Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

domingo, 30 de maio de 2010

O Pássaro na Magnólia


Eu tinha nove anos. Nunca vou esquecer a tristeza de quando perdi meus pais. Perdi todos de uma vez. Sobrou a saudade. Saudade e um medo terrível do que ia me acontecer! Que seria de mim, sozinha no mundo? Uma senhora alemã escondeu-me no sótão de sua bela casa. O sótão era o meu novo endereço.

O tempo foi passando e a 2a Guerra Mundial também. Todos os dias a senhora alemã levava comida e água para mim. Quando seu marido e filhos não estavam em casa, eu descia e tomava banho. Sentia falta de brincar. Ela deu-me um carrinho. Não tinha bonecas. Eu o levei comigo para o sótão. Aprendi mil maneiras de brincar com o carrinho. Com ele descobri que podia correr o mundo e sentir a brisa passear no meu rosto em alta velocidade. Dormia com ele ao meu lado.

O sol de cada manhã invadia a fresta do sótão e eu acordava. As fardas saíam apressadas para o serviço digno e assim que a porta da casa se fechava lentamente, a porta do sótão se abria rapidamente. Eu, a criança judia e, ela, a senhora alemã inventávamos as duas de brincar com os objetos dos rapazes. Brincávamos de carrinhos, jogávamos bola, gude-gude. Nenhuma brincadeira de menina. Quando já no fim da tarde, eu voltava para o sótão. Era um outro mundo. Escuro. Em um mundo sem som, os gritos são dados em vão. E o meu soluço cessava. A realidade da vida tornou-se totalmente absurda.

Ela me fazia esquecer da guerra. Eu esquecia. Mas eu não conseguia mais lembrar de como era brincar de boneca. Eu crescia e a guerra não cessava. Certa manhã quando acordei eu vi espalhado por todo o sótão algodão. Ela disse que era a barba do papai noel, que viera deixar um presente para mim. Eu já até sabia o que era. E no natal seguinte eu ganhei de novo um novo carrinho. Cansei disso. Comecei a brincar de imaginar.

Meu nome é Zenira. Mas gostava de Abril. Se eu pudesse escolher seria Abril. "Senhorita Abril, queira se dirigir à plataforma de embarque". Viajava numa nave espacial. Viajava o azul. Entre atropelos com zipers, capacete, lágrimas e silêncios. Vi meu sonho se misturar ao infinito. Partia veloz como flecha. Um dia imaginei-me Rainha dos Mares. Destronando Netuno, comanda deslumbrante exército. Uma fileira de cavalos marinhos montados por sensuais sereias. Nas mãos o meu poderoso tridente. Na cabeça a mais linda estrela do mar a me guiar. Noutro dia não era Zenira, nem Abril. Era Bárbara bela. Do norte, estrela. Ela bela. Era norte. Era sul. Nem Zenira nem Abril. Estrela só.

Um dia a senhora alemã leu um poema triste. Bonito. Não entendi muito bem, mas arrepiei. Ela falou que não tinha importância não entender. Que o mais importante era arrepiar. Gostava quando batíamos papo assim. Ficávamos iguais. Éramos medo e coragem. Alegria e Tristeza. Éramos mãe e filha. Tão diferentes, tão iguais. Juntas no desafio de viver. O sótão era o meu mundo e lá eu o imaginava infinitamente. Ela também.

No sótão eu descobri um ponto da minha vida e percebi que podia ainda ser feliz. E viver. Apesar de tudo. Era como se sentir um pássaro na magnólia. A dor da perda dos meus pais escureceu minha infância. Mas a senhora alemã ajudou-me colori-la de novo. E esse colorido se deu a descoberta da minha imaginação. Usava dos sonhos. Usava e abusava. Não sabia viver sem Abril. Nem Abril sem Zenira. Agora preciso dormir. Hoje, com certeza serei sereia. Bons sonhos, Abril.

Terminou a guerra. Lembro do abraço doído que ela me deu. Abraço que contava que daquele dia em diante, não voltaria mais ao sótão. Não entendi tudo de uma vez. Acho que até hoje não entendo ainda.








É difícil entender saudade.








~









Michel Oliveira :)

sábado, 29 de maio de 2010

Cânone da Tempestade:3 - Chaveiro


Lucas Lustat ainda se lembra de cada detalhe de Danilo Armand, da sua alma escondida, dos seus sorrisos aparentes, dos seus sapatos sem cadarços, dos seus cabelos desarrumados, da sua calça rasgada nos joelhos, da sua voz reconfortante, da sua pele pálida e limpa, dos seus olhos cansados, quase sempre olhando para baixo, do seu corpo marcado, das suas lágrimas de desabafo, dos momentos em que ele sempre quis estar ao lado dele, das suas notas que foram recuperadas graças à amizade de Lucas, da sua casa que foi arrumada à ordem de seu novo amigo, das flores silvestres que foram plantadas no quintal de sua casa, como presente de aniversário, dos filmes antigos nas madrugadas, dos cochilos no colo dele, das tardes nubladas de música e estudos, dos seus abraços tão carinhosos e protetores, dos banhos de chuva, e da única vez que Lucas pôde ver o sol ao lado de Danilo Armand, foi seu último sol, e seu único beijo.

A tempestade ficava cada vez mais forte, de uma intensidade nunca vista naquela cidade, Lucas levantou do chão, ferido, no ócio de seu sofrimento, no limite da sua capciosa dor, lembrou dos olhos cansados de Danilo Armand, sua alma estava tão cansada quanto aqueles olhos, sua audição não alcançava mais nenhum som, Lucas se encontrava completamente distante daquele mundo;

Até que pôde ouvir o som de uma gota no chão,

e, logo após, da tempestade, a tempestade do seu coração.

Foi em direção a ela, era tão fria, porém tão confortante, se sentiu abraçado pela água, a grama úmida nos pés descalços, a roupa molhada colando-se no corpo, as mãos trêmulas e inseguras, os olhos fechados, um pouco de chuva entrando na boca aberta, a face em direção ao céu, recebendo todo o amor que sentiu apenas uma vez, toda a liberdade que viu apenas uma vez, toda a felicidade que se permitiu apenas uma vez.

A tempestade gritou, gritou insana enquanto despertava, Lucas Lustat chorou, chorou insano em forma de tempestade.




" Atrás do barco de nuvens, um sol acorda de sua hibernação
Refresca-se com alguns pequenos pingos da chuva
Brinca com as quentes chamas de fogo
E faz arco-íris... "


~










Andrew Oliveira,
Poema (em azul) de Sigur Rós ^-^

Cânone da Tempestade:2 - Canário


Aquele olhar cansado
Filho da escuridão
Leitor Nublado
Exausto, exausto em vão

Aquele olhar cansado
Cântico bêbado, lamentado
Pés descalços na grama
Folhas de chuva na cama

Aquele olhar cansado
Explosão de um crepúsculo partido
No pulmão de um amanhecer
Floresta negra do seu coração anoitecido

Aquele olhar cansado
Estrela matutina do seu universo
Pássaro de chamas no seu inverno
Cinzas cósmicas, do inverso

Aquele olhar cansado
Pulsa no brilho do alvorecer
Interna dor, jamais vista
Frieza-escudo para o mundo

Aquele olhar cansado
Porão de bondade, escondido
Solitariamente sem estrada alguma
Voluntariamente sem estrada alguma

Aquele olhar cansado
Dono de si mesmo
Senhor do seu dia
Senhor do seu enredo

Com suas pequenas asas
Sua voz afável
Canta ternamente
Sua última canção de amor



Queria tanto saber voar...









~







Andrew Oliveira

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Cânone da Tempestade:1 - O Aluno Novo




Danilo Armand permitiu-se mais uma vez cochilar durante a aula de matemática, era revisão, e ele já estava no 3° ano do Ensino Médio, mas não se importava, pois sua patética e superficial vida se encontrava completamente perdida. Sonhava com pessoas boas e dias ensolarados, estou de saco cheio dessa chuva!
Fazia meses que chovia sem parar na cidade Cartesis, a terra natal de onde Danilo nunca saíra, nunca se sentiu bem ou de bom humor ativo lá, era como um veneno paralisante que o deixava preso, era como uma gaiola. Surgiu um campo cheio de arco-íris se misturando numa dança bêbada em sua cabeça, sorriu levemente, até que foi interrompido:
- Armand! Venha aqui no quadro escrever o resultado do cotangente de X! - Berrou o antipático professor.
- Ah... Eu não tô afim, e eu não sei. - Nem levantou a cabeça, não gostava de olhar muito nos olhos das pessoas.
- Isso é ordem, Armand! - Enfureceu-se.
- Pergunta pra quem sabe, oras... Eu já disse que não sei!
- Ele não passa de um idiota, professor! - Intrometeu-se Lídia, a inimiga de Danilo. - Por que o senhor ainda insiste em perguntar para as portas?
A turma pôs-se a gargalhar.
Danilo parou na sala da coordenadora pedagógica:
- Danilo... Danilo... Quando você vai mudar? Estou cansada de chamar a sua atenção! Você responde para os professores, está com a menor média da sua classe, e nunca me conta o que você tem, você não era assim! O que aconteceu com você?
Ele poderia responder sobre seu desânimo para viver após o assassinato de seus pais, e que morar sozinho com um irmão mais velho egocêntrico é terrível, mas pensou, como sempre, em controlar seus sentimentos, e preferiu responder:
- Terminou? - Seu olhar cansado não piscou.
- Danilo, vou ter que chamar seu irmão.
Danilo levantou entediado da cadeira, e partiu para casa.

Era uma casa de tamanho normal, bem protegida e à 5 quadras de distância da sua escola. O local estava uma verdadeira zona, roupas e objetos dispersos nos chãos , nas cadeiras e sofás, louças sujas, uma baderna! Apenas o quarto de Danilo permanecia intacto, limpo e completamente são. O garoto entrou no quarto do irmão para avisar que já estava em casa, avistando-o sentado no chão aplicando-lhe uma injeção, já era uma cena do seu cotidiano.

Pessimismo, melancolia, sono, tédio, depressão pós-sono, vontade de chorar, mais sono, olheiras, mais sono, mais sono... Esse poderia ser mais um dia normal na vida de Danilo, até o momento em que entrou um ser nervoso, de face tão bela, exalando ingênuidade, parecia ser tão inseguro.
- Temos um aluno transferido, pessoal. - Falou a professora de Língua Portuguesa. - Conheçam Lucas Lustat!










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Andrew Oliveira ;*