O grande patriarca da dinastia Inasumi recebeu uma notícia: sua última filha, Inanna, fora amaldiçoada com o Toque de Frigga. Inanna seria, enquanto vivesse, uma bruxa amaldiçoada pela tristeza e pela dor, e se ultrapasse esses dois sentimentos, obteria apenas o sangue e a traição.
Hecate, a mais velha, que tinha um futuro promissor mais como xamã do que como bruxa, lhe revelou após um sonho certa profecia que despencou no mundo onírico: a pantera negra, os olhos da mãe, o estupro do Enganador, a imortalidade, e por fim, o anel. Mas Hecate nada compreendera o que aquilo significava.
A profecia poderia ser desfeita se Inanna permanecesse intocada. O patriarca Inasumi decidiu então fazer dos céus os seus vigilantes.
1323
Inanna fechou suavemente os olhos num encontro quase erótico de cílios longos e negros na face pequena e pálida enquanto Saroth escalava sobre seu corpo. Beijando com delicadeza suas pernas, respirando ardorosamente em suas coxas, rasgando seu vestido negro emoldurado com contas de diamantes e fazendo voar pequenos lampejos de riqueza e transparência. O corpo adolescente de Inanna era curvilíneo, sinuoso e tão perigoso aos olhos quanto um escorpião do deserto mais cruel. Ela tinha uma tatuagem negra que se desenhava como chamas escuras e fazia um círculo no seu umbigo, emblema de sangue da sua dinastia. Sua pele era tão cheirosa e macia que Saroth não decidia se admirava o aroma de lírios selvagens do norte das Montanhas Cinzas ou se beijava cada mínimo pedacinho do corpo da menina. Inanna estava deitada eroticamente na grama enquanto era torturada pelos lábios de Saroth, aquele príncipe gentil, cavalheiro, inteligente, belo e feroz com seus olhos de demônio insatisfeito.
Não.
Agora?
Sim.
- Te entregas?
- Antes que os dentes-de-leão azuis pousem na grama.
- É tão proibido.
- E te pertences.
Inanna abriu as pernas e abraçou os quadris rígidos de Saroth com elas, enquanto ele se deitava carinhosamente e massageava seu seio esquerdo, sugando o direito. Eram tão pequenos e cabiam inteiros na palma das mãos. Ele adorava aquilo. Inanna deixou a boca entreaberta e ele veio, cheio de tal sagacidade e triunfo, não em êxtase mas em vitória, para os seus lábios. Sua boca era gentil e seus lábios, verdadeiras lanternas na escuridão daquele poema romântico que Inanna mal se lembrava mais como começava. E então ela sentiu, o começo, a parte mais difícil e dolorosa, mas ela o amava e o queria, e jamais pediria que ele parasse. Saroth moveu as coxas e os quadris e abraçou Inanna ainda mais forte enquanto ela era cruelmente desvendada por ele. Houve uma ventania, ela se lembrava, e houve também uma lufada de dentes-de-leão dourados rodopiando incansavelmente naquela trilha entre pássaros que cantavam sem parar e a grama que arrepiava a pele das suas costas, enquanto aquele príncipe belo, de cabelos escuros e beleza pueril a penetrava.
Anoiteceu.
Inanna arregalou os olhos e sentiu lágrimas escorrerem dos seus olhos, e sem entender porque começara a chorar e porque o céu estava com aquela aparência tão assustadora, algo que ela nunca havia visto durante os seus treze anos de existência. O sol, onde está o sol?
Saroth chegou ao ápice, a beijou nos dois lados das bochechas e só então percebeu que Inanna não estava como ele pensava estar.
- O que houve? Eu a machuquei? - ele arregalou os olhos pensando se ela estivera gostando ou não do seu carinho, ou se não conseguira suportá-lo e agora a dor estivesse latente.
- Eu não sei. Meu peito está doendo.
- Me... Me...
- Não foi você. É dentro. Dentro de mim. É meu coração.
- Inanna.
- Te afasta de mim.
- Inanna!
- Te afasta de mim!
- As estrelas, Inanna!
Inanna não entendeu, olhou para o céu e o céu parecia quase dia com a quantidade de estrelas que espocavam e surgiam no breu. Uma manada correu para o sul e ela sabia que eram os antílopes gigantes. Mas o que estava acontecendo para eles estarem tão agitados? Inanna se levantou, vestiu o que restava do vestido negro e longo e começou a caminhar sem olhar para Saroth.
- Inanna, minha querida, tu estás bem?
Inanna agora estava consciente das suas lágrimas, a dor em seu coração parecia aumentar, mas muito devagar ela estava entendendo o significado de tudo aquilo.
- Vá embora, Saroth.
- O quê?
- Me ouvistes, vá embora!
Ela parou, Saroth no seu encalço, desejando tocar em seu ombro e fazê-la olhar para ele, mas a ideia lhe parecia amedrontadora.
- Me dê um motivo. - ele pediu.
Inanna agora soluçava, abraçou a si mesma pois a dor estava agora insuportável, como centenas de agulhas espetando seu coração, lá dentro, e era impossível fazer aquilo parar. Saroth se aproximou com apenas um passo, mas de alguma forma ele entendeu também.
- Mamãe enfeitiçou o céu. Hecate conhece o feitiço. E o feitiço é o aviso para meu pai e para seu exército de alquimistas. Desde pequena, me disseram que nasci com o toque de Frigga. Sabes o que isso significa? - ela arfou, os soluços voltaram mais fortes, praticamente descontrolados. - Eu nunca vou poder procriar.
- Meu amor... Não faça isso comigo. - E Saroth compreendeu pela primeira vez que também estava chorando desde que anoitecera.
Inanna chorou desmesuradamente, fechou os olhos com força.
- E por que pensei que poderia sonhar com isso? Desde que o vi, achei que afinal, num sonho futuro, eu pudesse... Eu pudesse... Mas como posso com os céus de mamãe me velando? Com os antílopes gigantes anunciando? Com as estrelas descarando o futuro e a incerteza no meu peito? Vá, Saroth, antes que papai chegue.
- Mas Inanna.
- Vá!
Ela olhou para trás, suas palavras ganharam mais força com seu olhar de falsa fúria, descobertos por camadas de lágrimas. Os cabelos longos e negros agora desarrumados, o rosto pequeno e oval contorcido num misto de tristeza e altivez. O céu amanheceu novamente, e Saroth já estava a uns cem metros de distância naquele campo aberto quando viu a matriarca Inasumi chegar e segurar os braços de sua filha com força e frieza.
- ME LARGA!
- Criança estúpida!
Selene Inasumi a estapeou, e de novo, e de novo, até Inanna cair no chão e se encolher como um bebê desamparado.
- Eu lhe falei isso a vida inteira! - a mãe se ajoelhou, ainda rancorosa, para violentar a filha com arranhões e tapas.
- Pare, mãe!
- Eu vou lhe trancar no sotão pelo resto de sua vida!
- PARE MÃE!
- Não conhecerás mais ninguém! Não amarás mais ninguém! Porque não podes procriar! Nasceste com o toque de Frigga! Por que não aprendeste a conviver com isso?
Inanna mordeu a palma da mão até fazê-la sangrar, com rapidez buscou a varinha num ponto secreto do seu vestido, esfregou-a com seu sangue e a ergueu para cima, para o céu amanhecendo, para a névoa e para os dentes-de-leão azuis que desciam sobre os cabelos escuros e longos de Selene.
- HIPERION!
Uma pantera negra se materializou numa lufada de ar quente e pulou rugindo sobre Selene, prendendo seus braços com suas patas enormes e ameaçando-a com a bocarra aberta e cheia de presas afiadas.
- MATE-A HIPERION, PELO MEU SANGUE! EIS AQUI O TEU PAGAMENTO! - Inanna se levantou, a varinha e a mão pingando com o sangue que desapareceu no mesmo instante. O seu rosto, um verdadeiro santuário de arranhões e tapas.
- NÃO! NÃO! FILHA! NÃO! - a mãe implorou.
Hiperion, o Deus Terreno com corpo de pantera negra, deu uma patada impiedosa e precisa no rosto de Selene, arrancando um olho com uma unha que se cravou com o golpe. Selene gritou e implorou por sua vida. Inanna virou as costas contra a mãe mutilada e olhou para horizonte, buscando desesperadamente um ponto que pudesse ser Saroth, mas era apenas céu, sol, frio e colinas. A vida de repente estava desbotada.
- Não a mate. - ela sussurrou, e bem poderia ser um fiapo de pensamento alto, e Hiperion cessou a última pata pronta para rasgar o pescoço de Selene.
Inanna olhou determinada para o Deus Terreno que esperava a próxima ordem. Foi muito sangue pago, daria tempo de sobra para isso.
- Me leve para longe daqui.
Hiperion descansou as patas e Inanna levantou a saia do pouco vestido que lhe restava no corpo para subir nas costas da divindade. Selene soluçava sangue enquanto pressionava as mãos na ferida aberta no estômago. Ela tentou erguer um dos braços, mas ele caiu pesadamente na grama.
- Inanna...
- Eu te amo, mamãe.
Selene agora estava chorando.
- Eu também.
Inanna abraçou o pescoço grosso e másculo da pantera enquanto ela erguia as patas e começava a saltar e correr como nunca. O sol ainda estava lento e morno no comecinho do horizonte, com uma névoa aqui e acolá, nuvens róseas e púrpuras num céu não necessariamente azul, não necessariamente escuro. Ainda havia resquícios da noite, ainda havia como ver. Inanna olhou para trás e contou rapidamente as estrelas que insistiam em piscar mesmo naquele mundo de ouro e chamas se transformando numa bola laranja que já se preparava para penetrar os grandes campos daquele lugar com raios e sombras.
- Corte esse caminho, vá para o outro lado. - ela ordenou, e a pantera negra começou a correr para a direita.
O exército do seu pai estava chegando, sim, ela havia visto nas estrelas. O brilho delas era malicioso demais para isso não estar tão claro. E afinal ela nem precisava das estrelas para pensar na possibilidade. Ela só não viu como seu pai chegaria.
~
1680
- Mas que ousadia! - Berrou Friddah, se levantando desajeitada do chão, pronta para uma batalha cruel.
- Quieta, mulher. - Dirigiu-se Carlotta, sem nem olhar para a xamã descabelada.
Ammaleth correu para abraçar a irmã, enquanto os olhos de Carlotta se clareavam de um verde escuro para um verde esmeralda lentamente. Carlotta apertou-a com força, e depois segurou-a pelos ombros, como as irmãs caçúlas costumam fazer.
- Tenho notícias horríveis para ti, irmã.
Ammaleth imaginou perfeitamente quais eram.
- As Escuras estão conseguindo desenvolver seus planos?
- Sim. A líder delas, Inanna, não está mais aqui, ela acabou de abrir o segundo cadeado do Grande Portal. Crucificou Radamathys e... - Carlotta engoliu em seco. - Matou várias bruxas para conseguir isso.
- Mas... Mas...
- Ammaleth, não temos tempo. Só te digo que estou infiltrada na dinastia de Inanna, e tive que ajudá-la a abrir esse portal. Passei anos comunhando com a Escuridão para conseguir isso. Mas não sei. As vezes tenho a impressão de que Inanna sabe que sou uma Clara e...
Ammaleth abraçou-a de novo. Carlotta sentiu um peso se esvair do seu coração, algo impregnado a tanto tempo lá como se já fosse parte dela. Mas não havia tempo pra chorar. O mundo agora estava sensível com a corda arrebentada por Inanna, o primeiro cadeado. Em que dimensão Inanna estava agora?
Friddah já estava calma, apenas olhando com um certo receio para as irmãs. Embora lá no fundo do seu peito ela sentisse vontade de abraçá-las também. Sentimentos... Há quanto tempo ela estava presa na natureza ao ponto de não saber mais como reagir a seres humanos? Friddah tornara-se uma eremita após a morte de sua mestra, Amanara Legda, a xamã ruiva de espírito cansado, mas de personalidade feroz. A criatura mais próxima de uma família que ela teve.
Ammaleth sentiu, pois quando se tratava dos piores sentimentos, ela sabia, ela conhecia, ela desvendava contando cada mínima ruga ao redor dos olhos, embora a pele de Friddah fosse tão branca e lisa que talvez não tivesse ruga alguma. Friddah percebeu o conhecimento de Ammaleth, como a xamã instintiva que era, mas não fez nada quando sua irmã do meio se aproximou e lhe segurou a mão.
- Friddah... És tu mesmo?
A expressão rígida de Friddah desapareceu e pela primeira vez em mais de uma década, sua testa se franziu e seus olhos se umedeceram. Ammaleth parecia ter o poder inconsciente de aquecer almas aflitas.
- Lembras de mim, Ammaleth? - ela sentiu uma gota salgada e morna descer pelo rosto. O que era aquilo? O significado das lágrimas era chorar? A última vez que ela chorou e gritou como mais uma vez uma criança desamparada foi quando Amanara fora assassinada. - Pensei que mamãe tivesse me arrancado das tuas lembranças...
Um estrondo de pensamento veio na cabeça de Ammaleth no mesmo instante. Ela balbuciou mas então parou, e reorganizou sua cabeça para enfim falar com calma.
- Na minha primeira missão de impedir que Radamathys abrisse o primeiro cadeado, tive que procurar por um livro de demonologia, mas só consegui isso quando o espírito Rosanne, nossa avó, se fundiu ao meu. Foi tão rápido que pensei ser uma lembrança dela, de Rosanne... Mas era minha. Uma irmã chamada Friddah, uma irmã que cuidou das minhas feridas, que levava meu balancinho até ao céu, perto das estrelas. Que consertava minhas bonecas de porcelana...
Foi Friddah dessa vez quem tomou a atitude para abraçá-la. E após alguns poucos minutos de alívio, lágrimas e silêncio, as irmãs se reuniram, com Auguste quieto e boquiaberto. Ele mal lembrava de Carlotta...
- Friddah, esse é meu marido Auguste. Ele é o único que sabe que não sou humana.
Friddah quase olhou com horror para Auguste, mas sabendo que aquilo magoaria Ammaleth, ela sorriu e deixou-o beijar-lhe a mão. Friddah e Carlotta sabiam do futuro de mortais que conheciam bruxas, mas mantiveram-se caladas.
- Bem, não tenho muito o que falar além do que vocês já sabem. Mas isso não é de conhecimento de vocês.
Ela começou.
"Vocês devem conhecer a crença horrenda de Mary Donna de que nenhuma Coeurcourt pode ficar com sua primogenita. Motivo pelo qual ela me expulsou, e eu fui adotada por seres humanos. Sem ninguém para me ensinar, tive que sair da casa dos meus pais adotivos por medo de ser assassinada ou... Por qualquer outra coisa. Na floresta eu conheci Amanara, uma xamã, que me ensinou a ser como ela, passou todos os seus ensinamentos para mim e os segredos dos Deuses Terrenos e dos Demônios.
Durante esses conhecimentos que fui adquirindo, ela escreveu uma profecia enquanto eu estava em outra dimensão. Lembrem-se que xamãs são as maiores profetas do nosso mundo, é impossível uma xamã, por mais fraca que seja, errar a profecia que escreve ou amaldiçoa. Mas Mestra Amanara não conhecia nada daquilo, ela escreveu após um sonho, um sonho cheio de sangue e humanos e bruxas uns contra os outros numa total desordem das Linhas. Ela não conseguiu decifrar nada do que escreveu, e passou a ficar obcecada com sua profecia, pois ela sabia que isso ultrapassava seus conhecimentos de xamã, e talvez apenas uma Guardiã de Sheol conseguisse ler aquilo tudo com clareza.
Mas não tivemos tempo. Enquanto descobríamos as criaturas da Floresta dos Deuses e tentávamos decifrar cada verso, aconteceu um colapso:
Encontramos Inanna e várias de suas bruxas mais fortes alí, escravizando as criaturas que viviam escondidas na Floresta dos Deuses, a floresta que apenas criaturas sobre-humanas podem ver, e que fica após a Floresta da Mandrágora. Inanna ordenou às suas súditas nos atacar, e foi uma batalha horrível e sangrenta.
Eu tinha apenas quinze anos quando isso aconteceu, mas já era poderosa, afinal, eu tinha uma xamã ao meu lado. Gastei muito sangue para invocar Krishna, a Deusa Terrena a qual tenho uma ligação, e convencê-la a lutar por mim. Amanara já estava muito velha para isso, além de extremamente ferida. Só me restava fazer isso..."
Eu tinha apenas quinze anos quando isso aconteceu, mas já era poderosa, afinal, eu tinha uma xamã ao meu lado. Gastei muito sangue para invocar Krishna, a Deusa Terrena a qual tenho uma ligação, e convencê-la a lutar por mim. Amanara já estava muito velha para isso, além de extremamente ferida. Só me restava fazer isso..."
Friddah parou um pouco para respirar, e então sentiu a mão quente das irmãs nos seus ombros, dando-lhe forças. Ela agradeceu com um sorriso e uma lágrima, e então prosseguiu.
"Arranquei olhos, fiz da pele delas carne pútrida e pustulenta. Mas quanto mais eu e Krishna lutávamos, mais elas apareciam para nos atacar. Inanna não estava mais lá entre nós, Inanna havia roubado a profecia que estava no vestido de Amanara, e depois roubou-lhe o coração, e alí mesmo comeu. Indo embora saltitante e feliz, cantando uma canção numa língua desconhecida, pensando que estivesse mais poderosa do que nunca.
As bruxas que restaram também foram embora, e então caí com meu braço direito quebrado e o esquerdo com um corte profundo e enorme, resultado do meu pagamento para com Krishna, que só fechou a ferida depois.
Quando acordei. Krishna não estava mais lá, mas o espírito de Amanara drenando o sangue do seu próprio corpo e curando todas as minhas feridas. Um pássaro escarlate e líquido se dissolvendo na minha pele, o último ato de amor de Amanara para mim..."
Friddah tocou na sua boca, há quanto tempo ela não falava tanto assim? Há quanto tempo seus diálogos não duravam mais do que duas ou três palavras? Com Deuses, Demônios e Criaturas, era tudo rápido, eficaz, riscos de pensamentos. Ela estava agora recomposta, pois precisava contar a sua história para alguém, e a oportunidade finalmente lhe batera as portas.
"Amanara passou todo o seu conhecimento para mim através do seu sangue, ela sabia que Inanna tentaria lhe roubar isso, e então secou seu coração para, quando a batalha terminasse, ela conseguisse transferir tudo para o meu corpo enquanto me curasse."
"Passei a morar na Floresta dos Deuses, perto do túmulo que fizera para Amanara, e com o tempo, as criaturas e os espíritos hostis se acostumaram com a minha presença. Quando tomei coragem e força suficiente, invoquei alguns daqueles espíritos mais antigos, aqueles que nunca tiveram um corpo e, por isso, são os mais disformes e poderosos. Eles me ensinaram através da alquimia a criar homúnculos, pseudo-humanos que poderiam enganar facilmente qualquer um. Foi assim que criei Arpe, meu mais fiel escudeiro. E através de outros homúnculos que enviei para as montanhas onde a dinastia de Inanna vive, descobri seus objetivos e a linha que ela estava começando a traçar para começar suas guerras. Com o homúnculo Arpe, o mais forte e resistente que criei até então, comecei a percorrer o mesmo caminho que Inanna, eu já sabia que ela conseguiria abrir o primeiro cadeado, e eu, estava pronta para abrir o segundo."
- Continue, Friddah. Nós não vamos lhe julgar. - Ammaleth sussurrou, Auguste alí atrás ouvindo a história com atenção. Carlotta estática e surpresa.
"Me perdoem por estar tão horrívelmente equivocada. No final eu quase ampliei o plano de Inanna. Mas eu estou tão consumida em vingança por esta criatura. Me sinto tão amarga e presa pelo que aconteceu com minha Mestra..."
Nenhuma das irmãs se abraçou, apenas se entreolharam com afirmativas silenciosas, e Friddah foi quem falou:
- Eu vou ajudá-las. Não sei o que pretendem, não sei qual é o plano de vocês. Mas vou ajudá-las. Não importa. Irei perseguir Inanna até o último segundo da minha vida. Nem que eu tenha que bagunçar cada parte do Inferno com isso.
~
1323
Um homem alto e encapuzado com um manto branco saiu da terra e puxou as pernas de uma enfraquecida Inanna no meio do nada. Ela estava fraca com o tanto de sangue que havia oferecido para Hiperion e agora não tinha mais força alguma para resistir. Quando o homem carregou, ela não fez qualquer movimento, parecia que estava pronta para isso acontecer. Ela abriu os olhos bem de leve, e o céu ainda parecia anoitecido, mas era só tristeza.
Acordou numa cela triangular, oculto numa caverna aberta no topo, fazendo a luz entrar como uma lâmpada natural. No silêncio, um filete de fonte gotejava e ecoava no ar, ela estava com outras roupas, um vestido negro novo, embora seu corpo ainda estivesse sujo e ela se sentisse sórdida por dentro. Ela precisava de um banho, um longo e delicioso banho. Para aliviá-la daquele dia, para aliviá-la de tudo.
Aquela altura, Saroth devia estar chegando no seu reino, arrumando seus pertences numa bolsa de couro e indo embora para outro lugar ainda mais longe. E quanto Sorath, seu irmão, futuro promissor como Demônio e Príncipe? Ele ainda estaria ao lado de Hecate? Casaria com ela? Teria filhos? Inanna sentiu inveja da irmã. Desejou que ela morresse.
Com Hecate tudo dava certo. Não foi ela quem nasceu com o toque de Frigga, ela poderia ter quantos filhos quisesse, pelo tempo que durasse, e construir uma linhagem tão grande quanto a dinastia Inasumi. Não foi ela quem estava predestinada a ser observada pelos céus, os maiores vigilantes de seu pai, para que Inanna nunca conhecesse a carne. Não foi ela quem precisou abandonar o seu amor, cegar a sua mãe e quase morrer num deserto, tudo porque ela só queria viver.
Então viver era isso? Sangue, areia e abandono?
Ela procurou nos bolsos ocultos do vestido sua varinha, mas nenhum sinal, além de sequestrada, fora furtada.
A criatura encapuzada de brancou entrou no lugar e tirou o manto do rosto cabisbaixo. Era Saroth. Inanna imediatamente entrou num misto de desespero e alívio, e se colou na grade para aproximar as mãos e tocá-lo. Saroth se ajoelhou gentilmente e a beijou.
- Minha querida, vim tirá-la daqui.
- E os soldados de meu pai? Não há nenhum vigiando este lugar?
- Arranquei o coração daqueles que estavam aqui.
Saroth tirou da sua bolsa de couro marrom uma garrafa de barro fechada com uma rolha, cheia de água, e entregou para Inanna enquanto destrancava o cadeado com uma longa chave pontiaguda, feita de osso. Inanna saiu desesperadamente da cela e abraçou Saroth, que estava com um cheiro diferente, mas que continuava tão quente e fraterno quanto antes.
Saroth começou a tocá-la.
- Meu amor, não há tempo, precisamos sair daqui. - Inanna sussurrou, receosa, hipnotizada com os lábios de Saroth.
- Minha querida, não há mais ninguém em um raio de quilômetros aqui. Somos apenas nós. E seu pai provavelmente demorará para chegar. Minha querida, minha Inanna, minha bruxa, esta é a hora para nos amarmos...
- Me sinto tão... Suja.
- Para mim, estarás sempre perfeita.
Inanna fechou os olhos, devagar, quase parando, e abriu as pernas para encaixar Saroth junto ao seu corpo. Mesmo hidratada, seus lábios ainda estavam secos e rachados, e Saroth estava tão estranhamente violento, como se estivesse provando da sua carne pela primeira vez, de novo...
Vários soldados entraram na caverna extensa e longa. Inanna olhou atormentada para eles, enquanto Saroth se erguia furioso e a deixava alí mesmo ao chão. Que atitude era aquela? Saroth jamais faria uma coisa dessas.
- Sorath! - surgiu Hecate furiosa do meio dos soldados carrancudos. - O que estás fazendo com a minha irmã?
- Ela me seduziu, Hecate! Ela me persuadiu a abrir a sua cela e depois me hipnotizou para fingir amá-la! - esbravejou Sorath, com uma expressão falsamente confusa e atordoada, enquanto Inanna se levantava envergonhada do chão e se encolhia perto da grade, segurando duas barras de ferro como se estas fossem a única coisa que ela tivesse no momento.
- É mentira, irmã... Ele me enganou. Eu... Eu pensei que fosse Saroth.
- Saroth? Estás louca? Tu matastes Saroth, Inanna!
Inanna arregalou os olhos para a irmã, como uma xamã poderia estar sendo enganada assim tão facilmente? Aquilo era demais para ela. Sentiu os joelhos se fraquejarem e os olhos se afogarem em água do mar salgada e inquieta como num dia de tempestade.
- Eu não... Saroth fugiu...
- Tu matastes Saroth, teu amado, Inanna! Queres ver o que restou do corpo dele? Queres ver de novo o que fizeste? E depois ainda cegou nossa mãe com tua fúria! Estás demente como uma bruxa eremita! Não discernes mais a realidade da fantasia!
- Não... Não... - Inanna apenas conseguia sussurrar, na garganta agora seca.
- E agora roubas meu Demônio para concluir teus planos egoístas! Rouba meu amado de mim como se isso não significasse nada!
- Irmã... Por que me acusas de tudo isso? Nada disso é verdade... Eu... - Mas os soluços que se engatavam na garganta e os olhos embaçados de lágrimas não deixavam-na prosseguir. - Não, irmã... Não...
- Louca, demente, cruel, mesquinha! É o que tu és! Fingindo ser uma garota inocente, quando na verdade é uma criatura inescrupulosa que só se sacia com o sangue e a desgraça!
- Irmã... - Inanna agora estava chorando, desfalecida no chão, ainda segurando as barras de ferro da cela em que estivera, os cabelos pretos imundos, o vestido novo lhe parecia agora um enfeite bizarro para aquela situação. - Estou fraca, me ajude... Me salve... E não acredite nessas mentiras...
Mas Hecate não havia terminado, ela se aproximou e puxou o corpo enfraquecido de Inanna para estapeá-la, enquanto Sorath ria baixinho e discreto. Um soldado e fitou desconfiado e ele parou. Mas Hecate não. Hecate prendeu os braços da irmã com seus joelhos e começou a estapeá-la com uma raiva inimaginável, rasgando sua pele, desejando deixá-la cega também, embora a própria Hecate já estivesse cega no coração.
- Me mate... - Inanna sussurrou, fazendo uma bolha de sangue inchar e depois espocar da sua boca.
Hecate parou, limpou as lágrimas com as costas da mão e se levantou.
- Eu quero morrer. - Inanna voltou a chorar. - Se eu matei meu Saroth, não há mais nada que eu possa fazer aqui...
Hecate se levantou e se afastou, como se Inanna fosse uma leprosa.
- Eu quero morrer... Me mate, irmã... - ela implorou, a voz falhando, rouca e aguda, infantil. Uma criança estuprada no deserto e depois trocada por um demônio qualquer.
- Não, não vou matá-la, Inanna. - Hecate a olhou com toda a frieza que seu coração, ou a falta dele, permitia. - Vou te dar o maior castigo que a dinastia da nossa família poderá dar.
- Não! Não! - Inanna se arrastou, humilhada e seminua, com o rosto inchado e uma fonte de sangue saindo da garganta e secando nos lábios rachados. - Irmã! Me mate irmã! - ela chorou como nunca na vida, e as lágrimas desciam como ácido na pele imunda de terra, areia e sangue seco.
Inanna se ajoelhou e puxou o vestido de Hecate, Sorath chutou seu queixou e fê-la arrebentar-se para o outro lado, caindo e não conseguindo mais ter forças nem para chorar.
- Irmã...
Hecate tirou sua varinha da manga do vestido e começou a girá-la para cima, a caverna escurecendo com as nuvens escuras se acumulando e fundindo, criando trovões e uma garoa afiada e gélida. Inanna fechou os olhos, o gosto metálico do sangue na boca, as mãos geladas e o rosto surrado. A última lágrima de sua humanidade descendo na terra, despencando como se pesasse uma tonelada. E o seu coração, tomado por artérias que escureciam e se tornavam patas de aranha na sua caixa torácica. Ela não fitou sua irmã nos olhos, mas sorriu, porque ela a amava, e Hecate jamais poderia tirar isso dela. Jamais.
- Vos immortalis! - Hecate esbravejou, e o deserto estremeceu.
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Black Cherry
Arte: Nicole Absher
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