1663
O chiado da cachoeira lhe despertou com carinho. Friddah adormecera numa rocha atrás dela. A manhã estava morna e saudável, e as gotículas de água nas folhas refletidas ao sol produziam um ou outro arco-íris minúsculo de lá para cá. A névoa se dissipava com o calor, e os pequenos animais roedores trabalhavam com afinco, em ruídos e barulhos com os dentinhos numa forma íntima de comunicação. Os pássaros chilreavam incansavelmente e o aroma da mais pura terra flutuava acima da água gelada e transparente. O cheiro de grama molhada se desfiava nas árvores e folhas pesadas com gotículas de um chuvisco noturno onde insetos bebiam e usavam para tecer suas microscópicas moradias e se locomover, pular, afundar-se naquele alimento infinito que a natureza proporcionava.
Uma leve agitação entre algumas moitas chamou a atenção da menina, revelando-se ser um antílope despreocupado e indiferente, era másculo e seus chifres reluziam um estranho brilho nos raios matutinos que adentravam entre os galhos e casamentos de copas nos céus. Sua presença emanava algo muito mais que primitivo ou espiritual, era quase como se ela tecesse a tranquilidade, a paz, o equilíbrio mais perfeito de cada ser vivo naquela floresta que respirava como um único ser. De repente a vida lhe pareceu tão bela, uma borboleta azul capturada entre as mãos curiosas, cuidadosas, cheias de poder.
E a coisa mais estranha apareceu.
Um homem alto, ou talvez fosse uma mulher, pois era difícil distinguir no momento, surgiu ao lado do antílope e lhe sussurrou perto das orelhas, o antílope cedeu as patas e a criatura pulou em cima dele com agilidade natural. Usava uma longa máscara de pérolas, com um queixo redondo e contas de miçangas escuras suspensas em fios ao redor e embaixo do exótico objeto, seus cabelos eram um misto de cinza e ruivo avermelhado, fez um movimento rápido de mãos, e novamente, até aquela apresentação se tornar uma espécie de dança, ode à natureza ao seu redor. A criatura assoviou, estralou a língua repetidamente e cantou num agudo prolongado, e sua voz permeou sem pausas por mais de vinte minutos, ou talvez fosse o eco nos troncos ocos, mas o que tudo aquilo significava?
Era uma mulher. Ela tirou a máscara e cheirou o ar, pulou do antílope e continuou seduzida pelas mãos invisíveis dos aromas e odores, as sensações mais leves na pele pálida. Suas mãos pareciam mais velhas do que o que o rosto mostrava. Em alguns momentos parecia um homem, com o nariz meio torto e a maxilar ressaltada, em outros, quando se distraía e sorria com o chilrear dos pássaros, era como a mais bela e doce criatura feminina e frágil. Apesar de que a fragilidade estivesse bem distante de um ser daqueles. O que ela era? Parecia tão cheia de sensibilidades e, no entanto, emanava uma espécie de poder perigoso, como se o ar se comprimisse ao seu redor e formasse trepadeiras cheias de espinhos venenosos e invisíveis. Talvez fosse exatamente isso, o que mais poderia ser?
- Quem és tu que invade meu ar? – sua voz se propagou até se colidir com a rocha em que Friddah estava sentada, atrás da cachoeira segura onde dormira.
Sem opções, a menina saiu do seu discreto esconderijo e se apresentou de cabeça baixa. A mulher se aproximou, cheirou o ar novamente para ter certeza de algum instinto secreto, e então arregalou os olhos de forma grotesca, embora sua pele de mármore desse a impressão de que era impossível tal feito.
- Poderosa demais para uma bruxa, é o que tu és! – e apontou um longo e ossudo dedo.
- Não sei se sou poderosa, sinto medo o tempo inteiro...
- Como ousas? E eu sinto o cheiro de Krishna em ti!
- Quem é a senhora?
- Amanara Legda.
- Como a senhora sabe que sou uma bruxa? A senhora também é?
- Bruxa? Hahahaha! Não, não! Minha mãe era bruxa, minha avó era bruxa, e minhas irmãs também. Não sou uma bruxa.
- E o que aconteceu com elas?
- Foram mortas. Mortas na minha frente. Minha vila era cruel, muito cruel! E minha irmã caçula era ingênua, burra! Ela achava que Cristo poderia tirar sua herança de bruxa! Veja só! Como se tirar o sangue fosse mudar o que ela fora destinada a ser, o que as estrelas escreveram durante séculos para ela!
- Eu não estou entendendo...
- Veja bem, ela confessou para o padre que sua família era um clã de bruxas! Neste dia eu estava aprendendo os mistérios da necromancia com minha adorável mãe, e então entraram homens e mais homens na nossa humilde residência. Humilharam minhas tias, desonraram minhas primas, e queimaram todas, uma por uma, numa grande fogueira no centro da vila! Escarneceram delas, riram, atiraram pedras, enquanto o sangue de Eva escorria entre suas coxas, borbulhava no fogo, e seus longos cabelos castanhos desapareciam, e por mais que os espíritos chorassem, o clã de minha família foi extinto. Só restaram minha mãe e eu, mas uma tinha que morrer para a outra conseguir escapar viva. Minha mãe se fez mártir, doou seus poderes para mim, seduziu os homens e os distraiu enquanto eu fugia pela porta dos fundos, enquanto eu era engolida pelas árvores da Floresta da Mandrágora, enquanto meu coração se despedaçava ao longe, assistindo minha casa ruindo com o fogo atroz! Humanos, quem precisa deles a não ser para a dor?
Friddah sentiu que todas as palavras lhe escaparam dos pensamentos.
- Não se sinta, já não sinto mais a dor. Uma hora temos que aprender a conviver com a cruz que carregamos, não foi isso que Cristo, o Senhor dos humanos, ensinou?
- Se a senhora descende de bruxas, mas não se considera uma, o que és então?
- Sou uma xamã. É o que uma bruxa se torna quando tem o sangue de um clã inteiro a honrar, ou quando é deserdada...
- Minha mãe me disse que xamãs não podem ter ligações ou pactos com demônios e deuses terrenos.
- Depois de algum tempo, o poder de uma xamã se equivale a de um deus terreno ou de um demônio, por isso não há ligações ou pactos conosco.
- Por que se tornam tão poderosas?
- Porque não temos o amor para nos guiar da forma certa. Tivemos nossa mãe por pouco tempo. E só nos resta aperfeiçoarmos nossas forças ao único lar que possuímos.
- Eu também não tenho mais minha mãe, nem uma casa para morar.
Friddah olhou para as sapatilhas pretas esfoladas, com tudo que passou, havia esquecido que ainda estava triste.
- Eu não sei o que fazer. Minha mãe me deserdou, minha outra mãe achava que eu era um anjo, então decidi entrar na Floresta da Mandrágora, senti que lá poderia ter alguma resposta, mas tudo o que aconteceu foi uma perseguição por parte de um Demônio do Sol e eu... Estou sem nada agora.
- O nada? Por que o nada se podes ter uma deusa aos teus pés, pequena bruxa?
Friddah levantou os olhos úmidos, cintilantes, tão esmeraldinos que com uma simples distração o maior dos ladrões poderia raptá-los no mesmo instante.
- Por que não vens comigo? Posso lhe ensinar as artes do xamanismo, posso lhe mostrar que a vida não é feita de sentimentos vazios, torpes e ruins, posso lhe assegurar os caminhos para a maior das técnicas da bruxaria. E em troca de tudo isso, quero apenas a tua companhia. As xamãs são tão amigas da solidão que acabam se esquecendo de que há companhias melhores. Então por que não nos ajudamos, neste teu sentimento profundo de que não há mais nada para ver ou sentir?
~
1323
Ele era robusto, tinha a voz grossa e o corpo bem desenvolvido, mas era gentil, solidário e compreensivo, como uma verdadeira criança num corpo de homem feito. Segurou a mão fina e pálida de Inanna com carinho, e então a beijou, com as narinas sendo invadidas rapidamente pelo seu cheiro de leite de rosas, ou talvez fossem aquelas orquídeas que ela adorava regar.
- Tu tens os mais belos olhos que os meus olhos já vislumbraram, Inanna Inasumi.
Inanna lhe levou ao seu jardim particular, que ficava atrás da casa de sua mãe, perto de algumas colinas marejadas de margaridas e onde o sol era sempre constante, raramente havia a noite, raramente havia a tristeza. Ela lhe contou das suas cinco irmãs, duas enterradas no quintal, duas que nasceram mortas, e a viva como ela era a mais velha. Ele lhe respondeu que era de um reino onde a noite se fazia mais do que o dia, que ele amava o sol e as flores que se assemelhassem a ele, e que aquela sua terra, aquele manto longo, esticado e calmo de pequenas bruxas princesas e homens vaidosos era de uma ínfima e chamuscada beleza, mas ainda assim, não ganhavam os seus olhos.
Foi então que Inanna conheceu o destino.
Não o destino que ela costumava ver em sonhos, quando lavava as estrelas, secava-as sobre a ventania dos seus feitiços mais simples - aqueles que saíam da sua varinha sem ela fazer o mínimo esforço - e então contava quantas eram. E dependendo da contagem, dependendo do tempo que passava em cada sonho e o quanto qual estrela cintilava na palma de suas mãos, ela poderia dizer o futuro, o destino, e até mesmo o passado, com precisão. E foi esse seu dom que atraiu vários principados e reis para decidir o futuro dos seres humanos em questão, pois vestígios de uma guerra sem sentido ainda ecoavam na mente daqueles que lamentavam os mortos, os assassinados, os senis e débeis que diziam ter visto anjos, demônios e deuses em gladiadora batalha em florestas e céus e mares. E já haviam se passado séculos desde então.
Nessa época, as Bruxas Escuras sofriam humilhações e repressões extremas por parte das Bruxas Claras, que comumente passaram a acusá-las das piores maldições, de serem cataclísmicas da morte, de serem o mau cheiro, a podridão, o escuro e o mal. As Bruxas Escuras abaixavam a cabeça e apenas permaneciam caladas, pois a verdade é que elas haviam sofrido mais perdas na Guerra das Dimensões do que As Bruxas Claras sequer imaginassem. Mas ainda assim, eram mais poderosas em prever o futuro do que suas adversárias. As Bruxas Claras, com rancor e inveja, passaram a se infiltrar nas igrejas católicas, aprendendo as artes de se tornar uma freira ou uma “criatura de Deus” – como os humanos chamavam –, e a partir de então a Caça Às Bruxas se iniciou, devido à influência de Bruxas Claras na mente dos homens supersticiosos. Amarguradas, boa parte das famílias de Bruxas Escuras passaram a morar nas florestas, atrás das montanhas ou até mesmo em dimensões diferentes, como o caso da família de Inanna, que se mudou para um lugar etéreo de uma brisa úmida e gélida onde quase nunca havia a noite, e se havia, era sempre acompanhada de uma aurora boreal que mais parecia um conjunto de todos os arco-íris que o universo pudesse criar. A fazenda era composta de antílopes gigantes, Lordes Leões – leões que podiam falar e eram possuidores de três pares de patas, além de terem os pêlos mais reluzentes e dourados de que um leão comum da Terra – e espreitada por unicórnios, criaturas furiosas que tinham os chifres banhados em ouro, moravam em florestas prateadas de flores exóticas e nervosas, e costumavam atacar as moradas das famílias de Bruxas Escuras que haviam se mudado para lá há mais de trezentos e trinta anos, quando estas se esqueciam de realizar feitiços de proteção.
Aquele jovem príncipe, Saroth era o seu nome, passou a ir à mansão Inasumi mais e mais vezes, encantado com a beleza pueril e a empolgação cega de Inanna. Seu irmão gêmeo, Sorath, ansiava por se tornar um demônio, ele dizia que ter chifres e reinos era algo mais poderoso do que ser apenas o coadjuvante de um rei ambicioso e risonho, no caso, o seu pai. Saroth pouco ou nada ligava para ambições, ele gostava da poesia, das artes, das tintas em forma nos quadros mais grandes, do conhecimento das flores e plantas, e do dom natural das Bruxas Escuras.
- No lugar onde moro, onde quase sempre é noite, existem algumas mulheres que se designam bruxas. Elas leem nossos pensamentos e por isso sabem nossas fraquezas, usam desta artimanha para nos seduzir, e então roubam do nosso sêmen em uma pequena cúpula de cristal cravejado com um mínimo diamante para nos deixar presos a elas pela eternidade. Conheces esse feitiço, Inanna? – ele lhe perguntou enquanto caminhavam por um campo de petúnias coloridas e dentes-de-leão azulados, enrolando uma mecha do cabelo liso da menina num dedo indicador.
- Não, não faz parte dos ensinamentos de minha família, Saroth.
- Mas tu não és bruxa também?
- Nenhuma bruxa é igual. As bruxas do teu reino devem ter feitiços e forças diferentes das que tenho, e que desconheço.
Um antílope gigante vibrou a terra e passou galopando pelo horizonte que Saroth e Inanna fitavam, em cima dele, sua irmã mais velha Hecate gargalhando triunfante e divertida, ela era tão ou mais linda que Inanna, e seus longos cabelos negros e lisos ofuscavam ao sol ao mesmo tempo em que ondeavam ao vento. Uma imagem mais adulta, curvilínea e voluptuosa da irmã mais nova. Para surpresa de Saroth, seu irmão gêmeo Sorath também estava lá. Ele ajudou Hecate a descer do enorme antílope enfeitiçado, beijou sua mão como Saroth havia beijado a de Inanna alguns dias atrás, e se abraçaram acaloradamente. Inanna enrubesceu e abaixou a cabeça, logo erguida por Saroth que segurou seu queixo, sério, com a boca entreaberta, os cílios suspensos no mais absoluto olhar de prazer, paixão e desejo, algo que nem o maior dos feitiços pudesse distinguir o tamanho de tal força.
~
Black Cherry
O chiado da cachoeira lhe despertou com carinho. Friddah adormecera numa rocha atrás dela. A manhã estava morna e saudável, e as gotículas de água nas folhas refletidas ao sol produziam um ou outro arco-íris minúsculo de lá para cá. A névoa se dissipava com o calor, e os pequenos animais roedores trabalhavam com afinco, em ruídos e barulhos com os dentinhos numa forma íntima de comunicação. Os pássaros chilreavam incansavelmente e o aroma da mais pura terra flutuava acima da água gelada e transparente. O cheiro de grama molhada se desfiava nas árvores e folhas pesadas com gotículas de um chuvisco noturno onde insetos bebiam e usavam para tecer suas microscópicas moradias e se locomover, pular, afundar-se naquele alimento infinito que a natureza proporcionava.
Uma leve agitação entre algumas moitas chamou a atenção da menina, revelando-se ser um antílope despreocupado e indiferente, era másculo e seus chifres reluziam um estranho brilho nos raios matutinos que adentravam entre os galhos e casamentos de copas nos céus. Sua presença emanava algo muito mais que primitivo ou espiritual, era quase como se ela tecesse a tranquilidade, a paz, o equilíbrio mais perfeito de cada ser vivo naquela floresta que respirava como um único ser. De repente a vida lhe pareceu tão bela, uma borboleta azul capturada entre as mãos curiosas, cuidadosas, cheias de poder.
E a coisa mais estranha apareceu.
Um homem alto, ou talvez fosse uma mulher, pois era difícil distinguir no momento, surgiu ao lado do antílope e lhe sussurrou perto das orelhas, o antílope cedeu as patas e a criatura pulou em cima dele com agilidade natural. Usava uma longa máscara de pérolas, com um queixo redondo e contas de miçangas escuras suspensas em fios ao redor e embaixo do exótico objeto, seus cabelos eram um misto de cinza e ruivo avermelhado, fez um movimento rápido de mãos, e novamente, até aquela apresentação se tornar uma espécie de dança, ode à natureza ao seu redor. A criatura assoviou, estralou a língua repetidamente e cantou num agudo prolongado, e sua voz permeou sem pausas por mais de vinte minutos, ou talvez fosse o eco nos troncos ocos, mas o que tudo aquilo significava?
Era uma mulher. Ela tirou a máscara e cheirou o ar, pulou do antílope e continuou seduzida pelas mãos invisíveis dos aromas e odores, as sensações mais leves na pele pálida. Suas mãos pareciam mais velhas do que o que o rosto mostrava. Em alguns momentos parecia um homem, com o nariz meio torto e a maxilar ressaltada, em outros, quando se distraía e sorria com o chilrear dos pássaros, era como a mais bela e doce criatura feminina e frágil. Apesar de que a fragilidade estivesse bem distante de um ser daqueles. O que ela era? Parecia tão cheia de sensibilidades e, no entanto, emanava uma espécie de poder perigoso, como se o ar se comprimisse ao seu redor e formasse trepadeiras cheias de espinhos venenosos e invisíveis. Talvez fosse exatamente isso, o que mais poderia ser?
- Quem és tu que invade meu ar? – sua voz se propagou até se colidir com a rocha em que Friddah estava sentada, atrás da cachoeira segura onde dormira.
Sem opções, a menina saiu do seu discreto esconderijo e se apresentou de cabeça baixa. A mulher se aproximou, cheirou o ar novamente para ter certeza de algum instinto secreto, e então arregalou os olhos de forma grotesca, embora sua pele de mármore desse a impressão de que era impossível tal feito.
- Poderosa demais para uma bruxa, é o que tu és! – e apontou um longo e ossudo dedo.
- Não sei se sou poderosa, sinto medo o tempo inteiro...
- Como ousas? E eu sinto o cheiro de Krishna em ti!
- Quem é a senhora?
- Amanara Legda.
- Como a senhora sabe que sou uma bruxa? A senhora também é?
- Bruxa? Hahahaha! Não, não! Minha mãe era bruxa, minha avó era bruxa, e minhas irmãs também. Não sou uma bruxa.
- E o que aconteceu com elas?
- Foram mortas. Mortas na minha frente. Minha vila era cruel, muito cruel! E minha irmã caçula era ingênua, burra! Ela achava que Cristo poderia tirar sua herança de bruxa! Veja só! Como se tirar o sangue fosse mudar o que ela fora destinada a ser, o que as estrelas escreveram durante séculos para ela!
- Eu não estou entendendo...
- Veja bem, ela confessou para o padre que sua família era um clã de bruxas! Neste dia eu estava aprendendo os mistérios da necromancia com minha adorável mãe, e então entraram homens e mais homens na nossa humilde residência. Humilharam minhas tias, desonraram minhas primas, e queimaram todas, uma por uma, numa grande fogueira no centro da vila! Escarneceram delas, riram, atiraram pedras, enquanto o sangue de Eva escorria entre suas coxas, borbulhava no fogo, e seus longos cabelos castanhos desapareciam, e por mais que os espíritos chorassem, o clã de minha família foi extinto. Só restaram minha mãe e eu, mas uma tinha que morrer para a outra conseguir escapar viva. Minha mãe se fez mártir, doou seus poderes para mim, seduziu os homens e os distraiu enquanto eu fugia pela porta dos fundos, enquanto eu era engolida pelas árvores da Floresta da Mandrágora, enquanto meu coração se despedaçava ao longe, assistindo minha casa ruindo com o fogo atroz! Humanos, quem precisa deles a não ser para a dor?
Friddah sentiu que todas as palavras lhe escaparam dos pensamentos.
- Não se sinta, já não sinto mais a dor. Uma hora temos que aprender a conviver com a cruz que carregamos, não foi isso que Cristo, o Senhor dos humanos, ensinou?
- Se a senhora descende de bruxas, mas não se considera uma, o que és então?
- Sou uma xamã. É o que uma bruxa se torna quando tem o sangue de um clã inteiro a honrar, ou quando é deserdada...
- Minha mãe me disse que xamãs não podem ter ligações ou pactos com demônios e deuses terrenos.
- Depois de algum tempo, o poder de uma xamã se equivale a de um deus terreno ou de um demônio, por isso não há ligações ou pactos conosco.
- Por que se tornam tão poderosas?
- Porque não temos o amor para nos guiar da forma certa. Tivemos nossa mãe por pouco tempo. E só nos resta aperfeiçoarmos nossas forças ao único lar que possuímos.
- Eu também não tenho mais minha mãe, nem uma casa para morar.
Friddah olhou para as sapatilhas pretas esfoladas, com tudo que passou, havia esquecido que ainda estava triste.
- Eu não sei o que fazer. Minha mãe me deserdou, minha outra mãe achava que eu era um anjo, então decidi entrar na Floresta da Mandrágora, senti que lá poderia ter alguma resposta, mas tudo o que aconteceu foi uma perseguição por parte de um Demônio do Sol e eu... Estou sem nada agora.
- O nada? Por que o nada se podes ter uma deusa aos teus pés, pequena bruxa?
Friddah levantou os olhos úmidos, cintilantes, tão esmeraldinos que com uma simples distração o maior dos ladrões poderia raptá-los no mesmo instante.
- Por que não vens comigo? Posso lhe ensinar as artes do xamanismo, posso lhe mostrar que a vida não é feita de sentimentos vazios, torpes e ruins, posso lhe assegurar os caminhos para a maior das técnicas da bruxaria. E em troca de tudo isso, quero apenas a tua companhia. As xamãs são tão amigas da solidão que acabam se esquecendo de que há companhias melhores. Então por que não nos ajudamos, neste teu sentimento profundo de que não há mais nada para ver ou sentir?
~
1323
Ele era robusto, tinha a voz grossa e o corpo bem desenvolvido, mas era gentil, solidário e compreensivo, como uma verdadeira criança num corpo de homem feito. Segurou a mão fina e pálida de Inanna com carinho, e então a beijou, com as narinas sendo invadidas rapidamente pelo seu cheiro de leite de rosas, ou talvez fossem aquelas orquídeas que ela adorava regar.
- Tu tens os mais belos olhos que os meus olhos já vislumbraram, Inanna Inasumi.
Inanna lhe levou ao seu jardim particular, que ficava atrás da casa de sua mãe, perto de algumas colinas marejadas de margaridas e onde o sol era sempre constante, raramente havia a noite, raramente havia a tristeza. Ela lhe contou das suas cinco irmãs, duas enterradas no quintal, duas que nasceram mortas, e a viva como ela era a mais velha. Ele lhe respondeu que era de um reino onde a noite se fazia mais do que o dia, que ele amava o sol e as flores que se assemelhassem a ele, e que aquela sua terra, aquele manto longo, esticado e calmo de pequenas bruxas princesas e homens vaidosos era de uma ínfima e chamuscada beleza, mas ainda assim, não ganhavam os seus olhos.
Foi então que Inanna conheceu o destino.
Não o destino que ela costumava ver em sonhos, quando lavava as estrelas, secava-as sobre a ventania dos seus feitiços mais simples - aqueles que saíam da sua varinha sem ela fazer o mínimo esforço - e então contava quantas eram. E dependendo da contagem, dependendo do tempo que passava em cada sonho e o quanto qual estrela cintilava na palma de suas mãos, ela poderia dizer o futuro, o destino, e até mesmo o passado, com precisão. E foi esse seu dom que atraiu vários principados e reis para decidir o futuro dos seres humanos em questão, pois vestígios de uma guerra sem sentido ainda ecoavam na mente daqueles que lamentavam os mortos, os assassinados, os senis e débeis que diziam ter visto anjos, demônios e deuses em gladiadora batalha em florestas e céus e mares. E já haviam se passado séculos desde então.
Nessa época, as Bruxas Escuras sofriam humilhações e repressões extremas por parte das Bruxas Claras, que comumente passaram a acusá-las das piores maldições, de serem cataclísmicas da morte, de serem o mau cheiro, a podridão, o escuro e o mal. As Bruxas Escuras abaixavam a cabeça e apenas permaneciam caladas, pois a verdade é que elas haviam sofrido mais perdas na Guerra das Dimensões do que As Bruxas Claras sequer imaginassem. Mas ainda assim, eram mais poderosas em prever o futuro do que suas adversárias. As Bruxas Claras, com rancor e inveja, passaram a se infiltrar nas igrejas católicas, aprendendo as artes de se tornar uma freira ou uma “criatura de Deus” – como os humanos chamavam –, e a partir de então a Caça Às Bruxas se iniciou, devido à influência de Bruxas Claras na mente dos homens supersticiosos. Amarguradas, boa parte das famílias de Bruxas Escuras passaram a morar nas florestas, atrás das montanhas ou até mesmo em dimensões diferentes, como o caso da família de Inanna, que se mudou para um lugar etéreo de uma brisa úmida e gélida onde quase nunca havia a noite, e se havia, era sempre acompanhada de uma aurora boreal que mais parecia um conjunto de todos os arco-íris que o universo pudesse criar. A fazenda era composta de antílopes gigantes, Lordes Leões – leões que podiam falar e eram possuidores de três pares de patas, além de terem os pêlos mais reluzentes e dourados de que um leão comum da Terra – e espreitada por unicórnios, criaturas furiosas que tinham os chifres banhados em ouro, moravam em florestas prateadas de flores exóticas e nervosas, e costumavam atacar as moradas das famílias de Bruxas Escuras que haviam se mudado para lá há mais de trezentos e trinta anos, quando estas se esqueciam de realizar feitiços de proteção.
Aquele jovem príncipe, Saroth era o seu nome, passou a ir à mansão Inasumi mais e mais vezes, encantado com a beleza pueril e a empolgação cega de Inanna. Seu irmão gêmeo, Sorath, ansiava por se tornar um demônio, ele dizia que ter chifres e reinos era algo mais poderoso do que ser apenas o coadjuvante de um rei ambicioso e risonho, no caso, o seu pai. Saroth pouco ou nada ligava para ambições, ele gostava da poesia, das artes, das tintas em forma nos quadros mais grandes, do conhecimento das flores e plantas, e do dom natural das Bruxas Escuras.
- No lugar onde moro, onde quase sempre é noite, existem algumas mulheres que se designam bruxas. Elas leem nossos pensamentos e por isso sabem nossas fraquezas, usam desta artimanha para nos seduzir, e então roubam do nosso sêmen em uma pequena cúpula de cristal cravejado com um mínimo diamante para nos deixar presos a elas pela eternidade. Conheces esse feitiço, Inanna? – ele lhe perguntou enquanto caminhavam por um campo de petúnias coloridas e dentes-de-leão azulados, enrolando uma mecha do cabelo liso da menina num dedo indicador.
- Não, não faz parte dos ensinamentos de minha família, Saroth.
- Mas tu não és bruxa também?
- Nenhuma bruxa é igual. As bruxas do teu reino devem ter feitiços e forças diferentes das que tenho, e que desconheço.
Um antílope gigante vibrou a terra e passou galopando pelo horizonte que Saroth e Inanna fitavam, em cima dele, sua irmã mais velha Hecate gargalhando triunfante e divertida, ela era tão ou mais linda que Inanna, e seus longos cabelos negros e lisos ofuscavam ao sol ao mesmo tempo em que ondeavam ao vento. Uma imagem mais adulta, curvilínea e voluptuosa da irmã mais nova. Para surpresa de Saroth, seu irmão gêmeo Sorath também estava lá. Ele ajudou Hecate a descer do enorme antílope enfeitiçado, beijou sua mão como Saroth havia beijado a de Inanna alguns dias atrás, e se abraçaram acaloradamente. Inanna enrubesceu e abaixou a cabeça, logo erguida por Saroth que segurou seu queixo, sério, com a boca entreaberta, os cílios suspensos no mais absoluto olhar de prazer, paixão e desejo, algo que nem o maior dos feitiços pudesse distinguir o tamanho de tal força.
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Black Cherry
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