
- Desculpe meninas, acho que temos que voltar.
- Tudo bem, Forseti. - Disse Freya, aproximando-se e pegando na sua mão, com um ar compreensivo. - Temos que ir ver um médico, não é?
Psiquê também se aproximou, e, com Freya, trocaram as camisas molhadas e os biquínis por outras vestes, entraram no carro e partiram de volta pra casa, com um gosto estranho na boca. Aqueles dias estavam estranhos e velozes, como se cada tique-taque fosse um dia. E o dia da consulta e do diagnóstico chegaram.
Freya já estava na porta da casa de Forseti, esperando-a se arrumar. Forseti pôs cada parte da sua armadura bem devagar, os brincos, o batom vermelho-vinho, um pouco de pó-de-arroz, os sapatos, as roupas. Penteou os cabelos como se aquela fosse a última vez, levantou, pegou sua bolsa, desceu a escada, pegou nas mãos de Freya e Tyr, e foram para o hospital.
Cheiro de sangue, remédios fortes, vômito, soro e morte, era o cheiro de hospital. Freya nunca gostou daquilo, Tyr nunca entendeu, e Forseti se sentia forçada a lembrar de uma série de coisas. Entraram na sala do médico e sentaram nas cadeiras, Freya ficou numa poltrona um pouco distante da escrivaninha do médico.
Realmente, Forseti sabia de muita coisa, muita mesmo, que conseguiu aprender durante a trajetória de sua vida até lá. Ela sabia onde encontrar abrigo, como sobreviver no fim do mundo, como escrever um poema ou até mesmo como pintar um quadro, ela sabia ler partiruras e tocar piano perfeitamente.Forseti era uma daquelas mulheres em que só pelo fato de você olhar em seus olhos você se sente seguro, ela se tornou uma boa presença, ainda que cheia de segredos que a faziam segurar uma mentira dolorosa para o seu filho, se aquilo era necessário ou não, ela também sabia, mas preferia guardar para si mesma. Mas ela não sabia de duas coisas, naquele mundo, apenas de duas coisas, que atormentavam a sua vida, e atormentariam ainda mais, o que ela não sabia também era de como começar a solucionar essas duas coisas das quais ela não sabia, tinha medo de saber, mas ainda assim queria saber.
1 - O que levou Frey a morrer.
2 - Por que meu filho tem leucemia.
Deus, eu te odeio.
Psiquê gostava muito de ir à praia na frente da cidade, ela e Freya quase não se lembravam da época em que aquela cidade era completamente cinza e sem sol, tão fria que até na lareira de suas casas as pessoas usavam agasalhos, tão fria que as pessoas congelaram todas as suas lembranças ruins naquele inverno que durou décadas e de uma hora pra outra sumiu. Forseti, Hermod e Heimdall nunca esqueceram do dia em que viram o verão pela primeira vez, foi a melhor sensação que já tiveram, a melhor visão que seus olhos cheios de lágrimas congeladas já vislumbraram, era como se Deus tivesse lembrado daquele recante. Vou aquecê-los também.
Forseti sempre esquecia de ligar o celular, e já havia mil e uma chamadas perdidas nele quando ela se lembrava de ligar. Uma das mil e uma era de Hermod, por que Hermod? Tomou uma pequena decisão e discou os números.
- O que você quer Hermod? - Disse, ríspida.
- Olá Freya, só queria saber como Tyr está e...
Freya respirou fundo, ele sabia disso.
- Está começando a perguntar porque não tem um pai, Hermod. Por quê?
Hermod calou-se.
- Hermod, por favor, não comece essa história de novo. Eu já criei uma mentira pra ele, e é assim que vai ficar.
- Forseti, ele precisa de um pai...
- Precisa de um pai? Como você tem a cara de pau de dizer isso? Só agora você se arrepende?
- Você não me deu alternativas, disse que iria cuidar dele sozinha.
- Deixa de ser infantil, Hermod. O que eu mais queria naquela época era de alguém pra me ajudar a criar Tyr. Nem isso você percebeu.
Desligou.
Droga, essa história nunca vai ter fim?
Não.
Esperou até que chegasse o dia seguinte. E de manhã, bem cedo, chamou Tyr e Freya para irem a praia, Freya convidou Psiquê, que entusiasmada aceitou na hora. De manhã cedo foram para a praia, bem a tempo de ver o nascer do sol, de manhã cedo já estavam pensando em faltar às aulas, de manhã cedo seus corações se aqueceram, e conseguiram esquecer, ao menos um pouco, do mundo real. Pegaram conchas, estrelas-do-mar, corriam atrás das gaivotas, e aquele parecia ser o dia perfeito. Forseti parou para passar protetor solar no seu filho, tirando sua camisa, e vendo vários hematomas em suas costas, o sol matutino doeu nos olhos. O mundo real tinha voltado, e tudo voltou a passar rápido demais.
- Tyr, meu filho, o que é isso?
- O quê mamãe?
- Essas manchas horríveis nas suas costas.
- Eu não sei.
Freya e Psiquê pararam de brincar com a água, e encararam a mãe e o filho, até mesmo as gaivotas pararam de piar, só se ouviam as ondas chiando e fazendo espuma, que jogavam alguns gravetos pra lá e pra cá na maresia, e conchas, nem tantas nem poucas. As rochas ali perto soltaram um gemido, Forseti sentiu algo doer dentro de si, e não era no coração.
- Desculpe meninas, acho que temos que voltar.
- Tudo bem, Forseti. - Disse Freya, aproximando-se e pegando na sua mão, com um ar compreensivo. - Temos que ir ver um médico, não é?
Psiquê também se aproximou, e, com Freya, trocaram as camisas molhadas e os biquínis por outras vestes, entraram no carro e partiram de volta pra casa, com um gosto estranho na boca. Aqueles dias estavam estranhos e velozes, como se cada tique-taque fosse um dia. E o dia da consulta e do diagnóstico chegaram.
Freya já estava na porta da casa de Forseti, esperando-a se arrumar. Forseti pôs cada parte da sua armadura bem devagar, os brincos, o batom vermelho-vinho, um pouco de pó-de-arroz, os sapatos, as roupas. Penteou os cabelos como se aquela fosse a última vez, levantou, pegou sua bolsa, desceu a escada, pegou nas mãos de Freya e Tyr, e foram para o hospital.
Cheiro de sangue, remédios fortes, vômito, soro e morte, era o cheiro de hospital. Freya nunca gostou daquilo, Tyr nunca entendeu, e Forseti se sentia forçada a lembrar de uma série de coisas. Entraram na sala do médico e sentaram nas cadeiras, Freya ficou numa poltrona um pouco distante da escrivaninha do médico.
Realmente, Forseti sabia de muita coisa, muita mesmo, que conseguiu aprender durante a trajetória de sua vida até lá. Ela sabia onde encontrar abrigo, como sobreviver no fim do mundo, como escrever um poema ou até mesmo como pintar um quadro, ela sabia ler partiruras e tocar piano perfeitamente.Forseti era uma daquelas mulheres em que só pelo fato de você olhar em seus olhos você se sente seguro, ela se tornou uma boa presença, ainda que cheia de segredos que a faziam segurar uma mentira dolorosa para o seu filho, se aquilo era necessário ou não, ela também sabia, mas preferia guardar para si mesma. Mas ela não sabia de duas coisas, naquele mundo, apenas de duas coisas, que atormentavam a sua vida, e atormentariam ainda mais, o que ela não sabia também era de como começar a solucionar essas duas coisas das quais ela não sabia, tinha medo de saber, mas ainda assim queria saber.
1 - O que levou Frey a morrer.
2 - Por que meu filho tem leucemia.
Deus, eu te odeio.
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Andrew Oliveira
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