Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

quarta-feira, 21 de março de 2012

Can't


Há algo doce e macio nessa torta holandesa que funciona apenas com a companhia de um café com leite. Há algo nessa torta fria que se dissolve com o café quente que parece atingir de alguma forma aquele lugar bem mais lá embaixo, um porão fechado há anos. Ele é eterno, não o doce da torta, é claro, porque ela já está no seu estômago, que é o lugar onde ela pertence, mas sim o porão. É como se a torta e o café fossem servidos para uma causa maior, para alimentar uma alma atormentada nesse porão, magra, abatida, seca, sem nada a perder, e por que não esse tanto de chantily com café e leite?
É claro, o café deve ser com açúcar, porque ninguém atura adoçante.
Você então veste o seu casaco, calça seus coturnos, pega a chave e vai direto para o elevador. Aperta o P de Piso e para no quinto andar, um rapaz louro de olhos azuis lhe pergunta se você tem um celular disponível, pois ele está sem chaves e precisa de ajuda. Infelizmente seu celular ficou no seu quarto, lá no décimo terceiro andar, no 1303, e não é ironia. Ele lhe dá um sorriso e você pede desculpas por não ter ajudado, ele diz que tudo bem e, antes do elevador fechar, ele olha para você um pouco mais do que alguém que precisa de ajuda olharia. Talvez ele necessitasse de um outro tipo de ajuda. Você ri internamente e só então percebe a intenção da situação.
As ruas correm com vento, pessoas famintas por suas camas, carros vorazes que são capazes de se transformarem em robôs apocalípticos a qualquer instante de tão barulhentos que são. A fumaça, monóxido de lábios e de escapamentos, um palácio e um museu, lado a lado, árvores e logo alí uma praça. Veja alí um casal carinhoso, sem medo da represália com seus afetos ao público, mas olhando bem, ninguém realmente se importa ou acha bonito. Por que deveria ser bonito? As árvores não assoviam, as árvores não dançam, elas são sacudidas como se estivessem sonolentas e precisassem de um toque desesperado para ficarem mais lúcidas. Esse pode ser o papel do vento, aliás.
Há várias músicas e vários gostos, você tenta esquecê-los e se foca apenas nas suas peculiaridades. É claro que isso é irrelevante. Você está com as pernas doloridas de tanto caminhar, mas não liga, aquela dor já lhe é familiar, amigável, quase simpática e você adora lembrar daquele sonho ruim que te acordou às 03:03 da manhã e ao mesmo tempo se lembra também do rapaz simpático, à procura de sabe-se-lá-o-quê.
Pode estar, de uma forma ou de outra, bem esgotado. Você sente falta e sangra por isso, você sente a própria ausência e por ela mesma não consegue mais chorar, não que você tenha congelado, se transformado numa criatura rígida e sem nada na superfície ou debaixo d'água. Mas as coisas estão por um caminho tão cruel e ininterrupto que você sente um medo enorme de se mostrar. Você já sabia que era a hora de ir embora, de superar. Acho que pode ser isso mesmo, pode ser que seja.
Tanto faz, você não deveria se importar tanto com isso.











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Black Cherry

sábado, 10 de março de 2012

Corte


Você sabe qual é a hora de ir embora
Sabes do momento mais oportuno?
Já vistes a forma que o amor toma para si
Quando teu caminho cego e inconsequente
Está cansado demais para continuar
com a luz acesa, o poste queimado, a lua escondida?
Sabes então que isso também tão logo chegaria?
O corredor mal-iluminado, naftalina, dentro das fechaduras
as chaves quebradas
E se é impossível então abrir as portas
Por que não tentas ao menos um pouco morrer um pouco para uma pouca dor?
É tanto o que se pode desejar
Meu fantasma não te chama mais,
Ele te seduz, te entorpece, te escarna
Tua pele poderia se tornar mais rígida aos meus toques
E que conveniência é essa de desacreditar na minha sombra?
Eu sou um sonho e esse amor é metafísico, não te esqueças dele, esse velho testamento
Te lembras ainda quando lhe solicitei a palavra?
O princípio não era o verbo, e minha cama está desamurrada
Não deixais teu odor fugir
És egoísta para antes das minhas fronteiras
Rua, corredor, rua, banheiro, rua, sala, rua, quarto
Até quando tentarás te desabrigar de ti mesmo?
Eu aceito tua maleficência, corte-a em pedaços, me deixe saborear
Venha afogar-se em meus braços
Use meus pulmões para me enxergar
Lá fora o mundo não condena
Ele corre feito um carneiro, morre como um leão, nasce tal um demônio
E já não sinto mais meus pés
Estás submerso à minha escuridão
E minhas pálpebras não te deixarão mais fugir
Meus cílios perfurarão tuas orações
E para ser mais exato, fui eu quem enforcou a tua alma
e cortou teu cabelo para te fortalecer
Fortalezas se demoliram dos meus ombros
Desapareceram daquelas encostas rochosas
Nenhum farol se quis procurar
Nenhum corte minimalista ao pulso me fez acordar
Deixa-te morrer um pouco mais
Deixa-te
Eu posso ainda esconder teu corpo, se bem quiseres
Dentro de mim, úmido, crucificado
Dançais.







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Black Cherry
Photo: Darek Slusarski