- O que vamos fazer? - perguntou Angelina. - Parece que até durante o dia as coisas ficam perigosas...
- Não, não ficam... - respondeu João. - Mas está escurecendo muito mais rápido.
- Então vamos morrer de fome por medo de sermos atacados de novo? - Scarlett questionou.
- Não. Mas agora temos que encontrar as coisas mais rápido do que o dia. - disse Madalena, sentindo uma pontada de dor ao tentar levantar do colo de João.
A pequena porta foi espancada com violência, e todos se voltaram para ela. Estavam tentando invadir? Mas em vez de barulhos de asas ou de guinchos, eram gritos de uma criança. João foi tentar abrir imediatamente, mas foi impedido por Madalena, que o fitou em total repreensão.
- E se for um deles?
- Não é. Eles nunca se disfarçaram de humanos. Talvez não consigam.
- E se estiverem usando a criança?
- Não são tão inteligentes assim...
- Tem certeza?
João voltou-se para Scarlett, que assentiu em total compreensão. A mulher pegou uma viga de ferro aleatória no lugar e ficou preparada para o pior. O marido de Madalena abriu a porta com tudo e uma criança pulou no colo de Madalena, como um verdadeiro inseto. Angelina gritou no mesmo instante, pensando que fosse um, e Rhett apenas tremia. Khaydan levantou-se e foi analisar o que tinha no colo da esposa de João, e João postava o último trinco na porta.
- Quem é você? – perguntou Scarlett, com a voz afetuosa.
A criança apenas tremia como um liquidificador.
- Ei! Está tudo bem... – disse ela, olhando para Madalena, que entregou a criança aos seus cuidados. – Você pode nos contar como chegou aqui?
- Estava procurando... – respondeu a pequena menina, uma voz tão doce que fez todos se sentirem normais naquela situação.
- Procurando... O quê? – perguntou Khaydan, acariciando as costas da criaturinha.
- O que me disseram para procurar... e a gente sairia daqui.
- Vo... Você sabe alguma coisa sobre como sair daqui?
- Acho que sim.
A menina se pôs de pé e começou a andar para um canto, sentou-se encostada numa parede e começou a avaliar cada um na Toca. Seus olhos eram de um azul nunca visto em nenhum ser humano. Era como o mar dentro das pupilas. Seus cabelos, negros, lisos e despenteados, pareciam a própria sujeira que infestava o seu rosto e bracinhos magricelas.
- Um monstro me disse que eu não pertencia a esse lugar, todos vocês pertenciam, mas eu não, eu estou aqui por acidente.
- Não estou entendendo... Como pertencemos a esse lugar? – João perguntou, agora vendo que a menina falava como uma pequena adulta, seria mais fácil se comunicar com ela.
- Não sei. Foi só o que ele me disse. Isso e como sair daqui. – ela ajeitou um pouco os longos cabelos para trás, de uma forma tão fofa que fez todos sorrirem. Só o que ela falava era que não era nada fofo. – Se encontrar o demônio, encontra a saída.
- Demônio?
Rhett começou a dar os sinais de que iria surtar, e tudo o que os outros puderam fazer foi prender a respiração, exceto Angelina, que tentava de todo jeito (como sempre) acalmá-lo. Então ele falou tudo o que todos mais temiam e evitavam até mesmo pensar:
- Estamos no inferno.
E de novo.
- Estamos no inferno.
- Não, espere, foi isso mesmo que ele disse pra você? – João perguntou.
- Sim.
- E como encontramos o demônio? – Scarlett perguntou, olhando para a mão de Angelina que segurava a de Rhett com força.
- Estamos no inferno.
- Temos que encontrar o corredor vermelho. No final dele mora o demônio.
- ESTAMOS NO INFERNO PORRA!
A menina deu um pulo, Angelina o estapeou, Rhett a fitou, os olhos arregalados, as olheiras dançando abaixo deles. Voltou a si.
- Isso é apenas um nome, não significa nada, Rhett. – ela disse, e então ele se acalmou.
Madalena suspirou em reprovação, e então pediu a atenção da menina novamente.
- Menina, qual é o seu nome? – perguntou.
- Aletheia.
- Bem, Aletheia, você pode nos ajudar a encontrá-lo?
- Acho que sim.
- Quando sairemos? – disse Scarlett.
- Agora mesmo.
E tudo se silenciou. João a olhava em total espanto, os gêmeos com medo, Angelina segurando o tremor e o frio na nuca, e Scarlett confusa.
- Você não está sendo... – tentou João.
- Não, não estou sendo drástica demais. Já estou cansada deste lugar e agora que encontrei um meio de sair não vou ficar esperando a boa vontade de ninguém de levantar a bunda e ir comigo. Se quiserem vir, que venham, Aletheia irá me guiar.
- Aletheia, você quer ir agora? – João perguntou para a menina, com uma tranquilidade que ele não tinha.
- Eu quero ir pra casa. – resondeu Aletheia, pela primeira vez como uma criança de verdade.
- Se você quer ir pra casa, não temos tempo a perder. – Madalena puxou a menina pelo braço. – Vamos.
Aletheia olhou para todos, pedindo claramente por ajuda com a testa franzida. Scarlett segurou a mão da menina e não largou mais. Madalena se virou furiosa para Scarlett, que a enfrentou sem nem mesmo piscar.
- Está óbvio que ela não quer ir. Quando ela estiver pronta, nós vamos. – disse Scarlett.
- Não ouse me desafiar... – Madalena ameaçou. – Eu salvei a sua pele sua vagab...
- Não, fui eu quem a salvou, e como Scarlett já disse, Aletheia ainda não quer ir. Nós já temos um provável meio de sair daqui, e já passamos tempo demais para perder a sanidade no último minuto. Madalena, já chega!
Se olhar matasse, Madalena naquele exato instante conseguiria. Mas não era apenas o olhar, era o seu corpo inteiro, que estava borbulhando como uma panela de pressão. Talvez estivesse mais esgotada do que os outros, afinal, não se é possuído por uma força estranha num lugar estranho todo dia.
A noite aparentemente chegou, e com isso, todos se silenciaram de vez. Aletheia se deitou no colo de Scarlett, e Scarlett não viu problema nisso, aliás, estava sem sono. Madalena ficou apenas fingindo estar dormindo, mas a dor na sua costa apenas piorava, e a ferida parecia estar a cada hora mais aberta, João e os outros adormeceram como pedras. E o mais estranho, nenhum barulho lá fora.
A menina virou o rosto em direção ao queixo de Scarlett, que também abaixou o olhar para vê-la.
- Como era esse monstro, Aletheia? – ela sussurrou, perguntando.
- Era meu pai.
~
Black Cherry
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