Há algo doce e macio nessa torta holandesa que funciona apenas com a companhia de um café com leite. Há algo nessa torta fria que se dissolve com o café quente que parece atingir de alguma forma aquele lugar bem mais lá embaixo, um porão fechado há anos. Ele é eterno, não o doce da torta, é claro, porque ela já está no seu estômago, que é o lugar onde ela pertence, mas sim o porão. É como se a torta e o café fossem servidos para uma causa maior, para alimentar uma alma atormentada nesse porão, magra, abatida, seca, sem nada a perder, e por que não esse tanto de chantily com café e leite?
É claro, o café deve ser com açúcar, porque ninguém atura adoçante.
Você então veste o seu casaco, calça seus coturnos, pega a chave e vai direto para o elevador. Aperta o P de Piso e para no quinto andar, um rapaz louro de olhos azuis lhe pergunta se você tem um celular disponível, pois ele está sem chaves e precisa de ajuda. Infelizmente seu celular ficou no seu quarto, lá no décimo terceiro andar, no 1303, e não é ironia. Ele lhe dá um sorriso e você pede desculpas por não ter ajudado, ele diz que tudo bem e, antes do elevador fechar, ele olha para você um pouco mais do que alguém que precisa de ajuda olharia. Talvez ele necessitasse de um outro tipo de ajuda. Você ri internamente e só então percebe a intenção da situação.
As ruas correm com vento, pessoas famintas por suas camas, carros vorazes que são capazes de se transformarem em robôs apocalípticos a qualquer instante de tão barulhentos que são. A fumaça, monóxido de lábios e de escapamentos, um palácio e um museu, lado a lado, árvores e logo alí uma praça. Veja alí um casal carinhoso, sem medo da represália com seus afetos ao público, mas olhando bem, ninguém realmente se importa ou acha bonito. Por que deveria ser bonito? As árvores não assoviam, as árvores não dançam, elas são sacudidas como se estivessem sonolentas e precisassem de um toque desesperado para ficarem mais lúcidas. Esse pode ser o papel do vento, aliás.
Há várias músicas e vários gostos, você tenta esquecê-los e se foca apenas nas suas peculiaridades. É claro que isso é irrelevante. Você está com as pernas doloridas de tanto caminhar, mas não liga, aquela dor já lhe é familiar, amigável, quase simpática e você adora lembrar daquele sonho ruim que te acordou às 03:03 da manhã e ao mesmo tempo se lembra também do rapaz simpático, à procura de sabe-se-lá-o-quê.
Pode estar, de uma forma ou de outra, bem esgotado. Você sente falta e sangra por isso, você sente a própria ausência e por ela mesma não consegue mais chorar, não que você tenha congelado, se transformado numa criatura rígida e sem nada na superfície ou debaixo d'água. Mas as coisas estão por um caminho tão cruel e ininterrupto que você sente um medo enorme de se mostrar. Você já sabia que era a hora de ir embora, de superar. Acho que pode ser isso mesmo, pode ser que seja.
Tanto faz, você não deveria se importar tanto com isso.
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Black Cherry