Eu tinha nove anos. Nunca vou esquecer a tristeza de quando perdi meus pais. Perdi todos de uma vez. Sobrou a saudade. Saudade e um medo terrível do que ia me acontecer! Que seria de mim, sozinha no mundo? Uma senhora alemã escondeu-me no sótão de sua bela casa. O sótão era o meu novo endereço.
O tempo foi passando e a 2a Guerra Mundial também. Todos os dias a senhora alemã levava comida e água para mim. Quando seu marido e filhos não estavam em casa, eu descia e tomava banho. Sentia falta de brincar. Ela deu-me um carrinho. Não tinha bonecas. Eu o levei comigo para o sótão. Aprendi mil maneiras de brincar com o carrinho. Com ele descobri que podia correr o mundo e sentir a brisa passear no meu rosto em alta velocidade. Dormia com ele ao meu lado.
O sol de cada manhã invadia a fresta do sótão e eu acordava. As fardas saíam apressadas para o serviço digno e assim que a porta da casa se fechava lentamente, a porta do sótão se abria rapidamente. Eu, a criança judia e, ela, a senhora alemã inventávamos as duas de brincar com os objetos dos rapazes. Brincávamos de carrinhos, jogávamos bola, gude-gude. Nenhuma brincadeira de menina. Quando já no fim da tarde, eu voltava para o sótão. Era um outro mundo. Escuro. Em um mundo sem som, os gritos são dados em vão. E o meu soluço cessava. A realidade da vida tornou-se totalmente absurda.
Ela me fazia esquecer da guerra. Eu esquecia. Mas eu não conseguia mais lembrar de como era brincar de boneca. Eu crescia e a guerra não cessava. Certa manhã quando acordei eu vi espalhado por todo o sótão algodão. Ela disse que era a barba do papai noel, que viera deixar um presente para mim. Eu já até sabia o que era. E no natal seguinte eu ganhei de novo um novo carrinho. Cansei disso. Comecei a brincar de imaginar.
Meu nome é Zenira. Mas gostava de Abril. Se eu pudesse escolher seria Abril. "Senhorita Abril, queira se dirigir à plataforma de embarque". Viajava numa nave espacial. Viajava o azul. Entre atropelos com zipers, capacete, lágrimas e silêncios. Vi meu sonho se misturar ao infinito. Partia veloz como flecha. Um dia imaginei-me Rainha dos Mares. Destronando Netuno, comanda deslumbrante exército. Uma fileira de cavalos marinhos montados por sensuais sereias. Nas mãos o meu poderoso tridente. Na cabeça a mais linda estrela do mar a me guiar. Noutro dia não era Zenira, nem Abril. Era Bárbara bela. Do norte, estrela. Ela bela. Era norte. Era sul. Nem Zenira nem Abril. Estrela só.
Um dia a senhora alemã leu um poema triste. Bonito. Não entendi muito bem, mas arrepiei. Ela falou que não tinha importância não entender. Que o mais importante era arrepiar. Gostava quando batíamos papo assim. Ficávamos iguais. Éramos medo e coragem. Alegria e Tristeza. Éramos mãe e filha. Tão diferentes, tão iguais. Juntas no desafio de viver. O sótão era o meu mundo e lá eu o imaginava infinitamente. Ela também.
No sótão eu descobri um ponto da minha vida e percebi que podia ainda ser feliz. E viver. Apesar de tudo. Era como se sentir um pássaro na magnólia. A dor da perda dos meus pais escureceu minha infância. Mas a senhora alemã ajudou-me colori-la de novo. E esse colorido se deu a descoberta da minha imaginação. Usava dos sonhos. Usava e abusava. Não sabia viver sem Abril. Nem Abril sem Zenira. Agora preciso dormir. Hoje, com certeza serei sereia. Bons sonhos, Abril.
Terminou a guerra. Lembro do abraço doído que ela me deu. Abraço que contava que daquele dia em diante, não voltaria mais ao sótão. Não entendi tudo de uma vez. Acho que até hoje não entendo ainda.
É difícil entender saudade.
~
Michel Oliveira :)
Nenhum comentário:
Postar um comentário