Já houve um tempo em que Deuses Terrenos confiavam e amavam seres humanos, lhe contavam seus segredos e compartilhavam da sua carne, e até mesmo da visão de seus mundos. Já houve um tempo em que Deuses Terrenos íam facilmente a rituais sem necessitar de sacrifícios ou virgens, apenas pelo prazer em ter seres humanos por perto.
E então houve a Guerra das Dimensões.
Os seres humanos, por puro instinto de proteger sua própria espécie ou quem sabe por egoísmo, cortaram seus vínculos com os Deuses Terrenos e empurraram as Bruxas Escuras como peões para a guerra, enfrentando demônios e criaturas que vinham de Dimensões mal-fechadas. A raça de Bruxas Escuras foi praticamente dizimada, e as Bruxas Claras pouco ou nada fizeram para ajudar a dinastia adversária.
Os Deuses Terrenos sentiram-se magoados com a atitude dos humanos, mas a ferida maior ainda estava por vir. Os humanos, cegos por uma nova ilusão fanática e absurda após a Guerra das Dimensões, projetaram na cabeça dos seus iguais um crucifixo que proclamava a dor, a ignorância e o desrespeito para com os deuses e os demônios, e até passaram a confundir os mesmos. Chamavam os Deuses Terrenos de Demônios, e os Demônios de Obras de Deus. Os humanos, tomados por uma fúria sem motivo ou causa, queimaram suas artes, seus livros, aqueles que ainda lhe permaneceram fiéis até a morte, tentando desesperadamente acabar com a liberdade da vida e da natureza.
Magoados, machucados e traídos, os Deuses Terrenos tornaram-se ariscos e pouco amigáveis, e até mesmo com as Bruxas, as suas melhores amigas, mães, irmãs, companheiras, amantes, inclusive também os jovens pagãos que outrora entregavam seus corpos para o prazer da carne agora os acusavam de serem o mal, possuídos por uma religião asquerosa que os tornavam carneiros e escravos de dogmas contraditórios, pautados num livro cruel e fantasioso.
O vínculo entre uma Bruxa e um Deus Terreno passou a se tornar raro, até mesmo de século a século. A não ser que esta, provando sua coragem, a força do seu sangue e da sua linhagem, buscasse a Máscara que pertencia a determinado deus, com ajuda da sua Caixa Pandorífera, sua Energia, e enfrentasse o maior dos perigos, o maior dos seus medos, para assim obter a aprovação da divindade desejada.
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1680
O pensamento ecoou como um estalo na mente de Carlotta.
"Carlotta, assim que fores liberta daqui, vá ajudar tua irmã."
Ela compreendeu a voz de Radamathys no mesmo instante e o fitou nos olhos. Era perturbador e angustiante ver um demônio crucificado, e Carlotta não era a única a ficar horrorizada com aquilo, exceto Inanna, as outras quatro bruxas franziam os cenhos e apertavam as mãos sobre os seios, como se fosse doloroso até para elas. Mas nada nem ninguém poderiam ter noção da humilhação que Radamathys estava sentindo, aquilo era mais do que um ultraje à sua raça, era pisar na sua honra e na sua dignidade.
"Não fique triste por mim, me julgava forte e indestrutível, mas esta bruxa de nome Inanna me parece um ser muito mais perigoso do que uma matriarca comum... Creio que ela não pertença à esta época, e se está viva até hoje sem ter se tornado uma súcubo, é algo que vai além da minha compreensão de dimensões e tempo..."
Carlotta sentiu vontade de chorar, queria de todo jeito se mover, ajudá-lo a sair dalí, curar suas chagas.
"Não! Carlotta! Pare! Não faça nada até Inanna te libertar desta ordem! Pare com isso! Já lhe aconselhei, vá ajudar tua irmã imediatamente depois que for embora daqui, depois que eu abrir o primeiro cadeado do Grande Portal, as coisas ficarão fora de controle, tanto para bruxas e humanos quanto para demônios e deuses."
"Mas o Grande Portal não pertence à outra dimensão?"
"Aí que tu te enganas... Imagine os universos e dimensões como uma grande teia, e então imagine a aranha tecendo esta teia no seu núcleo, agora pense que esta aranha está tecendo tal teia para nos proteger de um holocausto. Esta aranha tem seis patas, em vez de oito, cada pata é um cadeado equilibrando dimensões, mundos e universos, e se cada pata for destruída, ficará cada vez mais difícil para ela tecer a teia e manter as coisas em ordem. Esta aranha é o Grande Portal, Carlotta, e nós somos as moscas que ela está tentando segurar na sua teia!"
"E por que Inanna e sua horda de Escuras querem destruir as patas da aranha?"
"Eu desconheço suas ambições, bruxa Carlotta... Só posso imaginar que Inanna seja um grande morcego faminto pela aranha."
- Acha-o belo, Carlotta? – a voz de Inanna arrepiou os pelos dos braços de Carlotta como se ela tivesse acabado de aparecer naquele cenário, em vez de ter estado alí o tempo inteiro.
- Não entendi, mestra.
- Acha este demônio belo? Olha-os com tanto interesse e dor que parece até apaixonada por tal presença... – ela formou um sorriso malévolo no rosto de menina.
- Impressão sua, mestra Inanna.
Radamathys a fuzilou com o olhar e Carlotta abaixou a cabeça, numa aquiescência à sua inferioridade perante Inanna, enquanto esta gargalhava insanamente.
- Pois muito bem, está na hora, Radamathys, a noite já está chegando, junto com tua utilidade para mim.
- Senhorita Inanna... – Radamathys falou num sussurro rouco, um filete de sangue escorrendo do canto da sua boca.
- Sim?
- Como queres fazer o ritual de invocamento ao Grande Portal se precisarás de uma formidável quantidade de sangue para isto?
- Ah! – ela deu um sorriso simpático, jovial, ingênuo e sapeca. – Isso não é problema, meu caro Radamathys.
Carlotta suou frio, se Inanna queria matá-la, pagaria muito caro por isso, porque ela lutaria até o fim por sua vida e pela vida de Ammaleth.
Mas Inanna estava longe de planejar matar sua nova bruxa escura mais poderosa, porque ela se lembrava perfeitamente de que Carlotta sabia abrir portais.
As quatro bruxas se entreolharam, aflitas, e então quase ao mesmo tempo se ajoelharam, depositaram suas varinhas no chão e começaram a pedir por clemência e salvação, como se Inanna fosse uma imagem em movimento da Virgem Maria, pronta para absolver os pecados daquelas criaturas.
Inanna nada falou, nada recitou, nada proclamou. Ergueu sua varinha no céu, estralou a língua, fez desaparecer as pupilas das órbitas, e seus cabelos esvoaçaram e flutuaram no ar como serpentes vivas e furiosas cravando os dentes ao primeiro movimento ameaçador nos seus territórios. E então, sem ter tempo para pensar como começou a acontecer tudo aquilo, as quatro bruxas subalternas começaram e se atacar, pular uma em cima da outra, arranhar seus rostos, morder seus pescoços, rosnando feito animais doentes de raiva, rasgar suas peles e quebrar seus braços, gritando, esbravejando, numa luta pela sobrevivência tão ou mais angustiante que a crucificação de um demônio. Carlotta nada podia fazer, então apenas se afastou e pôs as mãos sobre a boca chorosa e soluçante que se recusava a falar alguma coisa, naquela cena de mutilação coletiva e cada vez mais insuportável de se ver.
Radamathys também virou o rosto e fechou os olhos num sinal de dor e respeito por aqueles seres manipulados facilmente e tão frágeis ao poder impiedoso de Inanna que mal sentiram quando já estavam enfeitiçadas, desde que entraram naquele círculo e obedeceram cada ordem de sua matriarca. A última viva engatinhou em cima da mais destroçada, em que um de seus olhos estava arrancado e pendurado numa víscera, vomitou sangue em cima desta, pois seu fígado estava para fora na barriga aberta e rasgada, e morreu.
- E então, Radamathys, é sangue o bastante? – perguntou Inanna com impaciência.
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1663
- De novo.
- Estou cansada!
- De novo!
- Eu não aguento mais!
- Se não fizer de novo, não lhe darei refeição por dois dias.
Friddah fuzilou a xamã Amanara com o olhar. Sentou-se emburrada na grama, próxima a uma árvore e voltou a unir os dedos das duas mãos como se estivesse segurando uma bola no centro.
- Pense, faça com que tudo se volte para a tua Caixa Pandorífera. Não deixais nada interromper tuas forças. Tu és uma energia em constante e inconstante movimento, e deves com tua sabedoria domar estes dois lados. O descanso pode vir depois. - disse a xamã, as rugas se acentuando no canto dos olhos, a boca meio trêmula, os cabelos cinzas e ruivos se movendo levemente aos seus passos. Os pássaros teriam parado de chilrear?
"Eu sou meus cabelos e sou minha boca, eu sou meu fogo e minha terra, minha água me conduz junto aos meus ossos e meu ar, minha respiração faísca sobre a grama molhada e o falcão inviolável. Eu sou meus olhos, sou meus cílios e tudo o que eles representam. Eu sou uma única energia, minha energia se move a cada tremular de dedos, enquanto minhas unhas crescem e minha saliva escorre."
Friddah imaginou cada parte do seu corpo se unindo num núcleo, no peitoral, perto do coração, e depois se fluindo, uma energia azul-esverdeada se deteriorando a cada pulsar do seu coração e depois se unindo novamente como partículas formando fibras musculares, indo diretamente para as suas mãos e as pontas de seus dedos. E agora eram seus dedos que pulsavam, esquentavam, respiravam. A menina abriu os olhos, e sua energia estava lá, uma bola de luz verde e azul, que fluiu e se tornou parte da natureza segundos depois.
Amanara bateu com seu cajado na cabeça da menina.
- Ai!
- De novo!
- Eu não aguento mais, já disse! Não tenho mais força alguma nos braços!
- Besteira! Pare de choramingar tanto!
Friddah imaginou esfregar o rosto de Amanara em algum estrume na floresta, e a xamã velha bateu novamente o cajado na sua cabeça por ter desejado tal coisa.
- Ódio não leva a nada, menina. Tampouco o amor. Tua única arma no mundo é o teu poder. Concentra-te em devaneios, concentra-te em sentimentos frágeis e pueris, e tua vida escorrerá das tuas mãos sem significado ou função.
A criança abaixou a cabeça, respirou fundo, estralou o pescoço e os ombros e voltou a concentrar-se na sua energia. Ela deveria vir para o mundo externo novamente, havia muita energia sobrando e colocando-a para fora poderia haver mais utilidade, além de ensinar seu corpo e equilibrar cada fiapo de energia no momento certo. Vamos, feche seus olhos, tu não estás aqui, tu estás dentro de ti mesma, tu és tudo o que pensa ser capaz de fazer, tu fazes parte do mundo e no entanto podes muito bem sobressair-se dele. Não há apenas ele, há outros, pense nisso, concentre-se nisso.
Quando abriu os olhos estava num deserto. O céu estava nublado e uma ventania assoprava areia no seu vestido, cabelo e olhos.
- Mestra Amanara! - ela chamou.
Nenhum sinal da velha xamã.
- Mestra Amanara! Onde eu estou? - mas nada. Mestra Amanara não estava lá, não estava compartilhando daquele mundo, ou dimensão, ou seja lá que lugar fosse.
O deserto era gelado, sua ventania era cortante e parecia pinicar no corpo, ou talvez fosse a areia entrando no seu vestidinho preto de saia longa como se seu corpo fosse uma ampulheta. Friddah observou o céu, sentia que deveria olhar para ele com calma e esperar por algo que ela sempre soube que viria. Onde ela estava? Dentro de si mesma? Sua alma era um deserto frio com uma ventania agressiva? Ela começou a caminhar.
Embora suas articulações travassem e ela sentisse um medo voraz, a adrenalina e a ansiedade eram maiores. Era o que faziam suas pernas se moverem, seus pés afundarem na areia fofa com determinação. Assovios, a garganta estava seca e as nuvens do céu nublado riscavam o ar, pois para as nuvens o ar era a sua pele. Davam a impressão de que o céu fosse uma praia, um céu litorâneo, um céu de areia.
O horizonte não tinha sol, mas tinham raios brancos e ondulantes que projetavam sombras colossais no deserto, como que tapando a estrela atrás de si. Quanto mais Friddah caminhava, maiores aquelas cortinas avoadas ficavam, mais presentes e vibrantes. Vibrantes? Sim, Friddah também começou a sentir uma vibração na areia, estaria se aproximando dalí um gigante ou um deus terreno? Ela decidiu correr, queria chegar perto do sol de algodão e teares o quanto antes. Correu como se estivesse sendo perseguida por um Demônio do Sol, como se estivesse saindo da casa de alguma mãe ingênua e entristecida, como se estivesse correndo de si mesma.
Uma revoada de pássaros azuis surgiu por detrás das cortinas evoaçantes ao mesmo tempo em que o sol lutava para sair dos fundos daquelas ondas de pano usurpadoras com raios insistentes e que apenas deixaram as sombras maiores. Os pássaros eram longos e sinuosos como serpentes aladas, suas caudas pareciam ter o dobro dos seus tamanhos e ondulavam no céu enquanto suas asas impediam que o sol formasse mais luz no deserto, suas sombras solitárias na areia afundando numa espécie de passos invisíveis.
E então um passo estarrecedor que fez Friddah cair de rosto na areia, fazendo-a engolir sem querer e tossir desmesuradamente. Mas a areia não estava mais na sua boca, não havia areia nenhuma. Uma nova sombra surgiu, dessa vez mais grande e menos pontiaguda. Ela ergueu a cabeça e um animal quadrúpede gigantesco a encarava por detrás do focinho preto e úmido. Uma espécie de cachorro gigante com pêlos longos e dourados e dono de uma cauda que desaparecia nos quilômetros do deserto. Friddah não sentiu medo da criatura, pelo contrário, sentiu afeto. Ela conhecia aquele animal de aparência ingênua e afetuosa, conhecia aqueles olhos amendoados e enormes e o arfar da sua boca entreaberta.
Ela o conhecia pois ele era a sua inocência.
O cachorro gigante virou o pescoço como que tentando reconhecer aquela menininha e então descansou as patas traseiras sentando-se obedientemente, causando outra vibração exagerada no solo e impossibilitando Friddah de se levantar novamente. Mas uma segunda presença foi a mais curiosa: a que estava em cima do cachorro, conduzindo-o pelo deserto.
Uma menina, não mais alta que Friddah, de pele absurdamente branca, enevoada, os cílios, as sobrancelhas e os cabelos tão dourados e louros quanto os pêlos do cachorro que agorava olhava para lá e para cá, acompanhando os pássaros azuis que rabiscavam o céu. Seus cabelos se arrastavam na areia enquanto ela caminhava em direção à Friddah desnorteada, e ela usava um vestido branco com saia balonê tão fofa e estufada que tinha-se a impressão de que a menina flutuava a centímetros do chão. Sua aparência era eteréa, não era exatamente uma aparência, era um rosto com olhos, nariz, e uma boca que estava alí porque deveria estar, e não porque a sua criação ou seu desenvolvimento lhe permitiram ter tais feições. No seu peito, bem no meio, um buraco em que se via o horizonte do outro lado do seu corpo. Era um lugar diferente, um pequeno visor de outro lugar, onde via-se a grama verde e espessa, um céu mais azul e menos desbotado que aquele do deserto, uma canção quase sussurrada que saía de lá. O que era aquele mundo dentro daquela menina de branco no meio do nada?
- Mereça. - ela disse, e tinha a mesma voz que Friddah, a mesma tonalidade musical do timbre de Friddah, até a respiração era idêntica.
- O quê? - Friddah só soube perguntar.
A menina, sem mais ter o que falar, fechou os olhos e abriu os braços. O cachorro olhou para ela e não era mais um cachorro, era uma escuridão uniforme como uma nuvem negra que se adensava, se diluía e então se individualizava para se transformar em vários pássaros azuis como aqueles que saíram do horizonte de pano e sombra. Os pássaros, juntos com aqueles que já estavam nos céus, começaram a se reunir e a implodir perto da menina loura. Mas deles não saía sangue ou ossos, saíam borboletas tão exageradamente azuis quanto a forma que outrora foram.
A menina, envolta em borboletas que se multiplicavam a cada segundo, começou a dançar, e dela saíu uma voz doce, longa e acentuada que se mesclava ao ritmo do vento desértico e ao assovio da areia macia, morna e gostosa nos pés. Ela ondulava os braços, esticava os dedos e unia as mãos espalmadas enquanto seus polegares e indicadores se aproximavam, seus quadris se mexiam lentamentes como se ela fosse uma serpente disfarçada de menina, e por um único momento Friddah, curiosa e espectadora, pôde ver seus pés descalços também se esticando num balé secreto oculto na saia inchada do vestido. As milhares de borboletas presentes no ritual daquela dança que necessitava apenas da música da solidão formaram longas asas nas costas da menina, que não voou nem saiu do lugar, mas que propagou uma ventania amedrontadora que fez os panos pálidos do horizonte se agitarem ainda mais, desesperados em afundar o sol e tirá-lo do seu devido lugar.
A menina loura continuou dançando, concentrada, e Friddah, apenas parada e espantada demais para fazer qualquer coisa naquele momento, permaneceu assistindo o ritual. As borboletas então fizeram várias fileiras envolta daquela bruxa sem nome, moldando agora uma bola. A menina dentro da bola. A menina, o universo.
A bruxa loura abriu os olhos, bateu as palmas uma única vez, forte e objetiva, e as borboletas se uniram num único ponto até desse único ponto cair uma máscara de madeira maciça, longa e com um nariz sinuoso, pontiagudo e curvo para baixo.
- Eu sou tua Caixa. Faça-me teu Segredo. - a loura voltou a falar.
- Segredo?
- Eu sou tua Pandora de Alma. Faça-me tua Energia.
Friddah enfim compreendeu, a menina era sua Caixa Pandorífera, aquele era o segredo de ser uma xamã. Compreender sua alma, sua Caixa, sua Energia, usá-la, amá-la, ser sua melhor amiga, e não agir como uma mera bruxa que usa seus poderes sem compreender porque eles existem ou porque eles estão alí, como saem do seu corpo ou como se formam dentro dele.
- A máscara...
- Deusa Terrena. Terás a batalha. Aqui dentro. - a Energia de Friddah apontou para o círculo no seu peito que dava para outro mundo.
- Eu sou tua dona. Guia-me. - Friddah ecoou no deserto.
A Energia pegou a máscara, entregou à Friddah, a abraçou e rodopiou como numa valsa. Friddah pôde ver rapidamente os raios brancos, os panos do horizonte se rasgarem e desaparecerem na ventania que ficava a cada mínimo átimo de pensamento mais forte. O sol apareceu, Friddah fechou os olhos e abraçou mais forte sua Energia.
Ela caiu numa floresta úmida, silenciosa e de árvores completamente púrpuras, em contraste com a terra vermelha. Levantou, ouviu um rosnado e começou a correr, com a máscara de madeira sobre os seios e pressionados pelos braços numa total dedicação de não esquecê-la.
A terra vermelha ardia e a cada passo parecia queimar. Ela continuou correndo, as árvores exacerbadamente púrpuras começaram a cair por onde ela passava, como que perseguindo-a. Ao seu redor, os galhos secos se transformaram em serpentes de três cabeças e dentes tão longos que ficavam para fora das mandíbulas escancaradas, pingando veneno. Friddah olhou rapidamente para cima e as folhas roxas que caíam não eram exatamente folhas, eram criaturas largas e afiadas que a qualquer toque poderiam cortar a sua pele mortal e cirurgicamente. Duas serpentes se enroscaram nas suas pernas, ela caiu e bateu a cabeça num tronco, mas sem deixar de segurar a máscara com dedicação e teimosia.
- Me devolva! Tu não a merece!
Uma mulher com mais de dois metros, cabelos negros e salpicados, e um vestido negro com mangas que formavam asas e uma saia que saía do céu num funil negro, denso e gélido surgiu na frente da machucada menina, oferecendo a mão espalmada. Sua expressão era de total fúria e aversão à criatura a sua frente.
- Vamos!
Friddah se lembrou das palavras de Amanara, fortes, presentes, inesquecíveis na sua memória, há exatos treze dias quando ela foi adotada pela xamã para aprender seus ensinamentos ancestrais. "Nunca magoe um Deus Terreno. Deixe que ele lhe diga suas palavras, que conte sua história, que mostre sua tristeza."
- Krishna, eu lhe conheço. Essa não é tu. E tu não conseguirás me assustar mesclando a imagem das minhas duas mães neste corpo.
Krishna franziu o cenho, como que horrorizada com o conhecimento de Friddah, então a forma de mulher gigante se dissipou e uma tigresa branca com raios negros e belos na pele surgiu e rugiu para o céu e talvez para si mesma.
Krishna descansou as patas traseiras, e depois as dianteiras, deixando o focinho cabisbaixo e os olhos entristecidos, etéreos na sua magnitude. Ela estava chorando.
Friddah se aproximou devagar, mas percebendo que a deusa a estava permitindo ficar perto dela, correu e a abraçou pelo pescoço, como as crianças costumam fazer. A máscara ficou alí mesmo, perto do tronco, na terra vermelha.
- Não sei, Friddah. Tenho medo. - foi a única coisa que ela disse. Numa voz constante, baixa e aflita.
- Deixa-me, Krishna. Permita-me. Tu amas o meu sangue e me amas também. Eu sei disso. Tu sabes disso. E nós deveríamos nos unir.
Krishna levantou a cabeça enorme e olhou direto nos olhos da menina. Friddah manteve o olhar, destemida e inexorável. Não piscou, não tremeu, e o seu coração tampouco bateu mais forte. Porque ela confiava em Krishna.
- Está bem. Agora afasta-te de mim. Serei fogo.
Friddah se afastou, pegou a máscara de madeira e a agarrou com força. Krishna ergueu as patas grossas e colossas e rugiu mais uma vez, e a parte escura dos seus pêlos se tornaram um fogo azul que começou a se alastrar por toda a floresta. Friddah se sentiu sem ar, e depois suspensa por mãos enormes e frias. A máscara saiu do seu domínio e flutuou até o seu rosto, com apenas um único objetivo.
O fogo de Krishna começou a consumir o vestido de Friddah, e logo depois a pele nua de Friddah e os seus cabelos que desapareceram em instantes nas labaredas. Ela estava morrendo, e aquilo era horrível. Mas não era a dor que todos diziam ser. Não era a culpa que todos diziam esperar. Era a morte para um novo ciclo. E Friddah morreu para surgir no mesmo lugar em instantes, nua e com os cabelos negros e lustrosos maiores que antes, dessa vez com o fogo dentro dela, com a máscara e lhe emoldurar o rosto, com Krishna no sua cerne, na sua Energia, no seu coração.
Um pássaro chilreou no silêncio do crepúsculo e ela despertou. Estava com o mesmo vestido preto de antes, a mesma sapatilha e o mesmo cabelo. Mas estava segurando uma máscara de madeira com o nariz curvo e tão polida que parecia ser nova. Onde estava a tristeza que a consumia pela mãe de sangue e pela mãe de criação? A tristeza que a deixava desconcentrada e com a aparência abatida? Ela tocou na pele dos seus braços, tocou no seu rosto e acariciou suas pálpebras, de alguma forma tudo parecia ser tão novo, tão mais vital e poderoso que ela chegou a sentir um pequeno medo de destruir qualquer coisa que tocasse a partir de então.
Amanara surgiu, pela primeira vez carinhosa, pela primeira vez materna, pela primeira vez frágil e emocionada, com as lágrimas cintiladas pelos últimos raios que o sol anunciava. Onde estava aquela mulher ruiva impiedosa e carrancuda que ela conhecera alguns dias atrás?
- Conseguiste. Friddah! Conseguiste! - E a puxou para um desconfortável abraço. - Venha, eu lhe preparei uma comida especial para comemorar. Uma receita de ensopado que roubei certa vez de uma bruxa distraída. - E ela deu uma risada gostosa. Friddah teve a sensação de que Amanara estava assim porque, de alguma forma, sua missão em guiá-la estava cumprida. Mas havia alguma coisa de errada, algum sentimento coberto, forçadamente escondido.
- Mestra Amanara...
- Sim...
- A senhora está bem?
- Se estou bem? Claro que estou bem! Olha para ti! Tão nova e já és tão poderosa! Imagino teu futuro, teu destino. Estou ótima porque...
Friddah segurou sua mão calejada, cheia de veias e de histórias para contar.
- Pode confiar em mim. - ela sentiu o fogo de Krishna em cada artéria do seu corpo, pulsando como um grande órgão de energia. E Amanara, poderosa como era, sentiu também.
A velha ruiva a olhou com espanto, o mesmo espanto que Krishna expressara quando seu disfarce fora descoberto. Então ninguém conseguia esconder nada de Friddah?
- Friddah, não quero preocupá-la agora. Esse é um dia tão especial para ti...
- Já disse. Confie em mim.
Amanara tossiu levemente, enfiou a mão no xale marrom-escuro e tirou de lá um papel perfeitamente dobrado.
- Tive um sonho, e depois me veio esse poema.
- Posso ler?
Ela lhe olhou com uma certa apreensão, mas então entregou o papel à menina. Friddah desdobrou cuidadosamente e começou a ler:
"Eis aqui minha pequena cria
O fruto daqueles que ainda proclamarão
E sobre as divindidades presas, reinará
Não esqueçamos dos seis, meros profetas
Não desfrutais se não conheces
A dor é maior
Quando o seio é da mãe.
As três pontas fechar-se-ão
Para o mundo que as chama
E o suspenso firmamento
Poderá despencar sobre o rebanho dos negregados.
A primeira, os dois amantes
A segunda, os falsos-homens
E a terceira, os mais colossais
Os cadeados são de ouro, mas seus núcleos, de cristal.
E através de toda a insegurança
Um muro de mulheres celestiais erguerão sua fúria
E sua traição
Os pulmões da Escura, arranquem os pulmões da Escura
Antes que ela arranque os seus
E os do mundo inteiro."
- Mestra Amanara...
- Eu consultei os espíritos, consultei os demônios, consultei ousadamente até mesmo um Deus Terreno...
Amanara enfim mostrou sua verdadeira expressão: a de preocupação mesclada ao medo. Friddah sentou-se ao seu lado na mesinha redonda na cozinha pequena.
- Não entendo, mestra Amanara.
- Eu também não. Pela primeira vez na minha vida, escrevi uma profecia em que não compreendo absolutamente nada do que diz.
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1680
- Virás comigo. - Ammaleth ordenou.
- O quê? Não! Claro que não! Minha missão faliu, não moverei mais um dedo sequer! - rosnou Friddah, já virando as costas para ir embora.
Ammaleth ergueu o braço e Friddah paralisou os passos.
- Primeiro: a culpa disso tudo é tua. Segundo: Louvier já deveria ter sido salvo, mas agora foi levado para a dimensão de Sorath, e eu não sei como abrir portais. Terceiro: agora é tua obrigação me ajudar a salvar o irmão do meu marido daquele lugar.
As pernas de Friddah voltaram a se mover, ela retornou de onde estivera e deu um tabefe sonoro em Ammaleth.
- Não recebo ordens de uma bruxa qualquer. Tampouco de uma Clara como tu.
Ammaleth sentiu-se impotente, ela sabia que não deveria lutar pois Friddah era obviamente mais poderosa que ela. Deixou-se cair na grama e descansou as mãos sobre o colo, Auguste sentou-se ao seu lado para lhe acarinhar e consolar, mas ela parecia tão fria e rígida enquanto a penumbra de Friddah desaparecia entre as árvores.
- Auguste, não sei quanto tempo vai levar, mas vou fazer o possível e o impossível para conseguir abrir esse portal...
- Meu amor... - Foi tudo o que Auguste conseguiu dizer antes de beijá-la na cabeça e deixá-la descansar o rosto no seu ombro macio e forte.
Uma vibração ecoou da floresta atrás da casa, os dois se levantaram rapidamente para estarem preparados para o que quer que chegasse. E foi Friddah novamente, vindo num voo que a fez capotar, rodopiar e se estatelar no chão como um verdadeiro pião humano. E em seguida, Carlotta caminhando calma e destemida na sua altivez, no seu olhar de fúria se sobressaindo dos cabelos emaranhados e as mãos banhadas de sangue seco.
Friddah, após se recuperar e se erguer zonza do chão, a olhou com furioso desdém, mas antes que pudesse falar qualquer coisa, a voz de Carlotta soou alta e clara:
- É aí que te enganas, irmã querida. Receberás sim, as ordens de uma bruxa qualquer.
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Black Cherry
Arte: Nicole Absher