Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Don't Look At Me



Sonhei com Emeline. Ela estava num balancinho gargalhando para mim, os cabelos castanhos e longos, lustrosos ao sol gelado do inverno ondeando ao vento cortante, e em suas bochechas enrubescidas, e na minha felicidade exacerbada. A rua na frente de casa estava quieta e nenhum menino saiu para jogar bola, e eu estava pensando distraídamente em outras coisas que, de todas as outras coisas e de todas as outras formas me faziam feliz. O frio era maior dessa vez, e quando acordei percebi que não era um sonho.
Era uma lembrança que havia me assombrado.
E na verdade havia acordado antes de perceber que o frio era real, e a dor nos meus lábios secos e rachados também. Minhas pálpebras pareciam coladas na minha pele e meus cílios, unidos num amor que nunca tive a oportunidade de compreender. Mas mesmo assim, com muita determinação e sentindo minha pele se rasgar, tirei a remela gelada e encarei a luz. Por um momento pensei ter visto Emeline correndo, Emeline gritando. Não grite Emeline, aqueles cachorros latindo e aquela sirene tocando é apenas uma música que não foi feita para nós. Aliás, o que fizemos de tão errado a não ser existir? Eu não sei.
Meus ossos estavam doloridos até a cerne. Estralei meu pescoço e meus ombros, estiquei meus braços e movi os dedos dos meus pés para ter certeza de que ainda tinha movimentos para andar sozinho. Eu estava começando a emagrecer, minhas bochechas já apresentavam um leve sinal de que dentro de um mês desapareceriam. Havia um pedaço de vidro espelhado do outro lado da cabana, onde mais alguns homens dormiam. Senti uma coceira no braço e a aliviei com minhas unhas sujas, me encolhi pois o frio estava mais forte, quase como se tivesse percebido o meu despertar e, para me torturar ainda mais, ficasse mais presente. Cruel, esse frio que já me foi uma lembrança doce e azulada, como uma sobremesa feita pela sua avó.
Emeline chorando, Emeline batendo nas portas, Emeline implorando pela sua vida, Emeline desgarrada dos meus braços.
"Não a toque, seu doente desgraçado", foi o que me disseram. Mas por que desgraçado, se eu era tão agraciado por Emeline e sua respiração próxima a mim, batendo no meu peito enquanto me abraçava e beijava minha bochecha sonoramente, de propósito, e depois mirando uma bola de neve no meu traseiro e fazendo eclodir uma guerra de mais outras bolas. A única batalha da minha vida que desejei que nunca acabasse.
"Audrick! Me ajude! Audrick! Não me abandone! Audrick! Não deixe que eles me levem para longe!". E que força eu tinha para tal poder? O que eu poderia fazer para aquele atual comportamento convencional?
Abelard, por favor, Abelard.
E então o cachecol de Emeline folgando no seu pescoço e partindo ao vento, sua boina azul-marinho, presente do último natal, caindo na neve lamacenta, o rádio ligado ainda chiando, os subalternos de Führer segurando minha sobrinha descontrolada, fazendo as luzes das casas se acenderem como estrelas surgindo no meio do nada. A noite nublada, cinza-escura, impiedosa, minha mãe morta na cadeira de balanço, com sua última rosa branca colhida para tal ocasião, e todas as rosas brancas na frente de sua casa se abrindo no amanhecer seguido de sua morte. E então, minha irmã fugindo, me implorando para ir com ela e Emeline para longe, bem longe da Alemanha, o nosso lar que havia se transformado num inferno. E outro amanhecer, e mais um amanhecer, e minha irmã não estava mais lá. A tinta vermelha brotando de sua cabeça, e um pouco antes disso, suas pernas abertas ao pôr-do-sol. Entrando, saindo, entrando, saindo. Coloque Emeline no guarda-roupa, ou no porão, quem sabe ela possa se salvar, quem sabe o destino que Führer nos teceu?
Mil novecentos e trinta e cinco, o ano novo estava a cada dia mais presente, eu sentia o cheiro do trinta e seis ficando forte, condensado, visível. E era uma vez minha irmã desesperada, desaparecida, sem saber por onde nem como. Ela amava muito Emeline para deixá-la vê-la naquele estado deplorável. Ela a amava demais para deixá-la comigo. O que terá acontecido a Bernarda?
Acordei e senti o odor de fumaça espessa, nova, cada vez mais espalhafatosa. Fui ao banheiro para lavar o rosto e pus uma calça de moletom e um casaco. Saí para a rua na madrugada de vinte e nove de dezembro e uma luz fortíssima no centro do bairro formava sombras largas que chegavam até aos meus pés. Fui caminhando pela rua e descobri uma montanha de livros sendo queimados. Livros judeus, livros da nossa sub-espécie. Então a fúria de Führer já estava mais perto de mim? Sua crença de uma mitologia barata e fálica estaria próxima de me destruir?
Mil novecentos e trinta e oito, foi quando Bernarda bateu na minha porta, sacudiu meus ombros e me implorou para ir embora dalí. Alí havia nossa mãe falecida, nosso pai que, de todas as formas, lutava para não passarmos fome. Emeline tranquila segurando seu ursinho, adormecida de boca aberta, os cílios enormes, a respiração calma e compassada.
- Bernarda, não posso ir embora e deixar nosso pai aqui.
- Ele é mestiço de judeu, Audrick! Uma hora vão descobrir! E o que farão com ele quando souberem que seus filhos são como os outros? Veja! - ela apontou para o espelho do banheiro, a porta porventura aberta. - Nosso nariz, nosso cabelo, nossa pele, nossas crenças!
- Não quero ir embora, Bernarda, por que precisamos abandonar tudo o que amamos por um homem sádico que nem nos conhece?
- O que você pensa agora não importa, Audrick. Entenda isso, está acontecendo e não vai parar tão cedo!
- Me recuso.
Peguei o espelho do outro lado da cabana e deixei-me cair, um rapaz despertou e me viu avaliando o pedaço de vidro ao seu lado. Ele tirou alguma coisa do bolso e me ofereceu nas mãos imundas. Um pedaço de pão. "Tome, coma antes que os outros acordem". Senti vontade de chorar.
- Audrick! Olhe para mim! - Bernarda me sacudia ainda mais forte, eu estava desperto no mundo dos sonhos e na vida real. - Ouviste o que eu disse? Vou levar Emeline e papai!
- Emeline você não leva.
- O quê?
- Emeline vai ficar comigo.
- Ela é minha filha!
- Isso não me interessa. Cuidei muito mais dela nos seus seis anos de vida do que você já teve a coragem de cuidar. Ela fica comigo. Se queres tanto separar nossa família, que seja de forma justa.
A porta foi violentada com batidas vorazes, cães latiam do lado de fora, luzes iam e vinham, homens esbravejavam. Meu suspensório apertou e eu o arranquei, parecia que eu estava crescendo em segundos, mas devia ser apenas meu coração pulsando alto e rápido demais. Bernarda me olhou com fúria e horror ao mesmo tempo e voou para o quarto de Emeline.
Minha mãe havia me falado uma vez que em nossa linhagem, a maioria dos irmãos, primos e parentes distantes tinham o costume de fazer um porão abaixo do porão comum, uma espécie de quarto secreto que poucos de determinada família sabiam de sua existência, e lá, poderiam guardar seus maiores segredos. Eu nunca tive certeza se existia um sub-porão na nossa morada até precisar desesperadamente de um.
Terminado o pão, esfreguei as mãos e tentei levantar, mas um pedaço de trigo e água não havia me dado forças suficientes para tal. O mesmo rapaz que havia me alimentado, se levantou e colocou sobre os meus ombros metade do seu cobertor, compartilhando-o comigo e colocando também seu braço envolta de mim, me deixando descansar no seu peito. A nevasca parecia ter ficado mais forte, ele suspirou alguma como "não morra, eu posso lhe aquecer, seja mais forte", e eu sabia o porquê, havia tido o desprazer de me olhar naquele pedaço de vidro espelhado que agora estava jogado em um canto qualquer. Não, não olhe para si mesmo.
- Olhe para mim! Audrick! Olhe para mim! Esconda Emeline, se esconda com ela!
- E você? Estás louca? Não vou te abandonar! Não vou abandonar o papai!
- Não vês, Audrick? - ela abriu os braços fazendo um gesto de questionamento. - Não há mais nada para salvar!
A porta estava prestes a ser arrombada. Entrei no quarto de Emeline e a carreguei, descendo as escadas e abrindo a portinhola do porão. Bernarda estava no meu encalço. Nem sinal de papai.
- Por favor, Bernarda. - me virei para minha irmã quando Emeline já estava desperta e descendo as escadas por conta própria.
- Eu moro aqui sozinha, não há mais ninguém. Eu não tenho uma filha... - ela se recompôs, respirou fundo, as lágrimas eram pesadas e gotejavam na garganta como pedaços de vidro estilhaçado. - Eu não tenho irmão. Moro aqui sozinha. - e fechou a portinhola do porão na minha cara. - Não há mais ninguém.
O segundo porão.
Ouvi a porta sendo arrebentada e Bernarda gritando. Desci as escadas e peguei Emeline chorando encolhida num canto. Abracei-a e ela se agarrou em mim como um filhotinho, apertando meu pescoço como se quisesse se unir a mim. Acendi uma lamparina a querosene encontrada ao tato na velha despensa e procurei pela madeira mais oca no chão. Toque toque.
- Eu quero ver o sol. - sussurrei para o homem que me abraçava e me aquecia enquanto os mais enfraquecidos morriam de hipotermia ao nosso redor.
- Não há sol nenhum, é só neve e sangue. - ele me respondeu.
Abri a portinhola secreta, deixei Emeline entrar primeiro para enfim entrar também e fechei. A porta do porão foi escancarada e eu ouvi passos por todos os lados, ainda com os gritos de Bernarda por todos os cantos da casa.
- NÃO HÁ MAIS NINGUÉM AQUI. EU MORO SOZINHA!
- Ela está falando a verdade, senhor, não tem ninguém aqui no porão. - ouvi uma voz mais jovem respondendo para alguém mais velho.
- Senhor general, eu soube que há um covil de mais desses ratos aqui por perto, num beco ou algo assim.
- Então vamos procurar.



Os passos começaram a se distanciar, a porta do porão foi fechada e a casa, esvaziada. Deixei Emeline no porão oculto e saí para o primeiro, para olhar pela curta janela que havia em cima da despensa, quase na altura da rua. Vi os saltos de Bernarda e dois homens segurando seus braços, enquanto o general e mais outros de seus soldados iam mais à frente procurar os "ratos". Os que a seguravam resolveram parar alí mesmo e fazer outra coisa.
Bernarda havia parado de gritar, já estava rouca demais. Seus seios foram pressionados pelas mãos de um deles, enquanto o outro abria o zíper da calça bege-escura e posicionava minha irmã em cima do capô de um jipe. Bernarda não gritou nem quando um deles a penetrou, e o outro fez o mesmo, repetidamente, até decidirem jogá-la ali mesmo e irem embora. O que teriam falado para o general? Ela havia se descontrolado e eles foram obrigados a matá-la? Essa é uma das incertezas que nunca consegui tirar da minha cabeça. E minha irmã, minha irmã sendo estuprada e assassinada na minha frente. Quem era eu para cuidar daquela menininha encolhida na escuridão?
Um aperto no meu peito me fez sentir uma ardência em minha pele, como se tivesse sido acabado de ser arranhada fortemente por unhas imundas. Busquei Emeline novamente para apanhá-la em meus braços, joguei um colchonete mofado no chão do porão e esperei minha sobrinha dormir.
A porta da cabana foi escancarada, assustado, saí de perto do homem que me abraçava e olhei amedrontado para a luz que violentava minhas pupilas. Vários cordeiros de Fürher entraram para arrastarem os mortos por hiportemia e jogá-los em alguma vala qualquer. Desejei que eles não tivessem a certeza que eu estava morto também. Me sentia podre, frio, pútrido, me decompondo a cada respiração que soltava, meu nariz parecia estar prestes a quebrar. Alisei minhas mãos sem sensibilidade, movi os dedões dos pés gelados. Tossi, tossi de novo, desejei tirar os espinhos da minha garganta. Saiu sangue.
Acordei Emeline, a luz da janelinha do porão que residia em cima da despensa deu direto no meu rosto. Banhei-a, vesti-a, escovei seus dentes, deixei-a no seu quarto com uma boneca no colo enquanto fui fazer o mesmo. Precisamos sair daqui.
Estava cada vez mais difícil me mover. Não deixe que eles digam que você morreu, não faça com que eles acreditem na sua morte. Ela é interna, ela é interna, a neve não está aqui, ela não existe, eu não estou mais aqui.
- Onde está a mamãe? Ela estava gritando tanto ontem... - Emeline acariciou os cabelos de mentira da sua boneca de porcelana, e a deixou cair no chão. Aquilo era uma porcaria.
- Eu não sei onde está mais a sua mãe, Emeline. - tentei falar da forma mais amena possível, mas as palavras saíram violentas de qualquer forma.
- O que vai acontecer conosco?
- Vamos para outro lugar.
- Que lugar.
- Não sei...
- Para onde?
- NÃO SEI!
Perdi as rédeas, Emeline sentiu minha voz alta e firme como uma bofetada e começou a chorar.
- Emeline, por favor, estou confuso.
- Não grite comigo.
- Prometo que não.
- Então para onde vamos?
- Vamos para onde seja seguro.
Peguei seu pulso com carinho, e depois sua mão entrelaçada à minha. Procurei uma mochila preta e coloquei o que ainda havia de comida na geladeira e na despensa dentro dela. Enchi Emeline de casacos e saímos para a rua deserta. O jipe ainda estava lá, resolvi ignorá-lo e assim passamos a manhã procurando algum lugar, qualquer um, em que pudessemos estar a salvos. Emeline quase gritou quando o barulho de uma sirene começou a ficar mais forte e presente aos nossos ouvidos. Olhei para todos os lados e só havia portas e grades fechadas, ninguém à vista a não ser a ameaça de bombas vindas dos céus, canções de boas-vindas ao inferno.
- Ei!
Olhei para a direita.
- Ei! Aqui.
Olhei para a esquerda, e depois para uma esquina mais adiante. Um rapaz agitado acenava para mim e Emeline segurando firme minha mão, com uma mochila rósea desbotada guardando apenas algumas roupas. Decidi ir ao que nos chamava. Ele era como nós, o nariz protuberante, os cabelos escuros, espessos e lisos, mas provavelmente mais bonito, a maxilar séria e rústica, tonalizando um rosto extremamente masculino, compatível com seus ombros largos e seu peitoral óbvio sobre o casaco branco. Para mim, bastante alto, para Emeline, uma montanha.
- Não tenho mais para onde ir. - falei entristecido.
- Entre, não há mais ninguém aqui além de mim e uma boa quantidade de comida.
Sorri meio sem graça e entrei. Emeline olhou desconfiada para ele, mas mesmo assim também resolveu entrar. Ela havia sido ensinada a não receber gentileza de estranhos. Mas naqueles anos, naquele inverno todo, quem não era um estranho para o outro?
- Senhor, acho que esse aqui está quase batendo as botas também. - Um jovem nazista cutucou minha bochecha gelada, pude ver de relance que o homem que havia me acolhido me olhava com desespero, o que eu significava pra ele naquele momento?
Emeline e eu fomos convidados a entrar numa sala iluminada a velas em candelabros, janelas ocultas por cortinas escuras e grossas. O rapaz nos ofereceu comida recém-preparada, lençois, travesseiros e um canto para dormirmos. Agradeci a ele várias vezes e esperei Emeline adormecer para que pudéssemos conversar.
- Desculpe por não ter me apresentado ainda, quando vi vocês me senti de certa forma feliz, faz algum tempo que não vejo ninguém. Me chamo Abelard. - Abelard me deu um aperto de mãos.
- Audrick, e a menina é minha sobrinha Emeline.
- O que aconteceu para vocês correrem esse risco de sair andando por aí?
- Uma história complicada.
- Conte-me.
Pela primeira vez senti o peso dos acontecimentos afogar o meu coração com violência e rancor. Arfei e me encostei na parede.
- Ei, ei. Está tudo bem. Estamos juntos agora.
Meus olhos embaçaram, senti o braço de Abelard ao redor do meu ombro. Algo travava a minha garganta e minha cabeça dava voltas e voltas. Meu coração estava cada vez mais afogado. Meu pai desaparecido, minha mãe morta, minha irmã morta, apenas eu e Emeline no mundo. O barulho das sirenes, a neve manchada de sangue, portas escancaradas. Por que a vida real agora parecia um pesadelo completo?
- Eu...
Abelard fez eu me concentrar no seu rosto com suas mãos nas minhas bochechas.
- Está tudo bem, Audrick. Ficarás seguro agora.
Tentei chorar escandalosamente mas não consegui. Meu único êxito foram lágrimas escorrendo sem parar como uma goteira insistente num dia devastado por uma chuva qualquer. Sentei e me encolhi, aquele maldito barulho fazia minhas mãos ficarem trêmulas. E por que eu não conseguia mais falar? Por que diabos a minha voz não estava saindo?
- Vamos, levante, vá para perto de Emeline.
Me recusei, parecia que eu estava recebendo algum tipo de ordem. Não queria mais ser obrigado a nada.
- Audrick...
Comecei a empurrar o compreensível Abelard, afastá-lo mais enquanto ele ainda tentava se aproximar de mim.
- Saia...
- Audrick, por favor, peço que não se desespere. Já disse, você ficará seguro aqui. Não quero que você chame a atenção por...
Não, não, não. Führer, maldito Führer, desgraçado, cretino, abortado, filho da puta, filho da puta, filho da puta, filho da puta.
- Audrick...
- ME DEIXE EM PAZ!
Finalmente minha voz saiu, finalmente consegui chorar e socar o peitoral de Abelard. O que estava havendo? Eu não tinha controle sobre os meus próprios músculos.
- Por favor...
Minha voz estava enfraquecendo de novo, eu não sentia mais meus punhos, Abelard ainda estava na minha frente, insistindo para que eu conseguisse me controlar. Droga, agora ele provavelmente me expulsaria dalí com Emeline e nós dois realmente...
- Não estou morto... - Sussurrei entre dentes para o jovem de sorrisinho debochado que me cutucava com seu dedo imbecil.
- O quê? Não ouvi direito, ratinho. - ele gargalhou e olhou para trás, esperando que sua piadinha sobre nos comparar a ratos fosse aprovada pelos outros.
- Não... Estou... Morto... - Coloquei a mão sobre os cílios, a cabana parecia mais iluminada do que nunca. Por que abriram aquela maldita porta?
Senti um peso me apertar e uma respiração cair sobre a minha caixa torácica. Era Abelard me abraçando, me acalmando. Quem eu era para ter o direito de receber a gentileza de estranhos? Queria que ele me soltasse, afastasse seu calor de mim. Eu me sentia tão envergonhado por aquilo tudo...
- Audrick, fique calmo. Tenho certeza que Emeline não gostaria de vê-lo assim, já que você é a única pessoa que ela tem agora... Audrick, eu também estou com medo, muito medo, e não suporto ficar aqui todos os dias da minha vida. A qualquer momento isso aqui pode ir tudo pelos ares... E do que vai adiantar todo o meu esforço?
Ouvi soluços, assim como eu, ele também estava descarregando seu peso em mim.
Dois homens me suspenderam pelos braços, não vi necessidade pois eu estava magro e leve, mas eles pareciam ter adquirido uma espécie de nojo físico por nós. E começaram a me arrastar para fora da cabana. Minha garganta secou novamente, olhei para o Cristo crucificado que havia me dado um pedaço de pão e um pouco de água de uma chuva envelhecida, ele começou a chorar em desespero e eu passei a gemer e chorar junto. As lágrimas congelaram e minhas pálpebras se machucaram, meus olhos foram perfurados pelo branco excessivo da neve cruel e arrogante chiando nas minhas costas, nádegas, coxas, pernas, o que restou dos meus pés. Vi fumaças negras contrastando o céu exageradamente pálido e lúcido naquela realidade tão distorcida e mórbida. Algo molhou a minha garganta dolorida. Era o sangue de novo.
- Esse não vai durar muito também. - disse o que me puxava pelo braço direito.
- Vamos jogá-lo na vala, vai morrer de qualquer jeito. - respondeu o que havia feito a piadinha de escárnio com a minha cara na cabana. Ele era bonito sobre a luz do inverno, afinal. Louro, nariz aquilino, olhos claros, pele saudável, branda e quase monocromática com as sobrancelhas e as pestanas claras. Um exemplo autêntico da raça perfeita que o Führer proclamava. Mein Kampf teria razão?
Os dias estavam mais insuportáveis do que o esperado. Emeline, Abelard e eu apenas comíamos, jogávamos cartas, tomávamos banho e depois íamos dormir. Eu estava começando a achar estranho tudo estar tão quieto e parado, sem o barulho eterno das sirenes e suas luzes vermelhas piscando, poluindo a noite e o dia, fazendo parte do nosso cotidiano. Criei uma afeição imensa por Abelard, ele era extremamente carinhoso com Emeline que também havia cedido sua confiança a ele, e estava cada vez mais aberta, extrovertida e sorridente, algo tão raro naquela menina tão silenciosa, tão estranhamente misteriosa, e no entanto gentil e compreensiva. Abelard lhe contava suas histórias enquanto Emeline lhe retribuía com poemas, ainda confessando também que não via a hora de completar as 15 primaveras para usar maquiagem. Ela sonhava com uma fotografia em que ela estivesse com pó-de-arroz e batom, como uma verdadeira princesa.
Houve uma madrugada de insônia em que descobri Abelard num canto, soluçando quase imperceptivelmente como Emeline certa vez num segundo porão. Olhei de relance por um armário pois não queria que ele se sentisse constrangido com aquilo.
- Eu sei que você está aí.
Desisti do meu esconderijo e me sentei ao seu lado. Esperei que ele falasse ou que quisesse falar alguma coisa, justificando suas lágrimas, contando sua história tão escura e pouco esclarecida.
- Eu não gosto muito de lembrar da minha vida, como eu a vivi ou como a estou vivendo agora. Me sinto numa espécie de limbo consciente, em que eu sou o espectador do meu próprio eu... Isso é tão confuso...
"Mas há algo, uma lembrança forte que eu não consigo... Esquecer, ou seja como for...
"Eu costumava passar as férias na casa da minha tia porque eu a adorava e amava as minhas primas.
"Ela e meu tio eram extremamente carinhosos comigo. Aquilo poderia ser o significado da felicidade pra mim. Lá, nunca deixei de me sentir amado, nunca me senti desamparado ou deslocado, não havia a solidão que minha mãe pesava sobre a minha presença, sustentando aquele olhar amargurado como se eu fosse alguma espécie de monstro que invadia a sua casa apenas para incomodá-la..."
"Então houve uma tarde. Uma tarde em que minhas primas e minha tia foram fazer compras... Essas coisas femininas em que a presença de homens não é bem-vinda. Meu tio foi no quarto de hóspedes e começou a conversar comigo sobre... Sobre coisas mais íntimas. Eu tinha uma pequena noção do que ele falava... Mas mal havia completado doze anos..."
Abelard esfregou os olhos e segurou as mãos trêmulas, aflitas. Depois, com um gesto desleixado, tirou o suor frio da testa lisa e sem rugas. Ele não conseguiu mais falar, e nem sequer tentou terminar a história. Afinal, histórias assim não costumam acabar.
- Eu... Estou... Vivo... - Minhas roupas listradas com aquele bizarro azul desbotado já estavam encharcadas, mas os dois soldados continuaram me arrastando até a vala. O triângulo rosa colado no meu peito, como a queimadura de um gado.
- Não chore mais Abelard, eu estou aqui. - Levantei o queixo de Abelard com carinho, e sua expressão era a perfeita face do mártir. Os cabelos negros como um véu a emoldurar-lhe e ressaltar a palidez do rosto e o olhar acastanhado. Ele tinha um suave sinal perto da maxilar. O sinal se aproximou do meu queixo e ele pôs o rosto úmido no meu pescoço, me abraçando mais forte do que a primeira vez em que me abraçara. Senti um calafrio formigar nos meus pés e acabar nos cabelos rareados da minha nuca. Ele beijou meu pescoço tão de leve que mais era um roçar de lábios do que um beijo pré-determinado. Eu deixei.
Acariciei sua bochecha esquerda com mais intimidade e Abelard respirou no meu ouvido. Receando, tentando se conter, se controlando ao máximo. Não, por que não? Sim, sim. Venha, mais perto, eu deixo, eu não condeno, eu abro mão, e posso amar.
Comecei a sentir o fedor da carne pútrida e o farfalhar de asas negras e agourentas. Ouvi risinhos debochados e uma voz reclamando que estava na hora de almoçar um belo frango assado... Um belo frango assado? Há quanto tempo eu não sentia o sabor da carne de uma ave esquentando na minha boca. As aves que me cercavam agora eram corvos e urubus.
Abelard se aproximou com mais provocação e eu pressionei meus lábios contra os seus. Não conhecia aquele sentimento, aquela excitação, e aquele era o meu primeiro beijo. O que minha mãe pensaria ao me ver beijando outro homem, apertando seus ombros, abraçando-o com mais força para mais perto do meu corpo?
Que falta eu sentia de um toque humano. E mesmo que fosse o meu primeiro toque mais íntimo, parecia algo que eu não sentia há tanto tempo... Abelard foi carinhoso e calmo, me ensinando com delicadeza a dança dos lábios pueris, com um toque de nostalgia, com algum cheiro que assimilei imediatamente à primavera. Primavera... Era isso! Abelard carregava na sua aura o cheiro constante da primavera. Aquele sol não tão quente nem tão morno, doces saindo do forno, um borbulhar de aromas das mais gordas e e belas rosas, glicínias, petúnias, orquídeas. Eu não compreendia o que estava sentindo, e talvez nunca na minha vida tenha me dado esse trabalho, mas aquela sensação nova, intensa, acalorada, o que seria de mim sem um pouco disso tudo?
- Chegamos. Vai lá e joga. - disse o soldado louro.
- O quê? Não quero chegar perto daquele lixão, não aguento mais aquele fedor desses ratos... Quanta mais eles morrem, mais aparecem... Parecem uma praga!
- Bem, de qualquer forma é a sua vez de jogar fora.
- O quê?
- Isso mesmo. Já despejei uns quatro só essa manhã, estou começando a ficar cansado.
- Mas eu também estava no outro setor fazendo o mesmo!
O soldado louro, contrariado e bufando de raiva, cedeu.
- Tudo bem, vamos juntos.


Beijei Abelard por mais um longo tempo até ele se levantar e me deixar sentado assistindo o que ele iria fazer. Estávamos em outra sala, longe e isolada, perto do vestiário daquele local que eu havia percebido só depois que era uma escola de boxe. Como havia chegado todos aqueles mantimentos para lá era outra pergunta a ser respondida.
Abelard se afastou um pouco, desabotoou o casaco com calma e o jogou no chão. Em seguida foi a camisa branca de mangas longas, as botas e a calça. Pude admirar seu corpo tanto pela luz do luar que entrava por uma única janela descoberta quanto pelas várias lamparinas e velas. Ele era perfeito com seus músculos bem torneados e esticados na pele suavemente parda, as coxas malhadas, os peitorais e ombros largos, os mamilos róseos, o pescoço sinuoso, alguns sinais nos braços e na barriga rígida.
E era uma vez um lobo feroz e descontrolado apaixonado por um leão, que abandonou sua matilha, se recusou a caçar por sete dias, abdicou das estrelas e do Deus Sol, contou cada passo seu na floresta, apenas para morrer na boca daquele que ele amava. Ele era agora parte desse leão, ele estava dentro do leão. Eu sou o leão, seu assassino, seu amor.
Fui jogado em cima de algo mais duro e fétido. Um corpo, dois corpos, vários, uma revoada escura e irritante como gotas de lama num copo de leite. Corvos e urubus cantando um réquiem já conhecido por todos aqueles que um dia já tiveram o medo da morte. Vi de relance os dois soldados se afastarem da vala conversando despreocupadamente. Comecei a me esforçar para me mexer, saí daquela posição constrangedora e passei a engatinhar no meio dos corpos ensanguentados e transbordando vermes, olhos pulados, estômagos para fora, fezes e vômito. Não parei, não aguentava aquele fedor, usei todas as minhas forças para um ponto escuro que chamou a minha atenção. Pois quando o Cristo Crucificado que havia me alimentado com pão e água pela manhã me abraçou, ele não apenas me aqueceu e fez voltar por pouco tempo a sensibilidade na minha pele. Ele me contou também um segredo.
Fiquei em pé, apertei minhas mãos entre as minhas coxas. Caminhei com cuidado, um certo medo de mãos dadas com a insegurança. Eu não tinha ideia do que estava fazendo e no entanto tinha a certeza de cada mover de dedos e cada mínima raíz de cabelo ficando em pé na minha nuca, braços e pernas. Meu coração parecia fora do lugar, e depois senti-o despencando do seu lugar de segurança, se dissolvendo em ácido desiderato, evaporando dos meus poros, me fazendo suar. Fiz de Abelard meu escravo, beijei-o, deitei-o embaixo do meu corpo ofegante e compulsivo, desesperado por descobrí-lo, eu o amei. E Abelard, insatisfeito, ressurgiu das trevas, fez-me seu abrigo, seu antro de calor e compaixão, entregando-me a dor aguda e brusca, presenteando-me com o cheiro dos seus cabelos negros e lisos, a pele salientada das suas axilas, os poros ásperos do seu pescoço e das suas bochechas, seus antebraços me pressionando com força contra seu tronco. Maxilar de Aquiles.
- Heil, Hitler!
- Heil, Hitler!
Seriam soldados se aproximando para jogar mais corpos na vala? Eu não poderia saber. Cada músculo e osso doía como se estivessem em brasa, e eu só tinha um único objetivo na minha frente, afundando minhas mãos e joelhos que engatinhavam sobre corpos e neve. Aquele meio-túnel parecia mais claro, mas eu não poderia esfregar os flocos dos meus cílios pois não queria corres o risco de infectar meus olhos com aquele fedor pútrido e carnicento. Mais perto, mais um pouco, e eu poderia, talvez, de alguma forma, e sem precisar de motivo algum, ser salvo.
Acordei com meu rosto direito ardendo e minhas pernas esquentando. Meu cobertor estava sendo consumido por chamas. Afastei-me dele imediatamente tateando ao redor à procura do pequeno corpo de Emeline. Abri os olhos e um branco lusco-fusco me cegou por alguns instantes e fez minhas pupilas dilatarem, até elas se acostumarem com toda aquela luz. Era noite, o estádio de boxe estava destruído pela metade e Abelard caminhava sobre os escombros, a comida atingida e tostada, inútil.
Emeline gritou e se agarrou ao meu corpo imediatamente. Abelard nem olhou para mim.
Estonteado e enjoado me levantei, procurei apoio mas não havia nenhum. Comecei a ir em direção a Abelard que andava para lá e para cá como um filhotinho procurando pela mãe desaparecida.
- Abelard...
- Eles estão vindo...
- Abelard, vamos sair daqui.
- Eles estão vindo...
- Abelard, me escute!
Abelard me olhou assustado, como se eu fosse um estranho que acabara de entrar na sua casa sem permissão. E então franziu o cenho, abaixou a cabeça e se pôs a chorar.
- Abelard por favor, agora não é a hora...
- Não Audrick...
- ... de se lamentar, vamos embora daqui, vamos...
- Não Audrick!
- ... procurar outro lugar, outro abrigo, qualquer coisa...
- NÃO AUDRICK!
- ... MAS VAMOS SAIR DESTE LUGAR AGORA!
Emeline chorava no meu ombro, agarrada ao meu pescoço, e de repente senti que ela estava pesada demais. O barulho voltou, as luzes voltaram. Sirene, e o vermelho, as caminhonetes marrom-escuras enxotando soldados e mais soldados com a insígnia da Suástica nas mangas dos uniformes.
- Abelard, não faça isso comigo. Não enloqueça agora. Vamos sair daqui, eles estão chegando, precisamos nos esconder!
Abelard piscou os olhos várias vezes, pressionou os dedos contra as pálpebras, parecendo enfim ter voltado a realidade. Ele me olhou com um arrependimento que estraçalhou o que restava do meu coração.
- Vamos, Audrick.
Enfim cheguei ao outro lado da vala. Com toda a força que dediquei às minhas mãos, tirei um dos corpos que tapava o caminho para aquela discreta saída que nenhum soldado teria a coragem de olhar. Entrei no buraco, puxei um corpo para tapá-lo novamente e penetrei na lama, de olhos fechados, sentindo minhocas e baratas formigarem ao redor do meu corpo, mas apenas seguindo aquela trilha infinita para uma, talvez, utópica liberdade.
Abelard estava na frente, olhando de relance nas esquinas para confirmar se havia perigo de atravessar tais ruas ou não. Corremos e corremos, até que chegamos a um quintal de uma casa abandonada, onde se ocultava entre alguns pinheiros um lago congelado. Tentei discernir melhor o lugar com minha visão fálica, mas o grito de Emeline no meu ouvido me deixou atordoado quando Abelard escorregou na lama com suas galochas vagabundas e afundou na água quase imperceptivelmente. Deixei Emeline encolhida entre algumas moitas e fui em direção ao lago, procurando desesperadamente o buraco onde Abelard havia entrado. Mas a noite me impossibilitava, o luar estava nublado, e onde estavam agora as estrelas quando elas me eram tão necessárias?
- Abelard, não...
Comecei a chorar, mas sem perder a calma e o auto-controle. A camada de gelo estava grossa e impossível de quebrar com as mãos, senti uma vibração, um baque, e me ajoelhei para sentir melhor, colocando meu ouvido na textura fria e dolorosa da água estática. Afastei com as mãos os flocos de neve apenas para ver melhor através do gelo liso e transparente, voltei para perto de Emeline e tirei da sua mochilinha uma lanterna, correndo mais uma vez para o lago, escorrendo e batendo os joelhos excruciantemente. Mas eu não poderia me permitir sentir dor.
Procurei agora com a lanterna o buraco, e nenhum sinal. Retomei o lugar onde havia sentido a vibração. Céus, já devia ter se passado um minuto!
Iluminei a transparência do gelo e vi o rosto de Abelard se afogando, batendo naquele muro rígido e egoísta enquanto seus últimos resquícios de oxigênio acabavam.
- ABELARD! POR FAVOR ABELARD! ENCONTRE DE NOVO A SAÍDA!
Solucei escandalosamente, comecei a bater no gelo. Tirei minhas luvas e ferí meus dedos e punhos, arranhando e esmurrando. Peguei a lanterna de novo e Abelard estava piscando de forma lenta e compassada.
- ABELARD! VOLTE!
Ele ainda estava movendo braços e pernas, mas o seu ritmo estava ficando cada vez mais lento e insuportável.
- ABELARD! NÃO ME DEIXE AQUI!
Abelard fez um movimento de "não" com a cabeça, e então tentou falar algo, que eu só pude adivinhar lendo seus lábios.
Não olhe para mim.
Ele desapareceu, desisti da lanterna, desisti dos meus punhos. Coloquei minha testa no gelo e o meu choro vinha em espasmo musculares, movimentos inconscientes. Nenhum deus, nenhuma estrela, nenhuma noite ou primavera poderia ter ideia da dor que crescia dentro de mim e se expandia como um monstro de várias pernas e braços, dentes e olhos, sugando não meu coração, mas minha alma. Eu não sentia mais meu corpo, parecia estar fora dele, e no entanto ainda o sentia ser corroído pouco a pouco por esse monstro feroz e insaciável. Não seja a primavera que ele te foi, não seja o abandono que ele te desprometeu.
Minha alma estava num fundo de um lago, congelada, com todo o seu direito de oxigênio roubado. Morta.
Um feixe de luz penetrou nos meus olhos remelentos, esperei para enxergar melhor, o túnel estava acabando. Aquele era o fim. Me prometa, aquele era o fim.
- TIO AUDRICK!
Saí escorregando e me debatendo do lago. Emeline estava suspensa por um soldado. Eles ouviram meus gritos, captaram a luz da minha lanterna, perceberam meu choro naquele bairro fantasma. Emeline, Emeline não. Abelard, por favor Abelard.
O cachecol de Emeline indo embora na ventania, sua boina azul-marinho caindo na neve lamacenta e sendo pisoteada. Corri para ela, para buscá-la, para tomá-la aos meus braços. Recebi uma nocaute do cabo de uma espingarda, quebrando meu nariz e me desequilibrando novamente ao chão.
- Não a toque, seu doente desgraçado. Ela agora é nossa.
As luzes de algumas casas se acenderam. Então não haviam todos indo embora? Alguns ainda estavam lá?
- Tem certeza? - perguntou uma voz.
- Absoluta. Não vão sentir falta dela. E crianças só atrapalham.
Um tiro espantou os moradores que haviam acendido suas luzes e agora as estavam apagando novamente. Tentei me levantar me segurando no tronco de um pinheiro, mas meus joelhos falharam de novo quando vi o corpo de Emeline ao redor de um crucifixo vermelho. Suas perninhas tortas, sua cabeça brotando uma fonte de sangue, seus olhos abertos, suas mãozinhas frágeis afundando naquele oceano branco e sem sentido.
Escavei o feixe de luz até ele se tornar maior, eu sabia, dessa vez eu tinha a certeza, e ninguém teria o direito de roubá-la. Saí do tunel e senti o cheiro da primavera que Abelard carregava, a presença cálida e etérea de Emeline, como se ambos estivessem segurando minhas mãos. Alí estavam eles, Abelard e Emeline, de costas para mim, olhando o horizonte e me esperando ficar entre eles. Já estou indo, estou quase pronto, estou quase lá. Porque agora eu estou livre, porque agora eu sou livre. E eu tenho o cheiro das rosas e o sabor dos mais caprichados doces, eu tenho o calor do meu primeiro beijo e tenho a minha filha, e tenho também a música e a poesia, e tenho toda arte que quiser ter.

E isso ninguém vai me tirar.






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Andrew Oliveira
Artes: Hikari Shimoda

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