Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Especial de Halloween: O Baile das Crueldades



Dobrei o papel e coloquei no envelope, lambendo a borda para colá-la e depois colocando um selo. A carta era para o Mal. Sim, isso mesmo. Eu não sei como você ou qualquer outra pessoa define o mal, mas eu decidi definir como o Mal conhecido pelo Cristianismo, aquele que tem vários nomes. Esse mesmo. Lúcifer, Memnoch, Anjo Caído, todos esses nomes que se tornaram doce na boca até dos mais descrentes, inclusive daqueles mais céticos que exclamam “ai meu Deus” sem perceber quantas vezes fazem isso. Se é ironia ou não, eu não quero saber.
Decidi fazer isso por uma brincadeira boba de Halloween. Você sabe, eu estava entediado no meu quarto, conversando em redes sociais no computador e vendo pornografia de vez em quando. Mas eu cheguei num estado de tédio em que o próprio tédio se entedia de ser entediante, se isso faz algum sentido. O Halloween estava chegando e eu não queria mais uma sessão boba de filmes clássicos como aquele do John Carpenter ou outros filmes inspirados em livros do Stephen King, eu também não estava nem um pouco a fim de ver terror trash. Na verdade eu estava entediado por tudo. Não queria sair com meus amigos ou com a minha família, cheguei a um estado insuportável de “nada” e, no cansaço do meu desespero, enderecei uma carta anônima para o Mal, e aguardei uma resposta que provavelmente nunca chegaria. Digo provavelmente porque gosto muito dessas histórias verídicas do sobrenatural e sempre um tive um pé para isso. A quantidade de sonhos bizarros que eu tenho chega a ser maior do que a quantidade de horas em que já dormi nos meus dezessete anos. Exatamente. Mas eu nunca cheguei a entrar em desespero por causa deles ou algo assim. Na verdade, eu até gosto, e em alguns deles cheguei a ficar muito triste por ter acordado. Quer dizer, com exceção de um em específico, em que a própria Lilith pulou em cima de mim e gargalhou, uma gargalhada gutural e soberba, dizendo que adoraria ver a minha cara de dor assim que enfiasse qualquer coisa dentro de mim (e eu a batizei assim porque a mulher tinha mais de dois metros e mais músculos na barriga do que eu, além de ter ombros de um jogador de futebol americano, e cabelos mais longos que o próprio corpo. Não posso ter certeza de que fosse realmente Lilith, mas você me entendeu). Isso foi na minha época de garoto esotérico, em que eu vivia acreditando em energias e tentava fazer psi-ball, telecinesia e todas essas coisas que eu lia pela internet para me sentir mais participativo no mundo. Hoje em dia eu vejo o quanto era babaca nessa época, mas não me entenda mal, as vezes ainda acredito em coisas desse tempo que acreditava com muito mais vigor. Mas isso também me entediou depois de um tempo, e o máximo que consegui disso tudo foi fazer uma lâmpada queimar.
Um outro sonho bastante macabro que tive foi numa das vezes em que meu primo Jonas veio dormir aqui em casa nas férias. Eu estava correndo num lugar árido, e tinha um monte de vozes estranhas em línguas ainda mais estranhas por todos os lados, e eu não sabia que voz seguir. Quero dizer, não que devesse seguir, mas eu me sentia perdido no sonho, e só queria escapar dele porque eu já sabia que era um sonho. Mas o que quer que tenha sido, não me deixou sair dele tão cedo, e quando eu acordei, Jonas estava quase em cima de mim me agitando pelos ombros e dando tapas, porque eu estava falando alguma coisa muito amedrontadora. “Evan, você está tendo aulas de latim ou coisa parecida?”, Jonas me perguntou, mas a única coisa que eu havia aprendido em latim fora uma oração católica com a minha mãe, e não me lembrava de ter tido aula nenhuma. E foi isso.
Jonas havia ficado com medo de mim, ou dos meus sonhos, ou de qualquer coisa na minha casa, não fazia diferença porque de um jeito ou de outro depois desse sonho ele raramente ia para lá. Mas essa foi a única coisa estranha que aconteceu na presença de Jonas, todas as outras se limitaram a estar comigo.
Bem, não estou aqui para falar sobre isso, apenas me perdi nesse pequeno dilúvio de devaneios. Quando eu me refiro ao “todas as outras coisas estranhas”, são pesadelos e rápidas aparições que fui vendo durante esse tempo. Eu sempre gostei muito de ficar em casa e a minha família adora viajar por qualquer motivo bobo que tiver para fazer isso. O resultado era que, como nem meus irmãos nem meus pais conseguiam me arrastar para fora do meu quarto, eles sempre chamavam algum parente da família para ficar comigo em casa. Uma pena que depois do episódio do Jonas isso não aconteceu mais com tanta frequência, mas eu ficava mais ou menos tranquilo de qualquer forma. É bom ficar sozinho, você acaba fazendo parte das coisas que você tem mais medo, mesmo que você não pense muito nisso.
Na verdade, agora mesmo, eles estão arrumando suas mochilas no porta-malas do carro para ir acampar na fazenda do meu avô paterno. Mamãe e minha irmã não gostam muito dele, mas elas gostam da fazenda, então elas fingem que gostam dele pela boa convivência. Já o meu irmão e meu pai não parecem se importar com outra coisa a não ser futebol, cerveja, e todos esses interesses previsíveis que nunca me interessaram muito. A não ser uma constrangedora vez em que meu irmão me deu vodca pura alegando ser água, eu estava com sede e bebi num gole só, e fiz o maior drama por isso porque o gosto era horrível e minha garganta estava sendo rasgada, mas ele disse que só me daria água quando eu bebesse o suficiente. Estávamos só nós dois em casa, e meu irmão sempre foi mais forte do que eu, então tive que aceitar o desafio. Quando eu já estava bêbado o suficiente, acabei soltando sem querer que o primeiro beijo que recebi foi de Jonas, e que ele não beijava muito bem para deixar o momento especial, mas que um momento após ele recompensou com outra coisa que ele sabia fazer com a boca. Depois disso, meu irmão não me fez mais desafio nenhum.
Vesti uma calça jeans e fui para a rua colocar a carta numa caixa do correio antes que todo mundo fosse embora. Atitude meio boba, enviar uma carta para o Mal achando que apagaria meu tédio, mas decidi ir adiante com a ideia, por mais que começasse a achá-la o cúmulo da babaquice. De qualquer forma, fiz o que não queria fazer durante o dia: aluguei filmes e filmes de terror, de clássicos a atuais, e sentei no sofá pelo resto dia vendo sangue e corpos sendo mutilados como se fossem frangos de bandeja de supermercado. Que divertido.
Quando eu já estava no quarto filme do dia, e a hora já passava da meia noite, decidi dar uma pausa para descansar os olhos e fazer alguma outra coisa para comer. A campainha ficara tocando desde as seis da tarde com crianças e crianças pedindo doces, situação que eu não tive que evitar porque mamãe comprara sacos e sacos cheios de bombons e chocolates, e eu os havia deixado no criado-mudo próximo à porta da sala para entregar uns e outros, também pegando alguns para mastigar enquanto passeava livremente de cueca pela casa. É muito bom, eu me sinto arejado e mais livre, uma experiência que todos deveriam fazer.
Passando da meia noite, quando a maioria das crianças já estava voltando para suas casas, decidi colocar uma boa música num volume relativamente alto, com janelas e tudo o mais devidamente fechados, e sair pulando pela sala e quartos, subindo e descendo as escadas freneticamente. Um pequeno costume que eu tenho desde que quase nenhum dos meus primos quiseram ficar sozinhos comigo, mas não foi algo que me magoou.
Quando já estava pingando de suor e exausto demais pra fazer qualquer coisa a não ser continuar minha sessão de filmes, desliguei o som e fui tomar um banho. A campainha tocou, enrolei uma toalha no corpo e desci para ver pelo olho-mágico. A rua estava aparentemente vazia e eu não liguei, por ser obviamente uma brincadeira de mau gosto, mas em cima do tapete tinha uma carta endereçada a mim.
- Ótimo, o carteiro viu minha brincadeirinha e decidiu responder.
Mas a carta estava bastante caprichada pra ser uma simples brincadeira. Estava selada com uma cera vermelha e não havia nenhum remetente. Bem, decidi abri-la, e seja lá quem aceitou a minha brincadeira, respondeu com um cordial:
“Olá senhor Evan Peters, fiquei intrigado na sua curiosidade em saber como estão as minhas festividades para o Halloween, imagino que você esteja entediado pra fazer uma pergunta desse tipo para alguém como eu. De qualquer forma, você não pode saber como estão as minhas festas sem antes participar de alguma, por esse motivo irei lhe mandar esse singelo convite para a última festa antes que a maioria dos espíritos mais interessantes tenha que ir embora, e não me reste tantas coisas interessantes para descobrir e ver. A festa irá começar às três da manhã, mas você pode chegar antes, porque muitos também chegam mais cedo. A festa também é um baile, se você preferir, também porque uma grande presença estará lá entregando presentes para os convidados. Eu acho que você já a conheceu uma vez. Atrás do convite há o endereço da festa. Mas sinta-se livre para ignorá-lo, apesar de que se o fizer, estará perdendo uma grande noite.
Com carinho, eu mesmo.”
Peguei o envelope novamente e vasculhei com os dedos, encontrando o que parecia ser o convite. Um pequeno papel vermelho cortado em triângulo, com letras escuras suavemente escritas dizendo “O Baile das Crueldades”. Título estranho, mas atrás do convite não havia nenhum endereço da tal festa, então peguei a carta do “eu mesmo” novamente.
“P.S.: você não vai conseguir ver o endereço com as luzes acesas.”
Certo. Desliguei todas as lâmpadas e senti um frio anormal percorrendo pela sala, que por sua vez estava fechada. A resposta da minha brincadeira estava começando a me dar medo e voltei aos interruptores que não estavam mais lá. Um poste se acendeu e eu estava no meio de uma rua deserta, sem enfeites de halloween, abóboras ou qualquer coisa parecida. Eu ainda estava só de toalha e descalço, e a ventania me fazia bater a mandíbula violentamente. Olhei para os lados e não tinha nenhuma alma viva. Que irônico.


- Você chegou cedo. – uma voz disse.
E a dona da voz era o que me parecia ser o homem dentro de uma capa enorme. Não há bem como explicar, mas a capa era uma espécie de iglu escuro envolta dele, era cheia de tecidos retalhados e tinha cabelos escuros colados em cima, além de um círculo de metal cheio de símbolos e um rosto triangular feito de argila colado na frente do rosto. Descobri que era uma mulher com uma voz grossa quando o casaco flutuou para trás e ela emergiu do casaco como se estivesse nascendo dele, seu rosto era todo pintado de branco com um triângulo preto na testa, e cabelos louros e lisos. Ela usava uma espécie de sobretudo preto com mangas que chegavam ao chão, mas eu também podia ver suas mãos nuas e pintadas com a mesma tinta do rosto, com escritos escuros nos dedos e nas palmas das mãos.
- O que é isso? – foi a primeira coisa que consegui perguntar.
- Minha irmã. – a mulher disse.
Espera, eu deveria estar perguntando outra coisa.
- Que lugar é esse?
- Você não sabe? – ela franziu o cenho, me avaliou e depois cheirou o ar. – Ah, você está vivo e foi convidado por ele.
- Eu estar vivo é um problema? – perguntei.
- Não, não. Alguns vivos passam por aqui. Difícil dizer se eles conseguem voltar pra casa depois. Karenina, vá buscar uma roupa decente para o rapaz, ele está nu neste lugar tão perigoso.
E a capa flutuante desapareceu.
- Não entendo como aquela capa pode ser sua irmã.
- Não a chame assim. Ela é forte, ela vai sobreviver.
Aquela conversa não tinha sentido algum, e eu resolvi não insistir demais nas perguntas, porque as respostas acabavam sendo ainda mais confusas.
- Bem, então onde é o Baile das Crueldades?
A mulher loura sorriu.
- Agora você está entendendo como as coisas funcionam por aqui. Mas por que a pressa, não quer nenhuma veste?
- Não, não... Quer dizer, claro que eu quero.
- Como você se chama, rapaz?
- Evan, e você?
- Evan? Que nome estranho. Chamo-me Karin Dreinarr Von Lyse. Mas lhe permito me chamar de Lyse, minha irmã não gosta do meu primeiro nome porque é parecido com o dela.
- Certo, Lyse. – meu nome era bastante estranho comparado ao dela, de fato.
A capa reapareceu com um... Mugido.
- Pare de reclamar, ele não lhe fez nada.
- O que ela está dizendo?
- Que eu vou pegar seus pulmões para assar primeiro do que ela.
- Você faria isso?
- Não. Você parece ter um gosto ruim. E Karenina, pode voltar para mim.
A capa flutuou sobre Lyse e a escondeu novamente, com um mugido de aquiescência. Lyse ergueu o braço segurando um sobretudo escuro parecido com o dela e me entregou. Vesti o sobretudo/vestido rapidamente e tirei a toalha por baixo, jogando-a no chão.
- Você não teria nenhuma roupa de baixo também? – perguntei, desacostumado com as minhas coisas ao ar livre.
- Roupas de baixo? Deixe-me ver. – Lyse entrou na irmã e voltou com outra coisa nas mãos, esticando o braço novamente para mim. – Aqui. Está bom para você? – era uma saia também preta e sem nenhum detalhe, similar a um kilt, mas eu achei que já era o bastante, melhor do que ficar vestindo apenas um sobretudo longo e completamente pelado além disso.
Lyse e eu caminhamos pela rua deserta e bastante iluminada com postes e postes dispersos por todos os lados, era como uma versão mais bagunçada da minha rua, e mais estranha também, obviamente. Mas mesmo com aquelas duas presenças excêntricas, eu não estava com medo, e Karenina parecia bastante simpática depois de alguns minutos perto da sua presença silenciosa, de vez em quando mugindo em confirmação ou desgostando de qualquer coisa. Mas Lyse também estava conversando bastante. Ela viera do Himalaia com sua irmã, fugiu da casa dos pais porque eles não aceitaram a nova forma de Karenina, que aparentemente fora amaldiçoada por uma “bruxa das grutas”. Isso aconteceu porque Karenina se apaixonara pelo mesmo caçador que a bruxa, mas o caçador havia preferido Karenina, que também era tão loura quanto Lyse e muito bonita. A bruxa tentou atacá-la na primeira vez, mas Lyse estava perto e a protegeu com seus espíritos bons. Frustrada, a bruxa começou a aprender feitiços mais perigosos, e conseguiu amaldiçoar Karenina naquela forma numa noite de sono ao lado do caçador. Quando Karenina acordou e não sentiu mais suas pernas e tampouco suas formas, ela mugiu tão alto que estourou os tímpanos e os olhos do caçador, além de tê-lo matado segundos depois com o horror. Ela e Lyse decidiram ir embora dali e se encontraram com uma xamã, que ensinou as técnicas de pintura no rosto para Lyse se aliar à irmã quando ambas precisassem proteger uma à outra.
- Quando eu ficava perto de Karenina por muito tempo, eu começava a tossir sangue e sabia que se continuasse assim eu morreria, e deixaria minha irmã sozinha. Mas quando aprendi a pintar meu corpo e rosto, foi como se Karenina começasse a fazer parte de mim. Eu me senti melhor e passei a compreendê-la, e ela também. – Karenina mugiu em concordância.
Chegamos a uma porta que estava pairada no meio da rua, o braço de Lyse emergiu para fora de Karenina e girou a maçaneta. Não havia nada atrás da porta, mas do outro lado da porta uma escadaria iluminada por lâmpadas vermelhas iluminou a rua quando fora escancarada.
- É aqui? – perguntei.
- Sim. – Lyse respondeu, emergindo novamente para fora da irmã.
Comecei a entrar e Lyse me puxou pelo braço.
- Você está louco?
- O quê? Mas pensei que aqui...
- Não. Você vai mesmo entrar aí sem nenhuma proteção? Isso pode ser só a brincadeira de uma Aranha.
- Mas você disse que...
- Sim, eu disse que esse é o lugar, mas você não sabe como entrar nele sem cair numa armadilha de espírito. Uma Aranha pode ser um espírito qualquer querendo companhia ou um Demônio querendo um alimento. Pode ser qualquer coisa. Neste lugar é onde tudo é livre.
- Então você pode me responder agora onde estamos?
- Aqui é Samhain. O próprio. Estamos dentro dele, e ele sempre abre suas portas nesse dia até que a Coroa do Sol apareça nos céus.
- Então ainda estaremos provavelmente seguros enquanto ainda for noite?
- Sim. Temos ainda mais oito horas para nos divertir. – Lyse deu um sorriso de menina, e Karenina voltou a mugir.
- E a armadilha? Como faço pra entrar da forma certa sem cair nessa tal armadilha? – debochei.
Lyse me deu um olhar furioso.
- Não fale desse jeito por aqui. Se você não levar a sério as leis que aqui funcionam, você não vai durar nem dois minutos lá dentro.
- Tudo bem, me desculpe. É que eu fiquei... Ansioso.
- Eu sei que sim. – Lyse enfiou um braço dentro de Karenina e tirou de lá um grande colar que pendurava um apanhador de sonhos do tamanho do meu punho fechado, feito de ferro, peles, garras e penas, penas que ela me disse serem de uma falecida fênix, e tinha uma aura quente como se o objeto tivesse ficado perto de uma brasa. – Tome, coloque no seu pescoço. Você vai estar mais protegido do seu pescoço para baixo.
- Eu conheço isso, é um apanhador de sonhos. – mas quando Lyse me fitou em repreensão, entendi que aquilo tinha um outro nome no mundo dela. – Mas como assim do meu pescoço para baixo?
- A nossa cabeça precisa de uma proteção diferente em relação ao nosso corpo. Coração e cérebro são muito distintos, é como se tivéssemos dois trabalhos diferentes em nós mesmos. Três, se contarmos o nosso espírito.
Lyse colocou a mão num bolso oculto do seu casaco e saiu com dedos escurecidos de tinta, desenhando um triângulo na minha testa.
- Eu não vou precisar dessa tinta branca também? – perguntei, sorrindo para ela.
- Não. Você ficará mais apetitoso sem essa “tinta branca”. – ela me respondeu com um sorrisinho cínico.
- Agora sim. Para onde você quer ir? – ela perguntou, e embora soubesse a resposta, eu imaginei que aquilo era alguma espécie de guia para não cair na armadilha de uma Aranha.
- Para o Baile das Crueldades.
Karenina mugiu e Lyse abriu a porta novamente. Dessa vez tinha um longo corredor iluminado por lâmpadas azuis e verdes. Entendi que as lâmpadas naquele lugar, Samhain, significava alguma espécie de advertências e guias para alguém como eu. Imaginei que deveria ter estudado mais sobre as cores primárias nas aulas de Artes.
Caminhei com ansiedade e medo ao mesmo tempo, mas me sentindo seguro com o triângulo preto na minha testa, o apanhador de sonhos no meu pescoço e agora devidamente vestido para a ocasião. Chegamos a mais uma porta que Karenina abriu com sua telecinesia e me deparei com a mulher alta e forte do meu antigo sonho, aquela que batizei de Lilith por ser tão andrógina tanto de rosto quanto de corpo. Mas a questão é que ela era realmente Lilith (Karenina mugiu em concordância quando leu meu pensamento), o que me deixou confuso sobre sentir ainda mais medo ou mais ansiedade.
Lilith usava um longo vestido púrpura sem alças, com um decote que empinava e apertava seus seios. Ela estava com cílios longos e também púrpuras, sombreados por um delineador, e segurava nos dedos um longo filtro com um cigarro na ponta. Mas o mais interessante era que ela se sentava numa poltrona vermelha e individual, em cima do que parecia um santuário vertical com degraus que formavam uma pirâmide no salão. Nesses vários degraus, escravos ruivos de pele extremamente pálida, nus, sentados, ajoelhados ou de quatro, comportavam-se silenciosamente, todos com uma coleira no pescoço que terminavam sempre na outra mão desocupada da deusa, demônio, ou que quer que aquela criatura fosse.
- Chegaste cedo, senhor Evan. Acho que já nos conhecemos antes.
- Sim, eu também acho. – disse, abaixando a cabeça e fazendo uma reverência quando Lyse me olhou com fúria e indignação. – Perdoe-me a falta de educação.
Lilith gargalhou altíssimo.
- Pare com isso. – ela disse, dando uma longa tragada no seu longo cigarro. – Pode escolher um deles. Estou presenteando todos os convidados desta festa.
Olhei para os ruivos silenciosos, e nenhum deles parecia triste, cabisbaixo ou raivoso, nenhum sentimento negativo. Era como se eles gostassem de ser escravos daquela criatura. Um deles me olhou com mais atenção, e sem querendo demorar-me mais na frente de Lilith, apontei para ele.
- Bela escolha. Este é muito obediente. Adão me disse que ele geme como louco. – ela desenrolou a coleira dele do seu dedo mindinho e o ruivo, nu, caminhou em minha direção. Me senti incomodado por todos aqueles homens descobertos na minha frente, inclusive pelo o que eu tinha escolhido, e pedi para Lyse vesti-lo com uma kilt escura como a minha. Lyse realizou meu pedido de bom grado e agora o meu presente de Lilith não estava mais com o instrumento balançando para lá e para cá como se não fosse nada. Ele era ainda mais lindo de perto, e carregava algo meio angelical meio másculo no seu rosto, talvez fosse por ter olhos grandes e claros e um furinho no queixo. E obviamente, mais alto do que eu. Também havia algo nele de nostálgico, algo que me lembrava algo ou alguém, mas resolvi apagar aquilo rapidamente da cabeça.
- Obrigado, Lilith. – agradeci, fazendo outra reverência com a mão sobre o peito e a cabeça abaixada.
Quando eu ia fazer um gesto para segurar a mão do meu ruivo, Lilith soltou outra gargalhada ainda mais alta e gostosa, como se gargalhar fosse algo parecido com fazer amor.
- Não, meu querido Evan. Ele é seu escravo, não seu igual. Ele fará o que você quiser, e você nem precisa pedir “por favor”. Ele obedecerá toda e qualquer ordem sua até o fim dos tempos. Segure-o pela coleira, porque é assim que funciona.


Obedeci e peguei a ponta da coleira escura, enrolando-a e amarrando no meu pulso. Fiz uma última reverência para Lilith junto com Lyse e a flutuante Karenina e caminhamos por mais um corredor, dessa vez iluminado por lâmpadas fluorescentes. Deparamo-nos com uma grande porta de madeira maciça, toda moldada com formas e desenhos, e um curioso anfitrião vestindo uma burca de um azul vivo, com o rosto coberto por um fino véu.
- Evan, que prazer vê-lo por aqui, fico feliz que tenha aceitado meu convite.
- Então era você? – perguntei. O episódio da carta me parecia uma brincadeira de criança comparado com o lugar em que eu estava no momento, na cerne de um mundo de espíritos e deuses.
- Sim, sim. – ele ergueu o véu azul-claro e o colocou em cima do objeto pontiagudo sobre sua cabeça. Parecia um humano como qualquer outro, e tinha o rosto simpático e afável, com uma barba rala e olhos risonhos, de um ar meio ingênuo. – Ah, e desculpe por não me apresentar. Não coloquei meu nome na carta porque ela poderia cair em mãos erradas. Eu sou Corona Solaris, mas prefiro ser chamado de Huracán. Karenina, Lyse, podem entrar, a festa é de vocês.
Lyse aquiesceu e me deu um sorriso de despedida, enquanto Corona Solaris/Huracán abria a grande porta para ela com apenas um olhar e um gesto de mãos. Ela desapareceu com seu ruivo na coleira e Karenina no seu encalço, cujo escravo já havia sido engolido por ela como aperitivo.
Huracán apenas continuou comigo para dizer que eu não deveria tentar conversar com qualquer criatura que não se dirigisse a mim, e caso ela o fizesse, eu deveria ser obrigado a conversar. Aquilo não fazia muito sentido, mas resumindo, era mais ou menos como “não fale com ninguém a não ser que alguém queira”. Segundo Huracán, boa parte dos espíritos e outros seres preferiam tomar suas próprias atitudes, aquilo tinha haver com o ego deles, ou algo perto disso.
- A festa tem seis alas diferentes, juntas elas formam o hexagrama da mansão de Samhain. Três delas estão no subnível da casa, subníveis que você não pode em qualquer hipótese entrar, ou se não o meu convite pra você se transformará num atestado de óbito. Está me entendendo?
- Sim.
- Os três outros níveis estão nesse nível e você está livre para se divertir nele. Você verá muitas escadas no nível de Maria Antonieta, mas como Lilith já lhe presenteou com um escravo, imagino que você não precise visitar aquele lugar, a não ser que se sinta curioso demais.
- Como se chamam os outros dois níveis que posso entrar? – perguntei.
- São o nível de Drácula e o nível de Dalí. O nível de Dalí é este primeiro, é muito parecido com um lugar humano, imagino que você se sentirá mais à vontade nele.
E era verdade. Quando entrei com meu escravo ruivo no meu encalço, me senti numa boate qualquer de um lugar qualquer no centro da minha cidade. Cheio de lasers e globos numa arquitetura parecida com a egípcia, com o fato de que nas paredes havia frases e frases em sânscrito. Era como uma mistura de vários adornos religiosos num mesmo lugar, e a sala era um triângulo gigante. Provavelmente os outros níveis também o eram. Várias criaturas encapuzadas me olharam, outras várias me ignoraram, e acho que vi mais uns três humanos perdidos ali além de mim, e alguns escravos ruivos ainda vivos e não engolidos por seus donos. Será que eu teria que engolir meu ruivo mais tarde também?
Sentei numa poltrona longa e púrpura no canto de uma parede inclinada e o meu escravo continuou em pé.
- Você pode se sentar se quiser. – eu disse.
- Eu não quero, eu lhe obedeço. – o ruivo disse, numa voz afável, e se sentou no meu colo.
Primeiro enrubesci e fiquei sem reação, até porque além do sobretudo que Lyse me dera eu estava usando apenas um kilt de pano fino, e me senti crescendo embaixo do calor das coxas do ruivo. Ele me encarou, entendendo meu estado, e colocou seus braços em cima dos meus ombros, esperando a minha concordância. Eu balancei a cabeça e ele aproximou seus lábios de um rosa claro dos meus e deixou que eu tomasse o partido dos movimentos. Demorei-me no gosto porque era bom, ou porque eu também não queria nenhum espírito interrompendo aquele momento tão... Inebriante. Parei por um momento e ele também, que estava movendo os quadris em cima de mim e me sentindo cada vez mais rígido embaixo das suas coxas, voltando a me encarar.
- Você tem um nome? – eu quis saber.
- Nós deixamos de ter nomes quando Lilith nos escraviza. – ele respondeu.
- Mas você tinha um nome antes, certo?
- Não posso dizê-lo mais. Eu mal lembro quando foi que tive um nome. Sequer se isso chegou a acontecer. – sua vista se perdeu numa criatura que usava uma túnica vermelha e tinha mais de dois metros, balançando-se naquela música densa e psicodélica que nenhum ser humano conseguiria produzir.
- Certo. Vou chamá-lo de Nick. – eu disse, com o primeiro nome que viera a minha cabeça. E também porque ele era praticamente idêntico a um outro Nick.
Ele franziu o cenho.
- Isso importa? Eu sou só um escravo. Lilith viaja pelo mundo para encontrar os ruivos que já tiveram um toque da descendência dos seus iguais há milênios, e esses ruivos sempre são os mais belos. E eu fui encontrado, e até o fim dos tempos eu servirei para as maiores, porque em algum momento da minha árvore genealógica, um antepassado meu teve contato com Lilith.
Sorri, porque ele enfim teve uma reação diferente além da constante expressão de êxtase na sua cara e na sua voz.
- Tudo bem, Nick. Estou com fome.
- Quer me comer?
- Não, não é isso. É que eu saí de casa acho que faz um bom tempo, e eu só tinha comido pipoca e sanduíche.
- Não sei se você vai gostar da comida daqui. Eu sou acostumado a beber só água e sangue.
- Sangue?
- Já fui servo de um vampiro. As vezes ele passava dias fora de casa e lá só tinha sangue para beber.
- Evan? – uma voz conhecida veio na minha direção.
- Espera. Levante-se. – pedi para Nick que obedeceu rapidamente. – Jonas?
Jonas surgiu rindo e dançando como se estivesse fazendo uma valsa. Ele estava com uma roupa normal e sem nada para proteger seu corpo e sua cabeça, nenhum talismã, apanhador de sonhos ou desenho com tinta do Himalaia. Aquilo era um mau sinal.
- O que você está fazendo aqui? – perguntei.
- Cara, que porra de sonho mais estranho. Mas eu estou adorando. O que você está fazendo nele afinal?
- Eu não estou no seu sonho. Eu estou aqui mesmo, e vivo. – embora aquilo não fizesse sentido algum.
- Pouco me importa. Esse otário está aqui também? Que ótimo. Quando você enfim aparece num sonho meu, é com esse idiota também. – ele apontou para o meu escravo.
- Jonas, você enlouqueceu? Eu estou aqui e agora e você também. E eu acabei de conhecer esse cara. Você não está falando nada com nada.
- Porra Evan. – ele disse, franzindo o cenho e colocando as mãos sobre a cabeça, sua testa suava frio. – Eu gostava muito de você, mas você só falava nesse cara, e agora ele está aqui também. Eu quero acordar. Não quero mais ficar aqui.
- Jonas, você comeu alguma coisa que não deveria daqui? – perguntei, segurando seu braço.
- Deve ter sido alguma bebida. Ele está perdido aqui. Ele não foi convidado. – Nick me disse. – Está vendo? Ele não tem nenhum presente de Lilith.
- Mas como isso aconteceu? – segurei o braço de Jonas com mais força, que parecia cada vez mais atordoado.
- Você nunca ouviu falar em projeção astral? O espírito dele deve ter escorregado para cá enquanto ele estava dormindo. – Nick explicou.
- Eu tenho que levá-lo embora daqui. Não posso deixá-lo nesse lugar.
- Você não precisa fazer nada. Enquanto ele estiver aqui em cima...
- Me larga! Não quero mais te ver perto desse... Ah, porra! – Jonas correu para outra porta, provavelmente indo para outro nível. O nível de Maria Antonieta.
- Vamos. – eu disse, e Nick correu no meu encalço.
Abri a outra grande, esplêndida e pesada porta e senti que havia chegado num pedaço do mundo em que o tempo parou no século dezessete ou algo próximo a isso. Luminárias extravagantes, baluartes cheios de castiçais de velas, cortinas vermelhas de uma costura sinuosa nas janelas largas que não mostravam nada a não ser um falso céu cheio de estrelas excessivamente brilhantes. Mulheres humanas com aqueles vestidos da época, saias balonê inchadas, prendendo a respiração com espartilhos e ajeitando perucas cinzas extravagantes. No meio do salão e próximo à pista de valsas, criaturas que tinham espelhos pairando no lugar de suas cabeças conversavam e riam, e mais adiante, outras criaturas com metade do rosto mutilado, os olhos em carne viva, gargalhando alto e bebendo champanhe. Uma criatura alta, morena e a única que não usava peruca, pois seu cabelo era preto e curtíssimo, atenuado apenas com um topete e uma tiara de pérolas, se aproximou de mim e do meu escravo. Ela afofou o vestido vermelho-sangue e ajeitou o decote nos grandes seios antes de falar, com uma voz doce e leviana.
- Desculpe-me pela falta de compostura. Matei Maria Antonieta e agora este lugar me pertence. Sou Berceise, a Rainha das Feiras, e todas estas são minhas servas. Bebam quanto champanhe aguentarem, mas se o fizerem demais, as gêmeas irão engolir vocês. – e ela soltou um risinho cínico, abrindo um leque vermelho que há apenas alguns segundos não estava em nenhuma de suas mãos, e nos levou para perto dos sofás bordados com penas e penas de pavão e um chafariz sinuoso no centro feito de um mármore que eu nunca havia visto. Ao redor dela, meninas de seis anos com a pele enrugada de uma velha exibiam seus anéis pesados de ouro umas paras as outras.
- Tive que matar mamãe para conseguir esta. – uma chilreou, orgulhosa e exibindo um anel tão largo que necessitaria de todo o seu braço para conseguir apertar. – Depois que ela me amamentou, eu a acertei com um pedaço de tijolo e deixei meus cachorros comerem-na. Precisavam ver a cara de sofrimento dela.
- Minha mãe nunca me obedece. Tive que chicoteá-la e mandá-la para uma senzala uma vez. Só assim ela passou a me ouvir. – uma outra narrou aflita, a que tinha a pele mais enrugada e podre nos braços e no rosto, uma leprosa que, pelo que ouvi, se chamava Jô Anna.
As outras garotas envelhecidas riram e me olharam, interessadas.
- Certo. Senhora Berceise, me desculpe não poder ficar mais tempo com a sua presença, mas estou procurando um amigo.
Berceise me olhou por cima do leque vermelho com interesse.
- Ele é da minha altura, é branco também, e tem o cabelo muito escuro e um rosto que parece estar sempre cabisbaixo. Você o viu?
- Ele subiu uma de minhas escadas. Jô Anna, leve o senhor Evan para onde está um de seu igual.
- Mas agora? – Jô Anna fez uma expressão de teimosia.
- Você ainda é minha serva. Ou vai querer que eu tire ainda mais sua juventude por me desobedecer?
Jô Anna se levantou e começou a caminhar, apressei-me com Nick ao meu lado e subimos um lance de escadas. Ela só apontou para a última porta do primeiro corredor e voltou para as suas amiguinhas feias e fúteis. Quando enfim abrimos a porta do quarto, só havia novamente a entrada para o nível de Maria Antonieta. Mas dessa vez estava cheio de criaturas despidas se deleitando com seus presentes de Lilith. Nick apertou a minha mão e fechamos a porta, descendo as escadas novamente e chegando à grande porta de entrada por onde havíamos entrado na primeira vez. Suspirei por ter voltado ao nível de Dalí, com suas características de clube noturno, exceto pela diferença de que os lasers nasciam da pele de uma criatura grotesca no centro da pista, refletiam e se despedaçavam em milhões de formas nos globos espelhados. Mas aquilo não tinha importância no momento. Corri com Nick para outra grande porta, do lado direito desta vez, sem saber aonde iria dar. E quando vi as escadas indo para baixo, percebi que era um subnível que eu não deveria entrar.
- Você não pode entrar aí, Evan. É perigoso demais. Você pode ser devorado num instante e eu... Agora que estou começando a gostar de ser seu escravo.
Nick abaixara a cabeça, mas eu percebi que ele estava vermelho. Eu apenas não tinha mais tempo de aproveitar aquela estranha celebração dentro de Samhain com o espírito de Jonas à solta nela.
- Você não terminou de falar naquela hora, sobre os subníveis e o espírito de Jonas. – eu disse.
- Eu iria falar que se o espírito dele continuasse aqui nos níveis superiores, no de Drácula, Maria Antonieta ou Dalí, quando ele ficasse cansado e quisesse dormir o espírito dele seguiria seu rumo natural de volta para o seu corpo, e ele acordaria bem no mundo de vocês. Mas se ele for aos subníveis, é muito difícil isso acontecer. Vão achar que ele já está morto e vão querer se alimentar dele.
- Droga... – eu disse, Nick suspirou, fez uma oração sussurrada e descemos as escadas de mãos dadas.
O lugar era como uma versão animada de uma pintura de Bosch, com pássaros grotescos e carnívoros que grasnavam incessantemente, criaturas disformes e sombras engolindo maçãs e escravos humanos. No teto, mandrágoras em formas femininas imploravam por perdão enquanto eram torturadas com equipamentos pontiagudos e todos os tipos de lâminas, de espadas a tesouras longas e afiadas que flutuavam perto de um velho com seis longos braços. Uma harpa gigante no centro do salão era comandada pelos dedos de um homem nu, que estava sentado sobre ela e tinha uma aparência doentia. Mas a harpa produzia um som perturbador e nem um pouco angelical, o que apenas tonalizava o ambiente como uma espécie de inferno compacto. Mas para todas as criaturas que estavam ali, que torturavam e eram torturadas, era a mais pura diversão de uma boa festa.
- Evan, lembre-se que você tem que encontrar seu primo. Pare de olhar para essas coisas, elas só vão querer convidá-lo a sofrer junto com elas.
- Tu-Tudo bem. Eu estou bem.
Ouvi um mugido conhecido e me virei, desesperado demais para fazer qualquer coisa a não ser isso.
- Karenina! Onde está sua irmã?
Lyse surgiu de dentro dela com um coração escuro e pulsante nas mãos.
- Evan! O que você está fazendo nesse subnível? Vá embora daqui! Você precisa sair enquanto eles ainda não prestaram atenção em você!
- Não, Lyse! Eu preciso de ajuda. Eu acho que o espírito do meu primo se perdeu aqui, e ele ainda está vivo no meu mundo. Vocês precisam me ajudar, eu não sei mais o que fazer.
- Certo, acalme-se e respire fundo. – Lyse me ordenou, e eu respirei. – Agora preciso dizer uma coisa antes: você sabe que tudo tem um preço, certo?
- Certo.
- A bruxa que amaldiçoou Karenina está aqui, e ela é muito fraca e vulnerável com humanos. Ela se encanta com eles rapidamente. E ela está mais poderosa. Vou lhe pedir para se aproximar dela e matá-la com isso daqui. – ela entregou o coração nas minhas mãos suadas. – Quando você o fizer, Karenina vai voltar à sua forma original e nós lhe ajudaremos a encontrar o espírito do seu primo e a sair daqui, porque acabei de ver que o Senhor da Grande Harpa lhe viu e já está anunciando um novo alimento para seus amigos. O alimento é você e seu escravo. Agora vá, e não deixe eles te tocarem. A bruxa está no Lago das Lágrimas bem ali.
Lyse me empurrou e voltou para dentro de Karenina, que também mugiu para me apressar. Amarrei a coleira de Nick envolta dela, que deixou de bom grado, mas Nick tentou me impedir.
- Quero ir com você.
- Não. Não quero que nada aconteça com você. E se acontecer qualquer coisa, Karenina o protegerá. – eu disse, e corri em direção ao Lago das Lágrimas, onde uma horda de criaturas gritava de dor e medo, prazer e alívio. A única criatura que não fazia nenhuma dessas coisas era uma mulher nova com um vestido escuro próxima à uma árvore morta, segurando um graveto, ou uma varinha. Ela era a bruxa certa, pois quando me viu, deu um sorriso jovial e sedutor para mim, e eu me aproximei, segurando o coração com força nas mãos, que agora estava vermelho e apetitoso.
Ela colocou os braços envolta da minha cintura e eu lhe dei o coração. Ela sorriu, achando o coração lindo e de bom gosto. Mas quando o mordeu, o coração voltou a ficar negro e venenoso e ela vomitou uma bolha de sangue no meu rosto.
O delírio coletivo fez com que tudo acontecesse muito rápido. Vi ao longe Lyse abraçando uma menina loura e nua que acabara de sair do casaco flutuante que antes era ela mesma, Karenina agora na sua forma original. Depois Lyse empurrando Nick e o espírito de Jonas para dentro do casaco flutuante que agora parecia ser uma espécie de portal. E por fim Lyse e a menina Karenina me dando um abraço rápido e me empurrando lá para dentro também.
Acordei no meio da rua da minha casa com um Nick desmaiado e eu o agitei com o máximo de forças que me restavam para acordá-lo, e consegui. Nick me olhou como se eu fosse um estranho, saiu correndo para o nada, e cansado demais para me perguntar o que aquilo significara, fui para casa descansar. Quando olhei o relógio na sala, ainda era a mesma hora e o mesmo minuto em que eu fora para aquele outro lugar com o convite de Huracán.
Foi quando acordei no meio da tarde do outro dia que me lembrei do rosto de Nick. Era o Nick que eu conhecia no meu mundo. O primeiro cara por quem eu havia me apaixonado e que causara um ciúme doentio em Jonas na época. É claro, muito lógico você numa hora estar num inferno real e depois estar pensando nos seus primeiros amores, mas foi o que aconteceu. E o Nick do meu mundo me ligou na mesma tarde. Ele havia tido um sonho estranho, e nesse sonho eu o protegia o tempo inteiro. Ele queria muito falar comigo, e queria muito terminar o que nunca havia começado. Por medo ou ansiedade, ou até mesmo por uma coincidência dispersa num mundo estranho, ele queria muito falar comigo.
Fiquei com muita vontade de enviar outra carta anônima no período de solstício.



















Black Cherry
Artes: Christopher Conn Askew

Feliz dia de Samhain :)