Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 17 de julho de 2011

The Birds - Último Capítulo


- E se as luzes se apagarem de novo? – Rhett estava trêmulo.
- Precisamos tentar, Rhett. – Angelina, sempre segurando sua mão.
- Façam silêncio. – Madalena pediu.
- Aletheia, você se lembra de onde veio? – Scarlett perguntou.
- Não, por aqui é sempre tudo igual. Mas...
Todos olharam com expectativa.
- Vamos por aqui. – A menina disse, e então curvou-se para um outro corredor.
O caminho parecia sempre ser infinito, mas o grupo estava desesperado demais para pensar nisso e sua única esperança era a menina com o estranho nome de Aletheia. Aletheia correu pelo corredor e então dobrou de novo, o grupo a acompanhava com urgência no olhar, inclusive Scarlett.
Aletheia parou, meio assustada meio ansiosa, e então abriu uma porta.
~
Aletheia olhou para a irmã mais velha. Adolescente, estragada, grávida, e fumando um irritante cigarro. A irmã correspondeu o olhar com excelente desprezo, e então se levantou para jogar o cigarro na janela. O pai chegou imundo, e foi logo tirando o cinto para penetrar na irmã, que não demorou a tirar a calcinha e abrir as pernas, sem expressar um mínimo gemido. Ela não podia. Se gemesse, levaria uma longa surra. Aletheia nunca entendeu aquilo, o que eram aqueles olhares e aqueles atos, mas sentia que não eram bons. Pra dizer a verdade, ela nunca soube como era se sentir bem.
A mãe saiu da cozinha e disse que o jantar estava pronto, um sorriso que não enganaria ninguém, os olhos amargos. A irmã mais velha foi tomar banho, o pai foi arrotar na mesa e a mãe permanecer em silêncio, sem se mover muito perto do marido. Aletheia saiu da pequena sala e abriu um pouco a porta para espiar a irmã, que estava de olhos fechados apenas recebendo a água no rosto, encolhendo e retorcendo e esmagando a vontade de gritar. Mas ela não gritou, nem pôde tentar, estava cansada demais de viver. Ela tinha dezesseis anos com alma de oitenta.
Então Aletheia se arrependeu amargamente de ter espionado a irmã, pois viu uma cena que nunca esqueceria nem se morresse. Mas era essa a questão, morrer.
A irmã mais velha saiu do chuveiro e tirou uma faca escondida perto do vaso sanitário, enfiou na barriga com força e morreu. Ela não chorou nem gemeu, ela fez o seu verdadeiro papel de boa mulher. É assim que o mundo termina, não com a dor mas com o alívio. Aletheia gritou e os pais saíram em disparada para onde ela estava. O pai culpou a mãe pelo descuido e iniciou seu ritual de espancamento, sangue e dentes para todo lado.
Aletheia saiu da casa e se enroscou no arame farpado do cercado, ferindo o pescoço e rasgando as pálpebras, o dia estava indo embora, e ela também. O pai arregaçou a porta com um chute e gritou para ela voltar, as crianças da vila olharam para Aletheia correndo em total espanto, ela estava chorando sangue por causa das pálpebras. Uma criança amaldiçoada, pensaram. E com certeza era.
Aletheia caiu várias vezes na sua fuga, e quanto mais caía, mais seu pai se aproximava, pronto para o abate. Seus frágeis joelhos e braços estavam ralados, e seu rosto mais esfolado ainda. Ninguém estava entendendo nada. Até que tudo pôde se concluir.
O pai pegou uma pá e acertou na cabeça da filha. Era uma criatura impiedosa, e por isso queria mais. Aletheia apenas ouvia vozes ao longe, e depois mais nada. O pai a matara com várias pancadas de pá na cabeça, até rachar o seu crânio e expulsá-la do mundo dos vivos. Mas antes que pudesse voltar triunfante para casa, os moradores também o mataram, atirando pedras gordas e pesadas até fazê-lo manchar uma grande poça de sangue na terra. Ele ainda pôde sentir ser castrado e ter a língua arrancada, e ainda foi deixado por um longo tempo até ele mesmo decidir que queria morrer. Mas nunca arrependido.
~
Aletheia abriu a porta e no mesmo instante as luzes daquele corredor se ligaram. Era um corredor pintado de vermelho e nada convidativo. Era a única chance de Scarlett e todos os outros saírem daquele lugar. E eles já sentiam isso. Ali estava a porta final, a provável resposta.
- Eu não quero ir. – Aletheia se postou atrás de Scarlett.
- Então você pode ao menos esperar aqui? – Scarlett sorriu, aliviando a tensão da menina.
- Acho que sim.
Scarlett olhou para o grupo que esperava alguma atitude.
- Quem vai comigo? – Ela perguntou.
Madalena e João se aproximaram. Scarlett assentiu, e então eles se foram.
João tocou com cuidado na maçaneta da porta, e então a virou, nada aconteceu. Scarlett chegou mais perto, e sentindo o olhar ansioso de Madalena, abriu com o marido dela a porta sem respirar. Uma luz amarela se acendeu e com ela se revelou um quarto que parecia uma espécie de porão. Todos olharam com estranha curiosidade.
Uma escada se desceu com um estrondo e outra luz se acendeu, dessa vez branca, trazendo consigo uma velha senhora. Ela tinha os olhos murchos e azuis, porém simpáticos, os cabelos brancos estavam emaranhados, e mais um pouco deles num coque mal arrumado. Ela desceu a escada com desleixo e aborrecimento, depois afofou o vestido-camisolão e então sorriu para o grupo dos queixos caídos.
- O preço para sair é uma alma. – Ela continuou sorrindo.
- Quem é você? – Madalena pôs-se a perguntar, o rosto contorcido em horror.
- O preço para sair é uma alma. – Ela repetiu.
- O QUÊ? VOCÊ ESTÁ MALUCA? – Madalena gritou. – QUEM VOCÊ PENSA QUE SOMOS?
- Madalena, acalme-se! – João segurou o braço da mulher.
Madalena o fitou em total terror.
- Acho que apenas alguns de nós poderá sair daqui. – Scarlett disse, melancólica.
- Sim. – A velha senhora sorriu.
- Não podemos simplesmente abandonar alguns de nós. – João parecia confuso.
- É difícil. – A velha senhora franziu a testa. – Mas é o preço.
- Não entendo... Passamos por tudo isso para mais pessoas morrerem? – Scarlett estava quase sem fôlego.
- Sim. – A velha se sentou num banquinho, e ficou a esperar as decisões.
Houve um grande momento de silêncio, Scarlett olhou para trás, e caminhou de volta para o corredor. João e Madalena fizeram o mesmo, sem saber o que fazer. Aletheia os avistou com entusiasmo em um pequeno sorriso a iluminar o rosto, e abraçou Scarlett com força. Scarlett segurou as lágrimas. João e Madalena cochichavam alguma coisa, e Madalena chorava.
- E então? – Angelina perguntou, de mãos dadas com Rhett.
Scarlett respirou fundo.
- Nós temos um plano, e temos pouco tempo. Então alguns de vocês sairão por um caminho diferente. – Ela mentiu, e então olhou para João, que assentiu e beijou Madalena na boca. Gosto de lágrimas.
- Rhett, Aletheia, um dos gêmeos e Madalena irão por esse corredor mesmo. Eu e João sabemos de outro caminho.
- Você vai, Khayran. – Khaydan o abraçou forte. – Nos encontramos lá fora.
Scarlett ainda não tinha derramado nem uma lágrima.
João se aproximou de Scarlett, e Angelina também, apenas Khaydan estava longe dos condenados, dando um beijo forte na bochecha do irmão. Aletheia deu outro abraço em Scarlett, que apenas dava um sorriso triste.
- Quando você encontrar uma velha senhora perto das escadas, diga que vocês já pagaram o preço. – Ela sussurrou nos ouvidos da menina.
- O preço?
- Sim.
Aletheia olhou nos olhos de Scarlett, que escondiam nas pálpebras e cílios as lágrimas. E então partiu com Khayran, Rhett e Madalena. Outro silêncio, e depois um grande barulho, uma luz ofuscante vinda do final do corredor, e então mais nada. Scarlett encarou João mais uma vez, e mais uma vez sem falar nada, ele entendeu. João puxou Khaydan e Scarlett, Angelina.
- Vamos.
- O que vocês estão fazendo? Não era um outro caminho?
- É esse mesmo.
Scarlett chegou ofegante, a velha senhora ainda estava sentada, e os fitou com espanto.
- Não podem sair. Vocês não tem preço – Ela fez o sinal da cruz, como que repreendendo o grupo.
Scarlett pegou um objeto qualquer e tentou violentar a velha que desapareceu, João subiu a pequena escadaria e arrombou a portinhola. Angelina e Khaydan apenas assistiam toda aquela confusão sem entender nada, uma criatura escura e monstruosa surgiu no corredor vermelho e pôs-se a rastejar velozmente com uma quantidade exorbitante de tentáculos, patas pegajosas e dentes afiados. João e Scarlett subiram na luz ofuscante do teto, depois foi a vez de Angelina e Khaydan.
Então tudo ficou claro demais até que se pôde entender que seria sempre assim. Mas não foi.
Scarlett sentiu uma dor de mil lâminas no seu corpo, então pareceu que sua alma diminuiu e seu corpo estava muito maior do que antes. Ela tentou gritar mas saíram guinchos da sua boca, ou melhor, bico. Ela se levantou da rua bagunçada e abriu os olhos, que agora demoravam mais a piscar. O céu estava cinza e vermelho, o horizonte completamente púrpuro, tudo estava um completo caos. Pessoas correndo para todos os lados, carros e mais carros se empilhando e explodindo, prédios desabando. Por alguma razão ela conseguia ver por vários ângulos. Nada mais se explicava.
E lá estava Aletheia, perdida em todo aquela fúria humana, soluçando sem saber o que fazer, ou porquê exatamente soluçar. Scarlett se aproximou e ela a fitou com curiosidade, depois espanto, depois palidez, e por fim horror. Aletheia pôs-se a correr desesperadamente e um carro a atropelou, depois um grupo de homens nus com asas negras iniciaram um ritual de estupro com seu pequeno corpo de menina.
Scarlett tentou chorar dessa vez, mas não conseguiu, tudo o que saia da sua boca eram guinchos ou piados. Então ela finalmente conseguiu admirar seu reflexo, numa poça de sangue de um defunto ali perto. Ela era um demônio, cheio de olhos arregalados e um bico afiadíssimo. Ela era uma condenada, e já estava morta há muito tempo.




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The Birds - Fim





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Black Cherry

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