Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Deixar



Através das estrelas
Há oceanos incrustados de pérolas
Esmeraldas e rubis, dos maiores tamanhos e das mais belas cores
Oceanos verdes como contas desbotadas, submersas em pequenas lágrimas
E eu posso lhe contar o que há atrás deles.
Através deles, há um esconderijo de olhares
Pálpebras machucadas com rochas e corações de vidro
Montanhas escavadas com unhas de papel
Não é tanto quanto os oceanos
Mas não é mais do que os feitos de um pequeno e insignificante sol afogado
Amordaçado com vontades, preso em silêncios, lá no fundo
E poderiam surgir cavaleiros ferozes e corajosos
Vorazes na busca por alguma coisa, que não se lembra de nada
E mesmo que seja a maior das coisas a se lembrar
É o oceano que deve lembrar
Nas crostas de conchas e costas de sal e grutas de gelo e o meu abandono
Me dissolvo em espuma, me faço de novo, sou as ondas e talvez serei a areia molhada
Sugando teus pés e a tua pele na água fria
Procurando pelo que seria meu, pelo que seria nosso
Queria tanto poder te falar: "não vá para o fim dos oceanos"
Eles são perigosos e traiçoeiros, tecidos na mais pura pressão de ser
um pouco de cada vez, um pouco de tudo, o que possa ser?
Há um lugar que guardei para ti, mas ele não te pertence
Sou egoísta até com meus paraísos de conchas e algas
Não me ouças mais
É apenas o medo.
Me escave, se afunde em meus braços ocêanicos,
Eu te amo.










~














Andrew Oliveira

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Witch Fire - 15: Mar


Existe um domínio
Numa praia dos céus
Suspenso
Sobre o pêndulo de amores
da areia da praia de sal
Eis o meu feitiço
E a minha paixão
.


Num tempo em que Bruxas Escuras viviam escondidas em outras dimensões, por medo do preconceito e das chacinas que as Bruxas Claras causavam a estas, e também para manterem suas linhagens na cronologia das eras, príncipes, reis e Demônios passaram a cultuar as suas novas vizinhas. Conhecê-las, convidá-las para festivais e, até mesmo amá-las.
Sorath, um aprendiz de Demônio, deveria passar por uma provação para ter seu próprio reino, seus próprios chifres, símbolos de respeito e liderança. Ele deveria abdicar de uma parte muito importante de sua alma para ser iniciado no Ritual de Provação.
Quando ele percebeu, o sangue e a dor já tomavam conta do seu corpo. E nos seus braços, o pedaço de sua alma jazia morta. O pagamento para o treinamento de um futuro Demônio. Saroth, seu oposto, seu irmão gêmeo, o amor de uma pequena, ingênua e melancólica bruxa.
O pagamento estava feito, e qual seria o próximo passo?

~
1323

Inanna ergueu o corpo da areia funda e macia da caverna, tocou nas palmas das mãos com os dedos. Estavam frias. Pôs uma das palmas sobre a boca e arfou. O ar estava frio. Arrancou suas roupas e ficou nua. Tocou no ventre, e sentiu. Puxou os cabelos com força até arrancá-los e encharcar o couro cabeludo com sangue, mas as longas madeixas negras cresceram de novo. Mas seu corpo nunca mais cresceria. Teria aquela forma infantil pelo resto de sua eternidade.
Pois agora ela jamais conseguiria morrer.
Ela se sentou numa pedra, parou para ouvir a brisa suave do deserto carregado de areia fina e afiada, num assovio quase imperceptível. E tomou uma decisão. Afinal, ela não poderia ficar se lamentando pela maldição que agora estava dentro da sua alma. Ela iria atrás de Sorath.
Inanna saiu da caverna e começou a caminhar, descalça, esfarrapada e desnutrida, naquele deserto morno e estranho. O sol estava alí, despencado no horizonte como um relógio a marcar sempre a mesma hora. Mais como a escuridão do que como a luz. Ela sentiu uma ferroada no pé e viu um escorpião cravar-lhe a cauda negra no calcanhar. Tirou-o e o mastigou, faminta, o veneno escorrendo da boca. Ela precisava de uma carne farta e gordurosa que a nutrisse, mas no momento tudo o que havia eram escorpiões, serpentes e outras criaturas menos agradáveis de se digerir. Ou, ao menos, que apenas uma imortal conseguisse digerir.
Inanna ouviu um estrondo, olhou para trás ao mesmo tempo em que a caverna se ruía e se fechava com grossas pedras, tornando-se um amontoado de rocha e cinza no meio de um mar de areia. Então era essa a intenção? Torná-la imortal para assim aprisioná-la e deixá-la alí, esfomeada, sozinha e sem nenhuma esperança de alguém que pudesse libertá-la?
Ela não conhecia mais sua irmã. Aquela criatura horrenda, furiosa e mesquinha não era Hecate. Hecate era carinhosa, compreensiva, sempre falava frases soltas que futuramente serviam como conselhos, embora as vezes temperamental. Mas nada que chegasse naquele nível de ódio e rancor, movidos por uma manivela de intenções chamada Sorath.
Como Hecate poderia ter sido influenciada tão facilmente? Como, de uma hora para outra, sua irmã se transformara numa inimiga?
Pois a dinastia Inasumi agora deserdara Inanna. Do contrário, seu pai estaria procurando aos quatro cantos daquele mundo para encontrá-la. Ela sabia disso, sabia desde o momento em que vira os soldados do seu pai ao lado de Hecate, com Sorath rindo baixinho, de escárnio, deleitando-se com o seu triunfo. Ele provavelmente se tornaria o queridinho dos Inasumi, o marido perfeito para Hecate. Com a morte de Saroth, ele não teria obstáculos. E futuramente, sem ninguém perceber, o patriarca Inasumi estaria morto e Sorath já seria dono de suas posses, e do seu exército. Era esse o plano? Pois tudo aquilo era tão previsível. Hecate via o futuro, porque ela não estava vendo isso também?
Que fossem para os infernos. Ela não se importava com mais ninguém a não ser a si mesma. Enganaram-na, traíram-na, e depois a deserdaram sem dar tempo para que ela explicasse qualquer coisa. No final eram todos egoístas e viam apenas seus próprios objetivos pisando em cima dos menores. Inanna era uma peça inútil, obviamente ela seria descartada. Por que ela não pensou nisso antes? Agora tudo se encaixava tão bem...
Porque se Inanna se casasse com Saroth, ele, o verdadeiro príncipe das verdades, seria o favorito do patriarca Inasumi, seu pai. Hecate iria para longe morar nas Dimensões dos Demônios com Sorath, e Sorath só obteria ela, enquanto Saroth seria o futuro patriarca Inasumi, dono de terras infinitas e de um exército amendrontador e respeitado por qualquer mundo que ele fosse. E quem sairia ganhando com sua bondade e sua gentileza seria Saroth. Sorath teria de lutar séculos para obter ao menos um terço da riqueza que a dinastia Inasumi tinha. Sorath afinal foi inteligente. Descartou dois empecilhos do seu caminho e agora, não seria apenas mais um Demônio entre tantos, seria um Demônio líder de uma dinastia poderosa que sobreviveu com orgulho à Guerra das Dimensões.
E quanto à Hecate?
Inanna sentiu vergonha da irmã, e depois desprezo, culminando num ódio. Que mulher estúpida, enganada tão facilmente pelo amor...
Mas Hecate também pagaria com o mesmo preço, Hecate não sairia impune. Ela não tinha mais medo algum da irmã e dos seus segredos de futura xamã. Ela riu consigo mesma. De repente, rir assim, de escárnio, lhe fazia bem. Rir daquela forma mascarava a feiúra das suas intenções. Vingança, justiça, preços...
Ela entrou num colapso interno de decisões. Mas de uma coisa ela agora tinha certeza. Faria todos eles pagarem por seus atos, cada um, até o mais fraco soldado. Da sua irmã à Sorath, do seu pai à dinastia Inasumi. Ela extinguiria qualquer um que tivesse seu sangue, qualquer um que estivesse relacionado aos acontecimentos que se sucederam.
Quem eles pensavam que eram para lhes tirar a vida mortal, a sua felicidade, o seu amor? Num dia ela era uma pequena bruxa adolescente de treze anos descobrindo o amor carnal pela primeira vez. No outro, era uma bruxa perigosa e fugitiva, que supostamente matou o seu amante, cegou a mãe e eclodiu o ódio entre os Inasumis.
Sim, ela cegou a mãe, a mãe mereceu. A mãe não tinha o direito sobre o seu corpo. O seu corpo era o seu santuário, não o da mãe. A dívida de Selene já estava paga, ela estava cega, catatônica, um vegetal numa cadeira de balanço, sendo cuidada e banhada todos os dias por Hecate, lá, naquela mansão tão perto das colinas, de um campo cheio de dentes-de-leão azuis, antílopes gigantes, Lordes-Leões que dialogavam ora ou outra com os homens, e um eterno pôr-do-sol. Nunca o noite. Jamais o silêncio.
Imortal?
Sim, mesmo fraca, frágil e faminta, seu coração jamais pararia de bater. Ele agora estava negro, como a bruxa Escura que era, como a mulher que se tornara.
Inanna mordeu o pulso do braço esquerdo com força e fez sangrar. Gotejando o líquido denso e escarlate na areia, atraindo com seu cheiro saboroso de inumana mais escorpiões. Ela pegou todos que apareceram, um por um, os mastigou e engoliu o veneno com afinco. E então segurou o pulso com a mão direita, orando para os seus desejos.
- Hiperion, eis o pagamento. Me ajude, me proteja, me leve para aquele que destruiu meu destino.
O sangramento exacerbado de Inanna parou, junto com a abertura da pele rasgada que se fechava em segundos. Um ponto negro surgiu no horizonte e saltou tão rapidamente que Inanna teve tempo apenas de prender a respiração antes que Hiperion entrasse no seu estômago e a levasse para outro lugar.
Ela sentiu um gosto salino na boca e uma ardência nos olhos.
O solo estava macio e úmido, gelado nas costas, ela afundou as mãos na areia e por um momento se esqueceu qual era a sua vontade naquele lugar. O sol estava mais perto, o mar era verde, branco e espumoso. Inanna teve a sensação de que esmeraldas estavam afundadas naquele mar, ou quem sabe já pertencessem a ele? Ao longe, do lado contrário ao mar esverdeado, um ponto alaranjado crepitava. Ela podia sentir o cheiro amadeirado queimando no ar, Sorath estava acampando alí. Ele estaria com Hecate? Que Hecate fosse para os infernos, azar o dela ter de assistir a desgraça do seu amante.
Inanna se sentiu ainda mais frágil e vulnerável do que quando fugiu pela primeira vez, antes da profecia da sua vida se realizar. Mas ela não estava mais dando importância para isso. O pior castigo se tornara sua maior arma.
Sim, Hecate estava lá, ela reconheceu de longe os cabelos negros e lustrosos presos num coque e o corpo alto e curvilíneo, harmônico no vestido negro de mangas e rendas finas. E antes que Inanna pudesse fazer qualquer coisa, Hecate a viu e começou a correr em sua direção, o coque se desfez e os cabelos enormes ondularam ao vento salgado e faíscaram sobre os raios do sol. Inanna virou-lhe as costas e chamou, com um assovio, as gaivotas.
- Birde lamya eyya!
As gaivotas voaram para cima de Hecate, empurrando-a para o mar, tentando cegá-la, enquanto Inanna, agora livre para agir, corria para o acampamento, em direção à fogueira, para perto do seu inimigo, atacando inconsequentemente como o peão de uma frente de batalha. O mar esmeraldino ficou mais agitado, Sorath surgiu numa névoa escura e ela pulou sobre o seu pescoço, entrelaçando suas pernas na cintura do demônio e regurgitando todo o veneno de escorpião que bebera em cima do seu corpo.
Sorath a jogou no chão mas ela ainda não havia desistido. Ele gritou escandalosamente enquanto sua pele chiava e seus olhos se cegavam. Inanna subiu no seu corpo mais uma vez e arrancou com as próprias mãos os chifres que ainda se desenvolviam, fazendo seu rosto deformado receber um banho de sangue das crateras que agora ocupavam sua cabeça, o rosto da menina agora ensanguentado também. Sorath buscou uma adaga que tinha presa por um bolso de couro na calça e enfiou com força no ventre de Inanna, ela caiu estrondosa na areia, urrou de dor, e viu um pedaço de rocha, afiado e cristalino, à sua espera.
Vamos, mate-o, a hora é agora, suba no seu corpo, mate-o, bruxa, mate-o e não tenha piedade nem do seu espírito.
Tu és a bruxa, a bruxa da noite, a bruxa com a alma mutilada, com a alma em chamas. Como era que Selene chamava aquelas que eram traídas pelas próprias teias do destino. Aquelas que sobreviviam à água e ao ar, às noites mais secas e os dias mais frios? Sim, é o que tu és. Vamos, chamada Inanna com a alma flamejando em ódio e imortalidade.
Uma bruxa de fogo.
Inanna levantou, cambaleante, vomitando sangue e produzindo bolhas escarlates cada vez que tossia, mas com o pedaço de rocha firme na mão direita. Sorath lhe penetrou a adaga novamente, ainda tentando suportar as queimaduras que não paravam de aprofundar na pele do seu rosto, pescoço e ombros.
- Com isto, não terás mais filhos nem com a magia mais poderosa. - Ele riu, mesmo que sua situação estivesse pior que a de Inanna.
As pálpebras de Inanna ficaram molhadas de algum líquido mais escuro e denso. Ela estava chorando. Mas não era o mar. Era o sentimento de ausência.
Ela largou o pedaço de rocha enquanto Sorath rasgava ainda mais seu ventre, fazendo suas pernas se banharem em sangue enquanto ela produzia gritos roucos e chorosos. Era hora de chegar ao seu limite. Ela não poderia matá-lo, mas poderia castigá-lo.
E só precisou de um único chamado para o sangue gotejando nas suas pernas e fluindo da sua garganta parasse. E sua ferida enorme no ventre, se fechasse.
- Hiperion...
- Inanna. - A pantera negra não surgiu num salto amedrontador, mas sua voz se fez presente na cabeça da menina.
- Arranque a vida no ventre de Hecate.
Foram apenas sussurros, mas Sorath, agora cego e frágil, ouviu com nitidez.
- Não! Não! NÃO! NÃO OUSE TOCAR EM HECATE!
Foi a vez de Inanna rir. Rir... Quão estranha era a situação e no entanto ela sentiu vontade de rir do desespero patético de Sorath, que caiu de joelhos e começou a chorar como um menino perdido numa floresta infestada de demônios. Hiperion surgiu no litoral da praia, saltando com suas patas e músculos e os pelos negros cintilando no estranho sol do horizonte, daquele mar esmeraldino que assistia Hecate ser violentada por centenas de gaivotas enfeitiçadas.
As gaivotas se afastaram com a presença da deusa e deixaram a Inasumi mais velha alí, abandonada nas ondas, manchando a água esverdeada com a sua água avermelhada. Hiperion se aproximou agora a passos calmos, embora a situação fosse de extremo desespero. O grito de Hecate poderia ser ouvido a quilômetros quando o Deus Terreno lhe abocanhou o ventre e arrancou seu pequeno feto, eficaz, veloz e cruel. As mandíbulas e as narinas de Hiperion bufaram fumaça, e depois ela abriu a bocarra úmida para cima, para o céu, tirando as cinzas do bebê da sua boca. Inanna por um momento achou que veria as estrelas e a noite novamente, e mesmo que seu peito apertasse, e mesmo que ela fosse imortal, sentiu vontade de ver aquilo novamente, a sua maldição que lhe era tão bela. Ela entrou no mesmo estado de transe em que estivera quando ordenou que Hiperion, o Impiedoso, arrancasse os olhos da mãe, enquanto ouvia os gritos de Hecate deitada nas bordas da areia que era enxaguada a todo segundo pela espuma do mar, usando todas as suas forças para fechar o ventre mutilado, ela também nunca mais conseguiria ter filhos. Então era esse o anel? A última parte da profecia? O anel simbolizava o ciclo de desgraças que o toque de Frigga causava? Ela não conseguia mais pensar nisso, o choro aterrador de Sorath ao seu lado, cego e com fontes de sangue brotando das feridas onde estiveram os chifres, lhe perturbava.
Inanna se levantou, tonta, fraca e arquejante, os órgãos abertos dentro do corpo, estragos da adaga de Sorath, sangrando e se debatendo, e a ferida da sua barriga já fechada, o que ela faria pra conseguir curar tudo aquilo? Imaginou que o Deus Terreno fechasse as feridas internas também, mas ele, como o próprio nome já dizia, era Hiperion, o Impiedoso, ele tomou apenas o sangue necessário para realizar o feitiço que ela lhe solicitara. Nem um pouco mais, nem um pouco menos.
Mas ela continuou, caindo e levantando, para perto da irmã agora infértil, com o filho assassinado e o amante destruído. Já era o bastante para Inanna curar a dor da traição e da morte de Saroth? Quem sabe ela poderia matar Hecate também...
E a atitude mais imprevisível aconteceu, Hecate não lhe atacou, não lhe rogou nenhuma praga, tampouco invocou qualquer Deus Terreno para destruir cada pedacinho de Inanna e fazê-la sofrer com sua impossibilidade de morrer. Hecate se pôs de quatro e ergueu um braço, e com o outro, segurando o ventre ainda se fechando com a mão esquerda que curava de forma tortuosa e lenta. Mas então ela abaixou o braço e lhe fitou com a expressão mais triste e desesperada que uma bruxa poderia fazer. Suas lágrimas eram a da Virgem Maria carregando Jesus Cristo desfalecido e surrado nos braços finos, o corpo frio e a face, uma moldura de madeira e sangue entalhada com uma coroa de espinhos, com seus cílios longos submersos em poeira e os lábios secos e rachados como a terra mais árida, um pequeno mundo perdido em pele descascada. Os seus cabelos negros e molhados, o véu de um luto prematuro. A diferença era que não havia mais filho algum dentro dela.
- Eu iria levar Sorath para longe, para que a profecia não se completasse... - ela abaixou a cabeça, arquejou e gritou, como se ainda estivesse sentindo a mordida de Hiperion arrancando-lhe a sua menina.
Inanna ouviu aquilo como uma pancada na cabeça, e caiu ajoelhada na praia, os braços frouxos e o olhar embaçado, os cabelos secos e embaraçados com tanto sangue. Ela era uma concha vazia.
- Por que não me falastes nada?
- Por que não me destes tempo pra falar?
As gaivotas estavam distantes, pequenos pontos aqui e acolá rodeando o oceano de esmeraldas.
- Tu não me destes chance alguma também, não? - uma lágrima escorreu do olho esquerdo, embora ela não tivesse se dado conta disso. - Me destruiu, me odiou, e eu já não sei mais se ainda és... Minha amada irmã.
Hecate gritou de novo, mesclado ao choro e aos soluços, fundindo-se na tela crepuscular atrás dela, sendo azul e laranja desbotado, e um pouco de vermelho para enfrentar o verde. Nem uma xamã conseguia controlar as forças das lágrimas e da dor da perda.
- É estranha a forma que o amor tece o que fazemos, o que poderemos fazer, ou o que nunca teríamos coragem de fazer, não é, irmã?
Inanna nada falou, apenas a olhou sem querer olhar.
- O que poderia acontecer, se nada disso houvesse se realizado?
Hecate se deitou agora mais longe da espuma do mar que chiava e borbulhava, mais perto de Inanna.
- Hecate?
- Sim?
- O que é o anel da profecia? É tudo isso ou...
- É o famoso anel de esmeralda de Frigga. - ela arfou e voltou a falar. - Ele foi feito aqui, nessa praia, num tempo em que anjos se apaixonavam por deuses e bruxas. Um arcanjo de nome Metatron buscou a esmeralda mais bela e a fundiu num anel do ouro mais raro.
"Metatron entregou aos homens que cultuavam a deusa Frigga, a senhora da fertilidade, do nascimento e da maternidade, para que eles presenteassem Frigga e lhes trouxessem mais filhos saudáveis. Mas uma bruxa infértil roubou do altar de bronze feito para Frigga, o altar da Corte do Coração, e tentou invocá-la, para que esta lhe trouxesse uma forma da bruxa conseguir ter uma filha e um filho, e continuar sua linhagem."
"A deusa apareceu, mas em vez de bondosa e compreensiva, surgiu regada em fúria e sobressalto. Ela lhe entregou a cura para sua infertilidade, mas em troca, pela sua ousadia e egoísmo em ter roubado o anel, teria que dar outra coisa para Frigga se sentir satisfeita."
"A deusa então lhe disse: nenhuma mulher da tua família poderá criar sua primogênita, do contrário, elas só causarão desgraça e maldições à tua linhagem, feitiços que nenhuma eternidade poderá desfazer, pois tua linhagem será grande, e as filhas de tuas filhas serão poderosas, tão poderosas que uma delas mal conseguirá controlar seus poderes. E teu sobrenome a partir de hoje será CoeurCourt, a Corte do Coração, o altar do teu furto, da tua glória e da maldição que permeará por séculos, até que uma de tuas distantes filhas consigam finalmente destruir o anel presenteado a mim. A minha esmeralda bordada com ouro, feita por Metraton, símbolo da religião dos homens por mim."
Hecate se sentiu sonolenta. Se ela dormisse agora, dormiria para sempre?
- E se conseguirmos o anel? - Inanna tocou nos lábios, mal acreditando no que acabara de falar, quebrando totalmente a atmosfera de tristeza e luto daquele crepúsculo ao lado de Hecate.
- A profecia estará completa.
- Ele ainda sequer existe?
- Ele só vai deixar de existir quando a última CoeurCourt deixar de existir, irmã.
E a Inasumi mais velha adormeceu.








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Black Cherry
Arte: Nicole Absher

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Witch Fire - 14: Frigga


O grande patriarca da dinastia Inasumi recebeu uma notícia: sua última filha, Inanna, fora amaldiçoada com o Toque de Frigga. Inanna seria, enquanto vivesse, uma bruxa amaldiçoada pela tristeza e pela dor, e se ultrapasse esses dois sentimentos, obteria apenas o sangue e a traição.
Hecate, a mais velha, que tinha um futuro promissor mais como xamã do que como bruxa, lhe revelou após um sonho certa profecia que despencou no mundo onírico: a pantera negra, os olhos da mãe, o estupro do Enganador, a imortalidade, e por fim, o anel. Mas Hecate nada compreendera o que aquilo significava.
A profecia poderia ser desfeita se Inanna permanecesse intocada. O patriarca Inasumi decidiu então fazer dos céus os seus vigilantes.


~
1323

Inanna fechou suavemente os olhos num encontro quase erótico de cílios longos e negros na face pequena e pálida enquanto Saroth escalava sobre seu corpo. Beijando com delicadeza suas pernas, respirando ardorosamente em suas coxas, rasgando seu vestido negro emoldurado com contas de diamantes e fazendo voar pequenos lampejos de riqueza e transparência. O corpo adolescente de Inanna era curvilíneo, sinuoso e tão perigoso aos olhos quanto um escorpião do deserto mais cruel. Ela tinha uma tatuagem negra que se desenhava como chamas escuras e fazia um círculo no seu umbigo, emblema de sangue da sua dinastia. Sua pele era tão cheirosa e macia que Saroth não decidia se admirava o aroma de lírios selvagens do norte das Montanhas Cinzas ou se beijava cada mínimo pedacinho do corpo da menina. Inanna estava deitada eroticamente na grama enquanto era torturada pelos lábios de Saroth, aquele príncipe gentil, cavalheiro, inteligente, belo e feroz com seus olhos de demônio insatisfeito.
Não.
Agora?
Sim.
- Te entregas?
- Antes que os dentes-de-leão azuis pousem na grama.
- É tão proibido.
- E te pertences.
Inanna abriu as pernas e abraçou os quadris rígidos de Saroth com elas, enquanto ele se deitava carinhosamente e massageava seu seio esquerdo, sugando o direito. Eram tão pequenos e cabiam inteiros na palma das mãos. Ele adorava aquilo. Inanna deixou a boca entreaberta e ele veio, cheio de tal sagacidade e triunfo, não em êxtase mas em vitória, para os seus lábios. Sua boca era gentil e seus lábios, verdadeiras lanternas na escuridão daquele poema romântico que Inanna mal se lembrava mais como começava. E então ela sentiu, o começo, a parte mais difícil e dolorosa, mas ela o amava e o queria, e jamais pediria que ele parasse. Saroth moveu as coxas e os quadris e abraçou Inanna ainda mais forte enquanto ela era cruelmente desvendada por ele. Houve uma ventania, ela se lembrava, e houve também uma lufada de dentes-de-leão dourados rodopiando incansavelmente naquela trilha entre pássaros que cantavam sem parar e a grama que arrepiava a pele das suas costas, enquanto aquele príncipe belo, de cabelos escuros e beleza pueril a penetrava.
Anoiteceu.
Inanna arregalou os olhos e sentiu lágrimas escorrerem dos seus olhos, e sem entender porque começara a chorar e porque o céu estava com aquela aparência tão assustadora, algo que ela nunca havia visto durante os seus treze anos de existência. O sol, onde está o sol?
Saroth chegou ao ápice, a beijou nos dois lados das bochechas e só então percebeu que Inanna não estava como ele pensava estar.
- O que houve? Eu a machuquei? - ele arregalou os olhos pensando se ela estivera gostando ou não do seu carinho, ou se não conseguira suportá-lo e agora a dor estivesse latente.
- Eu não sei. Meu peito está doendo.
- Me... Me...
- Não foi você. É dentro. Dentro de mim. É meu coração.
- Inanna.
- Te afasta de mim.
- Inanna!
- Te afasta de mim!
- As estrelas, Inanna!
Inanna não entendeu, olhou para o céu e o céu parecia quase dia com a quantidade de estrelas que espocavam e surgiam no breu. Uma manada correu para o sul e ela sabia que eram os antílopes gigantes. Mas o que estava acontecendo para eles estarem tão agitados? Inanna se levantou, vestiu o que restava do vestido negro e longo e começou a caminhar sem olhar para Saroth.
- Inanna, minha querida, tu estás bem?
Inanna agora estava consciente das suas lágrimas, a dor em seu coração parecia aumentar, mas muito devagar ela estava entendendo o significado de tudo aquilo.
- Vá embora, Saroth.
- O quê?
- Me ouvistes, vá embora!
Ela parou, Saroth no seu encalço, desejando tocar em seu ombro e fazê-la olhar para ele, mas a ideia lhe parecia amedrontadora.
- Me dê um motivo. - ele pediu.
Inanna agora soluçava, abraçou a si mesma pois a dor estava agora insuportável, como centenas de agulhas espetando seu coração, lá dentro, e era impossível fazer aquilo parar. Saroth se aproximou com apenas um passo, mas de alguma forma ele entendeu também.
- Mamãe enfeitiçou o céu. Hecate conhece o feitiço. E o feitiço é o aviso para meu pai e para seu exército de alquimistas. Desde pequena, me disseram que nasci com o toque de Frigga. Sabes o que isso significa? - ela arfou, os soluços voltaram mais fortes, praticamente descontrolados. - Eu nunca vou poder procriar.
- Meu amor... Não faça isso comigo. - E Saroth compreendeu pela primeira vez que também estava chorando desde que anoitecera.
Inanna chorou desmesuradamente, fechou os olhos com força.
- E por que pensei que poderia sonhar com isso? Desde que o vi, achei que afinal, num sonho futuro, eu pudesse... Eu pudesse... Mas como posso com os céus de mamãe me velando? Com os antílopes gigantes anunciando? Com as estrelas descarando o futuro e a incerteza no meu peito? Vá, Saroth, antes que papai chegue.
- Mas Inanna.
- Vá!
Ela olhou para trás, suas palavras ganharam mais força com seu olhar de falsa fúria, descobertos por camadas de lágrimas. Os cabelos longos e negros agora desarrumados, o rosto pequeno e oval contorcido num misto de tristeza e altivez. O céu amanheceu novamente, e Saroth já estava a uns cem metros de distância naquele campo aberto quando viu a matriarca Inasumi chegar e segurar os braços de sua filha com força e frieza.
- ME LARGA!
- Criança estúpida!
Selene Inasumi a estapeou, e de novo, e de novo, até Inanna cair no chão e se encolher como um bebê desamparado.
- Eu lhe falei isso a vida inteira! - a mãe se ajoelhou, ainda rancorosa, para violentar a filha com arranhões e tapas.
- Pare, mãe!
- Eu vou lhe trancar no sotão pelo resto de sua vida!
- PARE MÃE!
- Não conhecerás mais ninguém! Não amarás mais ninguém! Porque não podes procriar! Nasceste com o toque de Frigga! Por que não aprendeste a conviver com isso?
Inanna mordeu a palma da mão até fazê-la sangrar, com rapidez buscou a varinha num ponto secreto do seu vestido, esfregou-a com seu sangue e a ergueu para cima, para o céu amanhecendo, para a névoa e para os dentes-de-leão azuis que desciam sobre os cabelos escuros e longos de Selene.
- HIPERION!
Uma pantera negra se materializou numa lufada de ar quente e pulou rugindo sobre Selene, prendendo seus braços com suas patas enormes e ameaçando-a com a bocarra aberta e cheia de presas afiadas.
- MATE-A HIPERION, PELO MEU SANGUE! EIS AQUI O TEU PAGAMENTO! - Inanna se levantou, a varinha e a mão pingando com o sangue que desapareceu no mesmo instante. O seu rosto, um verdadeiro santuário de arranhões e tapas.
- NÃO! NÃO! FILHA! NÃO! - a mãe implorou.
Hiperion, o Deus Terreno com corpo de pantera negra, deu uma patada impiedosa e precisa no rosto de Selene, arrancando um olho com uma unha que se cravou com o golpe. Selene gritou e implorou por sua vida. Inanna virou as costas contra a mãe mutilada e olhou para horizonte, buscando desesperadamente um ponto que pudesse ser Saroth, mas era apenas céu, sol, frio e colinas. A vida de repente estava desbotada.
- Não a mate. - ela sussurrou, e bem poderia ser um fiapo de pensamento alto, e Hiperion cessou a última pata pronta para rasgar o pescoço de Selene.
Inanna olhou determinada para o Deus Terreno que esperava a próxima ordem. Foi muito sangue pago, daria tempo de sobra para isso.
- Me leve para longe daqui.
Hiperion descansou as patas e Inanna levantou a saia do pouco vestido que lhe restava no corpo para subir nas costas da divindade. Selene soluçava sangue enquanto pressionava as mãos na ferida aberta no estômago. Ela tentou erguer um dos braços, mas ele caiu pesadamente na grama.
- Inanna...
- Eu te amo, mamãe.
Selene agora estava chorando.
- Eu também.
Inanna abraçou o pescoço grosso e másculo da pantera enquanto ela erguia as patas e começava a saltar e correr como nunca. O sol ainda estava lento e morno no comecinho do horizonte, com uma névoa aqui e acolá, nuvens róseas e púrpuras num céu não necessariamente azul, não necessariamente escuro. Ainda havia resquícios da noite, ainda havia como ver. Inanna olhou para trás e contou rapidamente as estrelas que insistiam em piscar mesmo naquele mundo de ouro e chamas se transformando numa bola laranja que já se preparava para penetrar os grandes campos daquele lugar com raios e sombras.
- Corte esse caminho, vá para o outro lado. - ela ordenou, e a pantera negra começou a correr para a direita.
O exército do seu pai estava chegando, sim, ela havia visto nas estrelas. O brilho delas era malicioso demais para isso não estar tão claro. E afinal ela nem precisava das estrelas para pensar na possibilidade. Ela só não viu como seu pai chegaria.


~
1680
- Mas que ousadia! - Berrou Friddah, se levantando desajeitada do chão, pronta para uma batalha cruel.
- Quieta, mulher. - Dirigiu-se Carlotta, sem nem olhar para a xamã descabelada.
Ammaleth correu para abraçar a irmã, enquanto os olhos de Carlotta se clareavam de um verde escuro para um verde esmeralda lentamente. Carlotta apertou-a com força, e depois segurou-a pelos ombros, como as irmãs caçúlas costumam fazer.
- Tenho notícias horríveis para ti, irmã.
Ammaleth imaginou perfeitamente quais eram.
- As Escuras estão conseguindo desenvolver seus planos?
- Sim. A líder delas, Inanna, não está mais aqui, ela acabou de abrir o segundo cadeado do Grande Portal. Crucificou Radamathys e... - Carlotta engoliu em seco. - Matou várias bruxas para conseguir isso.
- Mas... Mas...
- Ammaleth, não temos tempo. Só te digo que estou infiltrada na dinastia de Inanna, e tive que ajudá-la a abrir esse portal. Passei anos comunhando com a Escuridão para conseguir isso. Mas não sei. As vezes tenho a impressão de que Inanna sabe que sou uma Clara e...
Ammaleth abraçou-a de novo. Carlotta sentiu um peso se esvair do seu coração, algo impregnado a tanto tempo lá como se já fosse parte dela. Mas não havia tempo pra chorar. O mundo agora estava sensível com a corda arrebentada por Inanna, o primeiro cadeado. Em que dimensão Inanna estava agora?
Friddah já estava calma, apenas olhando com um certo receio para as irmãs. Embora lá no fundo do seu peito ela sentisse vontade de abraçá-las também. Sentimentos... Há quanto tempo ela estava presa na natureza ao ponto de não saber mais como reagir a seres humanos? Friddah tornara-se uma eremita após a morte de sua mestra, Amanara Legda, a xamã ruiva de espírito cansado, mas de personalidade feroz. A criatura mais próxima de uma família que ela teve.
Ammaleth sentiu, pois quando se tratava dos piores sentimentos, ela sabia, ela conhecia, ela desvendava contando cada mínima ruga ao redor dos olhos, embora a pele de Friddah fosse tão branca e lisa que talvez não tivesse ruga alguma. Friddah percebeu o conhecimento de Ammaleth, como a xamã instintiva que era, mas não fez nada quando sua irmã do meio se aproximou e lhe segurou a mão.
- Friddah... És tu mesmo?
A expressão rígida de Friddah desapareceu e pela primeira vez em mais de uma década, sua testa se franziu e seus olhos se umedeceram. Ammaleth parecia ter o poder inconsciente de aquecer almas aflitas.
- Lembras de mim, Ammaleth? - ela sentiu uma gota salgada e morna descer pelo rosto. O que era aquilo? O significado das lágrimas era chorar? A última vez que ela chorou e gritou como mais uma vez uma criança desamparada foi quando Amanara fora assassinada. - Pensei que mamãe tivesse me arrancado das tuas lembranças...
Um estrondo de pensamento veio na cabeça de Ammaleth no mesmo instante. Ela balbuciou mas então parou, e reorganizou sua cabeça para enfim falar com calma.
- Na minha primeira missão de impedir que Radamathys abrisse o primeiro cadeado, tive que procurar por um livro de demonologia, mas só consegui isso quando o espírito Rosanne, nossa avó, se fundiu ao meu. Foi tão rápido que pensei ser uma lembrança dela, de Rosanne... Mas era minha. Uma irmã chamada Friddah, uma irmã que cuidou das minhas feridas, que levava meu balancinho até ao céu, perto das estrelas. Que consertava minhas bonecas de porcelana...
Foi Friddah dessa vez quem tomou a atitude para abraçá-la. E após alguns poucos minutos de alívio, lágrimas e silêncio, as irmãs se reuniram, com Auguste quieto e boquiaberto. Ele mal lembrava de Carlotta...
- Friddah, esse é meu marido Auguste. Ele é o único que sabe que não sou humana.
Friddah quase olhou com horror para Auguste, mas sabendo que aquilo magoaria Ammaleth, ela sorriu e deixou-o beijar-lhe a mão. Friddah e Carlotta sabiam do futuro de mortais que conheciam bruxas, mas mantiveram-se caladas.
- Bem, não tenho muito o que falar além do que vocês já sabem. Mas isso não é de conhecimento de vocês.
Ela começou.

"Vocês devem conhecer a crença horrenda de Mary Donna de que nenhuma Coeurcourt pode ficar com sua primogenita. Motivo pelo qual ela me expulsou, e eu fui adotada por seres humanos. Sem ninguém para me ensinar, tive que sair da casa dos meus pais adotivos por medo de ser assassinada ou... Por qualquer outra coisa. Na floresta eu conheci Amanara, uma xamã, que me ensinou a ser como ela, passou todos os seus ensinamentos para mim e os segredos dos Deuses Terrenos e dos Demônios.
Durante esses conhecimentos que fui adquirindo, ela escreveu uma profecia enquanto eu estava em outra dimensão. Lembrem-se que xamãs são as maiores profetas do nosso mundo, é impossível uma xamã, por mais fraca que seja, errar a profecia que escreve ou amaldiçoa. Mas Mestra Amanara não conhecia nada daquilo, ela escreveu após um sonho, um sonho cheio de sangue e humanos e bruxas uns contra os outros numa total desordem das Linhas. Ela não conseguiu decifrar nada do que escreveu, e passou a ficar obcecada com sua profecia, pois ela sabia que isso ultrapassava seus conhecimentos de xamã, e talvez apenas uma Guardiã de Sheol conseguisse ler aquilo tudo com clareza.
Mas não tivemos tempo. Enquanto descobríamos as criaturas da Floresta dos Deuses e tentávamos decifrar cada verso, aconteceu um colapso:
Encontramos Inanna e várias de suas bruxas mais fortes alí, escravizando as criaturas que viviam escondidas na Floresta dos Deuses, a floresta que apenas criaturas sobre-humanas podem ver, e que fica após a Floresta da Mandrágora. Inanna ordenou às suas súditas nos atacar, e foi uma batalha horrível e sangrenta.
Eu tinha apenas quinze anos quando isso aconteceu, mas já era poderosa, afinal, eu tinha uma xamã ao meu lado. Gastei muito sangue para invocar Krishna, a Deusa Terrena a qual tenho uma ligação, e convencê-la a lutar por mim. Amanara já estava muito velha para isso, além de extremamente ferida. Só me restava fazer isso..."

Friddah parou um pouco para respirar, e então sentiu a mão quente das irmãs nos seus ombros, dando-lhe forças. Ela agradeceu com um sorriso e uma lágrima, e então prosseguiu.

"Arranquei olhos, fiz da pele delas carne pútrida e pustulenta. Mas quanto mais eu e Krishna lutávamos, mais elas apareciam para nos atacar. Inanna não estava mais lá entre nós, Inanna havia roubado a profecia que estava no vestido de Amanara, e depois roubou-lhe o coração, e alí mesmo comeu. Indo embora saltitante e feliz, cantando uma canção numa língua desconhecida, pensando que estivesse mais poderosa do que nunca.
As bruxas que restaram também foram embora, e então caí com meu braço direito quebrado e o esquerdo com um corte profundo e enorme, resultado do meu pagamento para com Krishna, que só fechou a ferida depois.
Quando acordei. Krishna não estava mais lá, mas o espírito de Amanara drenando o sangue do seu próprio corpo e curando todas as minhas feridas. Um pássaro escarlate e líquido se dissolvendo na minha pele, o último ato de amor de Amanara para mim..."

Friddah tocou na sua boca, há quanto tempo ela não falava tanto assim? Há quanto tempo seus diálogos não duravam mais do que duas ou três palavras? Com Deuses, Demônios e Criaturas, era tudo rápido, eficaz, riscos de pensamentos. Ela estava agora recomposta, pois precisava contar a sua história para alguém, e a oportunidade finalmente lhe batera as portas.

"Amanara passou todo o seu conhecimento para mim através do seu sangue, ela sabia que Inanna tentaria lhe roubar isso, e então secou seu coração para, quando a batalha terminasse, ela conseguisse transferir tudo para o meu corpo enquanto me curasse."
"Passei a morar na Floresta dos Deuses, perto do túmulo que fizera para Amanara, e com o tempo, as criaturas e os espíritos hostis se acostumaram com a minha presença. Quando tomei coragem e força suficiente, invoquei alguns daqueles espíritos mais antigos, aqueles que nunca tiveram um corpo e, por isso, são os mais disformes e poderosos. Eles me ensinaram através da alquimia a criar homúnculos, pseudo-humanos que poderiam enganar facilmente qualquer um. Foi assim que criei Arpe, meu mais fiel escudeiro. E através de outros homúnculos que enviei para as montanhas onde a dinastia de Inanna vive, descobri seus objetivos e a linha que ela estava começando a traçar para começar suas guerras. Com o homúnculo Arpe, o mais forte e resistente que criei até então, comecei a percorrer o mesmo caminho que Inanna, eu já sabia que ela conseguiria abrir o primeiro cadeado, e eu, estava pronta para abrir o segundo."

- Continue, Friddah. Nós não vamos lhe julgar. - Ammaleth sussurrou, Auguste alí atrás ouvindo a história com atenção. Carlotta estática e surpresa.
"Me perdoem por estar tão horrívelmente equivocada. No final eu quase ampliei o plano de Inanna. Mas eu estou tão consumida em vingança por esta criatura. Me sinto tão amarga e presa pelo que aconteceu com minha Mestra..."
Nenhuma das irmãs se abraçou, apenas se entreolharam com afirmativas silenciosas, e Friddah foi quem falou:
- Eu vou ajudá-las. Não sei o que pretendem, não sei qual é o plano de vocês. Mas vou ajudá-las. Não importa. Irei perseguir Inanna até o último segundo da minha vida. Nem que eu tenha que bagunçar cada parte do Inferno com isso.

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1323
Um homem alto e encapuzado com um manto branco saiu da terra e puxou as pernas de uma enfraquecida Inanna no meio do nada. Ela estava fraca com o tanto de sangue que havia oferecido para Hiperion e agora não tinha mais força alguma para resistir. Quando o homem carregou, ela não fez qualquer movimento, parecia que estava pronta para isso acontecer. Ela abriu os olhos bem de leve, e o céu ainda parecia anoitecido, mas era só tristeza.
Acordou numa cela triangular, oculto numa caverna aberta no topo, fazendo a luz entrar como uma lâmpada natural. No silêncio, um filete de fonte gotejava e ecoava no ar, ela estava com outras roupas, um vestido negro novo, embora seu corpo ainda estivesse sujo e ela se sentisse sórdida por dentro. Ela precisava de um banho, um longo e delicioso banho. Para aliviá-la daquele dia, para aliviá-la de tudo.
Aquela altura, Saroth devia estar chegando no seu reino, arrumando seus pertences numa bolsa de couro e indo embora para outro lugar ainda mais longe. E quanto Sorath, seu irmão, futuro promissor como Demônio e Príncipe? Ele ainda estaria ao lado de Hecate? Casaria com ela? Teria filhos? Inanna sentiu inveja da irmã. Desejou que ela morresse.
Com Hecate tudo dava certo. Não foi ela quem nasceu com o toque de Frigga, ela poderia ter quantos filhos quisesse, pelo tempo que durasse, e construir uma linhagem tão grande quanto a dinastia Inasumi. Não foi ela quem estava predestinada a ser observada pelos céus, os maiores vigilantes de seu pai, para que Inanna nunca conhecesse a carne. Não foi ela quem precisou abandonar o seu amor, cegar a sua mãe e quase morrer num deserto, tudo porque ela só queria viver.
Então viver era isso? Sangue, areia e abandono?
Ela procurou nos bolsos ocultos do vestido sua varinha, mas nenhum sinal, além de sequestrada, fora furtada.
A criatura encapuzada de brancou entrou no lugar e tirou o manto do rosto cabisbaixo. Era Saroth. Inanna imediatamente entrou num misto de desespero e alívio, e se colou na grade para aproximar as mãos e tocá-lo. Saroth se ajoelhou gentilmente e a beijou.
- Minha querida, vim tirá-la daqui.
- E os soldados de meu pai? Não há nenhum vigiando este lugar?
- Arranquei o coração daqueles que estavam aqui.
Saroth tirou da sua bolsa de couro marrom uma garrafa de barro fechada com uma rolha, cheia de água, e entregou para Inanna enquanto destrancava o cadeado com uma longa chave pontiaguda, feita de osso. Inanna saiu desesperadamente da cela e abraçou Saroth, que estava com um cheiro diferente, mas que continuava tão quente e fraterno quanto antes.
Saroth começou a tocá-la.
- Meu amor, não há tempo, precisamos sair daqui. - Inanna sussurrou, receosa, hipnotizada com os lábios de Saroth.
- Minha querida, não há mais ninguém em um raio de quilômetros aqui. Somos apenas nós. E seu pai provavelmente demorará para chegar. Minha querida, minha Inanna, minha bruxa, esta é a hora para nos amarmos...
- Me sinto tão... Suja.
- Para mim, estarás sempre perfeita.
Inanna fechou os olhos, devagar, quase parando, e abriu as pernas para encaixar Saroth junto ao seu corpo. Mesmo hidratada, seus lábios ainda estavam secos e rachados, e Saroth estava tão estranhamente violento, como se estivesse provando da sua carne pela primeira vez, de novo...
Vários soldados entraram na caverna extensa e longa. Inanna olhou atormentada para eles, enquanto Saroth se erguia furioso e a deixava alí mesmo ao chão. Que atitude era aquela? Saroth jamais faria uma coisa dessas.
- Sorath! - surgiu Hecate furiosa do meio dos soldados carrancudos. - O que estás fazendo com a minha irmã?
- Ela me seduziu, Hecate! Ela me persuadiu a abrir a sua cela e depois me hipnotizou para fingir amá-la! - esbravejou Sorath, com uma expressão falsamente confusa e atordoada, enquanto Inanna se levantava envergonhada do chão e se encolhia perto da grade, segurando duas barras de ferro como se estas fossem a única coisa que ela tivesse no momento.
- É mentira, irmã... Ele me enganou. Eu... Eu pensei que fosse Saroth.
- Saroth? Estás louca? Tu matastes Saroth, Inanna!
Inanna arregalou os olhos para a irmã, como uma xamã poderia estar sendo enganada assim tão facilmente? Aquilo era demais para ela. Sentiu os joelhos se fraquejarem e os olhos se afogarem em água do mar salgada e inquieta como num dia de tempestade.
- Eu não... Saroth fugiu...
- Tu matastes Saroth, teu amado, Inanna! Queres ver o que restou do corpo dele? Queres ver de novo o que fizeste? E depois ainda cegou nossa mãe com tua fúria! Estás demente como uma bruxa eremita! Não discernes mais a realidade da fantasia!
- Não... Não... - Inanna apenas conseguia sussurrar, na garganta agora seca.
- E agora roubas meu Demônio para concluir teus planos egoístas! Rouba meu amado de mim como se isso não significasse nada!
- Irmã... Por que me acusas de tudo isso? Nada disso é verdade... Eu... - Mas os soluços que se engatavam na garganta e os olhos embaçados de lágrimas não deixavam-na prosseguir. - Não, irmã... Não...
- Louca, demente, cruel, mesquinha! É o que tu és! Fingindo ser uma garota inocente, quando na verdade é uma criatura inescrupulosa que só se sacia com o sangue e a desgraça!
- Irmã... - Inanna agora estava chorando, desfalecida no chão, ainda segurando as barras de ferro da cela em que estivera, os cabelos pretos imundos, o vestido novo lhe parecia agora um enfeite bizarro para aquela situação. - Estou fraca, me ajude... Me salve... E não acredite nessas mentiras...
Mas Hecate não havia terminado, ela se aproximou e puxou o corpo enfraquecido de Inanna para estapeá-la, enquanto Sorath ria baixinho e discreto. Um soldado e fitou desconfiado e ele parou. Mas Hecate não. Hecate prendeu os braços da irmã com seus joelhos e começou a estapeá-la com uma raiva inimaginável, rasgando sua pele, desejando deixá-la cega também, embora a própria Hecate já estivesse cega no coração.
- Me mate... - Inanna sussurrou, fazendo uma bolha de sangue inchar e depois espocar da sua boca.
Hecate parou, limpou as lágrimas com as costas da mão e se levantou.
- Eu quero morrer. - Inanna voltou a chorar. - Se eu matei meu Saroth, não há mais nada que eu possa fazer aqui...
Hecate se levantou e se afastou, como se Inanna fosse uma leprosa.
- Eu quero morrer... Me mate, irmã... - ela implorou, a voz falhando, rouca e aguda, infantil. Uma criança estuprada no deserto e depois trocada por um demônio qualquer.
- Não, não vou matá-la, Inanna. - Hecate a olhou com toda a frieza que seu coração, ou a falta dele, permitia. - Vou te dar o maior castigo que a dinastia da nossa família poderá dar.
- Não! Não! - Inanna se arrastou, humilhada e seminua, com o rosto inchado e uma fonte de sangue saindo da garganta e secando nos lábios rachados. - Irmã! Me mate irmã! - ela chorou como nunca na vida, e as lágrimas desciam como ácido na pele imunda de terra, areia e sangue seco.
Inanna se ajoelhou e puxou o vestido de Hecate, Sorath chutou seu queixou e fê-la arrebentar-se para o outro lado, caindo e não conseguindo mais ter forças nem para chorar.
- Irmã...
Hecate tirou sua varinha da manga do vestido e começou a girá-la para cima, a caverna escurecendo com as nuvens escuras se acumulando e fundindo, criando trovões e uma garoa afiada e gélida. Inanna fechou os olhos, o gosto metálico do sangue na boca, as mãos geladas e o rosto surrado. A última lágrima de sua humanidade descendo na terra, despencando como se pesasse uma tonelada. E o seu coração, tomado por artérias que escureciam e se tornavam patas de aranha na sua caixa torácica. Ela não fitou sua irmã nos olhos, mas sorriu, porque ela a amava, e Hecate jamais poderia tirar isso dela. Jamais.
- Vos immortalis! - Hecate esbravejou, e o deserto estremeceu.











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Black Cherry
Arte: Nicole Absher

terça-feira, 8 de maio de 2012

Witch Fire - 13: Profecia


Já houve um tempo em que Deuses Terrenos confiavam e amavam seres humanos, lhe contavam seus segredos e compartilhavam da sua carne, e até mesmo da visão de seus mundos. Já houve um tempo em que Deuses Terrenos íam facilmente a rituais sem necessitar de sacrifícios ou virgens, apenas pelo prazer em ter seres humanos por perto.
E então houve a Guerra das Dimensões.
Os seres humanos, por puro instinto de proteger sua própria espécie ou quem sabe por egoísmo, cortaram seus vínculos com os Deuses Terrenos e empurraram as Bruxas Escuras como peões para a guerra, enfrentando demônios e criaturas que vinham de Dimensões mal-fechadas. A raça de Bruxas Escuras foi praticamente dizimada, e as Bruxas Claras pouco ou nada fizeram para ajudar a dinastia adversária.
Os Deuses Terrenos sentiram-se magoados com a atitude dos humanos, mas a ferida maior ainda estava por vir. Os humanos, cegos por uma nova ilusão fanática e absurda após a Guerra das Dimensões, projetaram na cabeça dos seus iguais um crucifixo que proclamava a dor, a ignorância e o desrespeito para com os deuses e os demônios, e até passaram a confundir os mesmos. Chamavam os Deuses Terrenos de Demônios, e os Demônios de Obras de Deus. Os humanos, tomados por uma fúria sem motivo ou causa, queimaram suas artes, seus livros, aqueles que ainda lhe permaneceram fiéis até a morte, tentando desesperadamente acabar com a liberdade da vida e da natureza.
Magoados, machucados e traídos, os Deuses Terrenos tornaram-se ariscos e pouco amigáveis, e até mesmo com as Bruxas, as suas melhores amigas, mães, irmãs, companheiras, amantes, inclusive também os jovens pagãos que outrora entregavam seus corpos para o prazer da carne agora os acusavam de serem o mal, possuídos por uma religião asquerosa que os tornavam carneiros e escravos de dogmas contraditórios, pautados num livro cruel e fantasioso.
O vínculo entre uma Bruxa e um Deus Terreno passou a se tornar raro, até mesmo de século a século. A não ser que esta, provando sua coragem, a força do seu sangue e da sua linhagem, buscasse a Máscara que pertencia a determinado deus, com ajuda da sua Caixa Pandorífera, sua Energia, e enfrentasse o maior dos perigos, o maior dos seus medos, para assim obter a aprovação da divindade desejada.

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1680


O pensamento ecoou como um estalo na mente de Carlotta.
"Carlotta, assim que fores liberta daqui, vá ajudar tua irmã."
Ela compreendeu a voz de Radamathys no mesmo instante e o fitou nos olhos. Era perturbador e angustiante ver um demônio crucificado, e Carlotta não era a única a ficar horrorizada com aquilo, exceto Inanna, as outras quatro bruxas franziam os cenhos e apertavam as mãos sobre os seios, como se fosse doloroso até para elas. Mas nada nem ninguém poderiam ter noção da humilhação que Radamathys estava sentindo, aquilo era mais do que um ultraje à sua raça, era pisar na sua honra e na sua dignidade.
"Não fique triste por mim, me julgava forte e indestrutível, mas esta bruxa de nome Inanna me parece um ser muito mais perigoso do que uma matriarca comum... Creio que ela não pertença à esta época, e se está viva até hoje sem ter se tornado uma súcubo, é algo que vai além da minha compreensão de dimensões e tempo..."
Carlotta sentiu vontade de chorar, queria de todo jeito se mover, ajudá-lo a sair dalí, curar suas chagas.
"Não! Carlotta! Pare! Não faça nada até Inanna te libertar desta ordem! Pare com isso! Já lhe aconselhei, vá ajudar tua irmã imediatamente depois que for embora daqui, depois que eu abrir o primeiro cadeado do Grande Portal, as coisas ficarão fora de controle, tanto para bruxas e humanos quanto para demônios e deuses."
"Mas o Grande Portal não pertence à outra dimensão?"
"Aí que tu te enganas... Imagine os universos e dimensões como uma grande teia, e então imagine a aranha tecendo esta teia no seu núcleo, agora pense que esta aranha está tecendo tal teia para nos proteger de um holocausto. Esta aranha tem seis patas, em vez de oito, cada pata é um cadeado equilibrando dimensões, mundos e universos, e se cada pata for destruída, ficará cada vez mais difícil para ela tecer a teia e manter as coisas em ordem. Esta aranha é o Grande Portal, Carlotta, e nós somos as moscas que ela está tentando segurar na sua teia!"
"E por que Inanna e sua horda de Escuras querem destruir as patas da aranha?"
"Eu desconheço suas ambições, bruxa Carlotta... Só posso imaginar que Inanna seja um grande morcego faminto pela aranha."
- Acha-o belo, Carlotta? – a voz de Inanna arrepiou os pelos dos braços de Carlotta como se ela tivesse acabado de aparecer naquele cenário, em vez de ter estado alí o tempo inteiro.
- Não entendi, mestra.
- Acha este demônio belo? Olha-os com tanto interesse e dor que parece até apaixonada por tal presença... – ela formou um sorriso malévolo no rosto de menina.
- Impressão sua, mestra Inanna.
Radamathys a fuzilou com o olhar e Carlotta abaixou a cabeça, numa aquiescência à sua inferioridade perante Inanna, enquanto esta gargalhava insanamente.
- Pois muito bem, está na hora, Radamathys, a noite já está chegando, junto com tua utilidade para mim.
- Senhorita Inanna... – Radamathys falou num sussurro rouco, um filete de sangue escorrendo do canto da sua boca.
- Sim?
- Como queres fazer o ritual de invocamento ao Grande Portal se precisarás de uma formidável quantidade de sangue para isto?
- Ah! – ela deu um sorriso simpático, jovial, ingênuo e sapeca. – Isso não é problema, meu caro Radamathys.
Carlotta suou frio, se Inanna queria matá-la, pagaria muito caro por isso, porque ela lutaria até o fim por sua vida e pela vida de Ammaleth.
Mas Inanna estava longe de planejar matar sua nova bruxa escura mais poderosa, porque ela se lembrava perfeitamente de que Carlotta sabia abrir portais.
As quatro bruxas se entreolharam, aflitas, e então quase ao mesmo tempo se ajoelharam, depositaram suas varinhas no chão e começaram a pedir por clemência e salvação, como se Inanna fosse uma imagem em movimento da Virgem Maria, pronta para absolver os pecados daquelas criaturas.
Inanna nada falou, nada recitou, nada proclamou. Ergueu sua varinha no céu, estralou a língua, fez desaparecer as pupilas das órbitas, e seus cabelos esvoaçaram e flutuaram no ar como serpentes vivas e furiosas cravando os dentes ao primeiro movimento ameaçador nos seus territórios. E então, sem ter tempo para pensar como começou a acontecer tudo aquilo, as quatro bruxas subalternas começaram e se atacar, pular uma em cima da outra, arranhar seus rostos, morder seus pescoços, rosnando feito animais doentes de raiva, rasgar suas peles e quebrar seus braços, gritando, esbravejando, numa luta pela sobrevivência tão ou mais angustiante que a crucificação de um demônio. Carlotta nada podia fazer, então apenas se afastou e pôs as mãos sobre a boca chorosa e soluçante que se recusava a falar alguma coisa, naquela cena de mutilação coletiva e cada vez mais insuportável de se ver.
Radamathys também virou o rosto e fechou os olhos num sinal de dor e respeito por aqueles seres manipulados facilmente e tão frágeis ao poder impiedoso de Inanna que mal sentiram quando já estavam enfeitiçadas, desde que entraram naquele círculo e obedeceram cada ordem de sua matriarca. A última viva engatinhou em cima da mais destroçada, em que um de seus olhos estava arrancado e pendurado numa víscera, vomitou sangue em cima desta, pois seu fígado estava para fora na barriga aberta e rasgada, e morreu.
- E então, Radamathys, é sangue o bastante? – perguntou Inanna com impaciência.




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1663

- De novo.
- Estou cansada!
- De novo!
- Eu não aguento mais!
- Se não fizer de novo, não lhe darei refeição por dois dias.
Friddah fuzilou a xamã Amanara com o olhar. Sentou-se emburrada na grama, próxima a uma árvore e voltou a unir os dedos das duas mãos como se estivesse segurando uma bola no centro.
- Pense, faça com que tudo se volte para a tua Caixa Pandorífera. Não deixais nada interromper tuas forças. Tu és uma energia em constante e inconstante movimento, e deves com tua sabedoria domar estes dois lados. O descanso pode vir depois. - disse a xamã, as rugas se acentuando no canto dos olhos, a boca meio trêmula, os cabelos cinzas e ruivos se movendo levemente aos seus passos. Os pássaros teriam parado de chilrear?
"Eu sou meus cabelos e sou minha boca, eu sou meu fogo e minha terra, minha água me conduz junto aos meus ossos e meu ar, minha respiração faísca sobre a grama molhada e o falcão inviolável. Eu sou meus olhos, sou meus cílios e tudo o que eles representam. Eu sou uma única energia, minha energia se move a cada tremular de dedos, enquanto minhas unhas crescem e minha saliva escorre."
Friddah imaginou cada parte do seu corpo se unindo num núcleo, no peitoral, perto do coração, e depois se fluindo, uma energia azul-esverdeada se deteriorando a cada pulsar do seu coração e depois se unindo novamente como partículas formando fibras musculares, indo diretamente para as suas mãos e as pontas de seus dedos. E agora eram seus dedos que pulsavam, esquentavam, respiravam. A menina abriu os olhos, e sua energia estava lá, uma bola de luz verde e azul, que fluiu e se tornou parte da natureza segundos depois.
Amanara bateu com seu cajado na cabeça da menina.
- Ai!
- De novo!
- Eu não aguento mais, já disse! Não tenho mais força alguma nos braços!
- Besteira! Pare de choramingar tanto!
Friddah imaginou esfregar o rosto de Amanara em algum estrume na floresta, e a xamã velha bateu novamente o cajado na sua cabeça por ter desejado tal coisa.
- Ódio não leva a nada, menina. Tampouco o amor. Tua única arma no mundo é o teu poder. Concentra-te em devaneios, concentra-te em sentimentos frágeis e pueris, e tua vida escorrerá das tuas mãos sem significado ou função.
A criança abaixou a cabeça, respirou fundo, estralou o pescoço e os ombros e voltou a concentrar-se na sua energia. Ela deveria vir para o mundo externo novamente, havia muita energia sobrando e colocando-a para fora poderia haver mais utilidade, além de ensinar seu corpo e equilibrar cada fiapo de energia no momento certo. Vamos, feche seus olhos, tu não estás aqui, tu estás dentro de ti mesma, tu és tudo o que pensa ser capaz de fazer, tu fazes parte do mundo e no entanto podes muito bem sobressair-se dele. Não há apenas ele, há outros, pense nisso, concentre-se nisso.
Quando abriu os olhos estava num deserto. O céu estava nublado e uma ventania assoprava areia no seu vestido, cabelo e olhos.
- Mestra Amanara! - ela chamou.
Nenhum sinal da velha xamã.
- Mestra Amanara! Onde eu estou? - mas nada. Mestra Amanara não estava lá, não estava compartilhando daquele mundo, ou dimensão, ou seja lá que lugar fosse.
O deserto era gelado, sua ventania era cortante e parecia pinicar no corpo, ou talvez fosse a areia entrando no seu vestidinho preto de saia longa como se seu corpo fosse uma ampulheta. Friddah observou o céu, sentia que deveria olhar para ele com calma e esperar por algo que ela sempre soube que viria. Onde ela estava? Dentro de si mesma? Sua alma era um deserto frio com uma ventania agressiva? Ela começou a caminhar.
Embora suas articulações travassem e ela sentisse um medo voraz, a adrenalina e a ansiedade eram maiores. Era o que faziam suas pernas se moverem, seus pés afundarem na areia fofa com determinação. Assovios, a garganta estava seca e as nuvens do céu nublado riscavam o ar, pois para as nuvens o ar era a sua pele. Davam a impressão de que o céu fosse uma praia, um céu litorâneo, um céu de areia.
O horizonte não tinha sol, mas tinham raios brancos e ondulantes que projetavam sombras colossais no deserto, como que tapando a estrela atrás de si. Quanto mais Friddah caminhava, maiores aquelas cortinas avoadas ficavam, mais presentes e vibrantes. Vibrantes? Sim, Friddah também começou a sentir uma vibração na areia, estaria se aproximando dalí um gigante ou um deus terreno? Ela decidiu correr, queria chegar perto do sol de algodão e teares o quanto antes. Correu como se estivesse sendo perseguida por um Demônio do Sol, como se estivesse saindo da casa de alguma mãe ingênua e entristecida, como se estivesse correndo de si mesma.
Uma revoada de pássaros azuis surgiu por detrás das cortinas evoaçantes ao mesmo tempo em que o sol lutava para sair dos fundos daquelas ondas de pano usurpadoras com raios insistentes e que apenas deixaram as sombras maiores. Os pássaros eram longos e sinuosos como serpentes aladas, suas caudas pareciam ter o dobro dos seus tamanhos e ondulavam no céu enquanto suas asas impediam que o sol formasse mais luz no deserto, suas sombras solitárias na areia afundando numa espécie de passos invisíveis.
E então um passo estarrecedor que fez Friddah cair de rosto na areia, fazendo-a engolir sem querer e tossir desmesuradamente. Mas a areia não estava mais na sua boca, não havia areia nenhuma. Uma nova sombra surgiu, dessa vez mais grande e menos pontiaguda. Ela ergueu a cabeça e um animal quadrúpede gigantesco a encarava por detrás do focinho preto e úmido. Uma espécie de cachorro gigante com pêlos longos e dourados e dono de uma cauda que desaparecia nos quilômetros do deserto. Friddah não sentiu medo da criatura, pelo contrário, sentiu afeto. Ela conhecia aquele animal de aparência ingênua e afetuosa, conhecia aqueles olhos amendoados e enormes e o arfar da sua boca entreaberta.
Ela o conhecia pois ele era a sua inocência.
O cachorro gigante virou o pescoço como que tentando reconhecer aquela menininha e então descansou as patas traseiras sentando-se obedientemente, causando outra vibração exagerada no solo e impossibilitando Friddah de se levantar novamente. Mas uma segunda presença foi a mais curiosa: a que estava em cima do cachorro, conduzindo-o pelo deserto.
Uma menina, não mais alta que Friddah, de pele absurdamente branca, enevoada, os cílios, as sobrancelhas e os cabelos tão dourados e louros quanto os pêlos do cachorro que agorava olhava para lá e para cá, acompanhando os pássaros azuis que rabiscavam o céu. Seus cabelos se arrastavam na areia enquanto ela caminhava em direção à Friddah desnorteada, e ela usava um vestido branco com saia balonê tão fofa e estufada que tinha-se a impressão de que a menina flutuava a centímetros do chão. Sua aparência era eteréa, não era exatamente uma aparência, era um rosto com olhos, nariz, e uma boca que estava alí porque deveria estar, e não porque a sua criação ou seu desenvolvimento lhe permitiram ter tais feições. No seu peito, bem no meio, um buraco em que se via o horizonte do outro lado do seu corpo. Era um lugar diferente, um pequeno visor de outro lugar, onde via-se a grama verde e espessa, um céu mais azul e menos desbotado que aquele do deserto, uma canção quase sussurrada que saía de lá. O que era aquele mundo dentro daquela menina de branco no meio do nada?
- Mereça. - ela disse, e tinha a mesma voz que Friddah, a mesma tonalidade musical do timbre de Friddah, até a respiração era idêntica.
- O quê? - Friddah só soube perguntar.
A menina, sem mais ter o que falar, fechou os olhos e abriu os braços. O cachorro olhou para ela e não era mais um cachorro, era uma escuridão uniforme como uma nuvem negra que se adensava, se diluía e então se individualizava para se transformar em vários pássaros azuis como aqueles que saíram do horizonte de pano e sombra. Os pássaros, juntos com aqueles que já estavam nos céus, começaram a se reunir e a implodir perto da menina loura. Mas deles não saía sangue ou ossos, saíam borboletas tão exageradamente azuis quanto a forma que outrora foram.
A menina, envolta em borboletas que se multiplicavam a cada segundo, começou a dançar, e dela saíu uma voz doce, longa e acentuada que se mesclava ao ritmo do vento desértico e ao assovio da areia macia, morna e gostosa nos pés. Ela ondulava os braços, esticava os dedos e unia as mãos espalmadas enquanto seus polegares e indicadores se aproximavam, seus quadris se mexiam lentamentes como se ela fosse uma serpente disfarçada de menina, e por um único momento Friddah, curiosa e espectadora, pôde ver seus pés descalços também se esticando num balé secreto oculto na saia inchada do vestido. As milhares de borboletas presentes no ritual daquela dança que necessitava apenas da música da solidão formaram longas asas nas costas da menina, que não voou nem saiu do lugar, mas que propagou uma ventania amedrontadora que fez os panos pálidos do horizonte se agitarem ainda mais, desesperados em afundar o sol e tirá-lo do seu devido lugar.
A menina loura continuou dançando, concentrada, e Friddah, apenas parada e espantada demais para fazer qualquer coisa naquele momento, permaneceu assistindo o ritual. As borboletas então fizeram várias fileiras envolta daquela bruxa sem nome, moldando agora uma bola. A menina dentro da bola. A menina, o universo.
A bruxa loura abriu os olhos, bateu as palmas uma única vez, forte e objetiva, e as borboletas se uniram num único ponto até desse único ponto cair uma máscara de madeira maciça, longa e com um nariz sinuoso, pontiagudo e curvo para baixo.
- Eu sou tua Caixa. Faça-me teu Segredo. - a loura voltou a falar.
- Segredo?
- Eu sou tua Pandora de Alma. Faça-me tua Energia.
Friddah enfim compreendeu, a menina era sua Caixa Pandorífera, aquele era o segredo de ser uma xamã. Compreender sua alma, sua Caixa, sua Energia, usá-la, amá-la, ser sua melhor amiga, e não agir como uma mera bruxa que usa seus poderes sem compreender porque eles existem ou porque eles estão alí, como saem do seu corpo ou como se formam dentro dele.
- A máscara...
- Deusa Terrena. Terás a batalha. Aqui dentro. - a Energia de Friddah apontou para o círculo no seu peito que dava para outro mundo.
- Eu sou tua dona. Guia-me. - Friddah ecoou no deserto.
A Energia pegou a máscara, entregou à Friddah, a abraçou e rodopiou como numa valsa. Friddah pôde ver rapidamente os raios brancos, os panos do horizonte se rasgarem e desaparecerem na ventania que ficava a cada mínimo átimo de pensamento mais forte. O sol apareceu, Friddah fechou os olhos e abraçou mais forte sua Energia.
Ela caiu numa floresta úmida, silenciosa e de árvores completamente púrpuras, em contraste com a terra vermelha. Levantou, ouviu um rosnado e começou a correr, com a máscara de madeira sobre os seios e pressionados pelos braços numa total dedicação de não esquecê-la.
A terra vermelha ardia e a cada passo parecia queimar. Ela continuou correndo, as árvores exacerbadamente púrpuras começaram a cair por onde ela passava, como que perseguindo-a. Ao seu redor, os galhos secos se transformaram em serpentes de três cabeças e dentes tão longos que ficavam para fora das mandíbulas escancaradas, pingando veneno. Friddah olhou rapidamente para cima e as folhas roxas que caíam não eram exatamente folhas, eram criaturas largas e afiadas que a qualquer toque poderiam cortar a sua pele mortal e cirurgicamente. Duas serpentes se enroscaram nas suas pernas, ela caiu e bateu a cabeça num tronco, mas sem deixar de segurar a máscara com dedicação e teimosia.
- Me devolva! Tu não a merece!
Uma mulher com mais de dois metros, cabelos negros e salpicados, e um vestido negro com mangas que formavam asas e uma saia que saía do céu num funil negro, denso e gélido surgiu na frente da machucada menina, oferecendo a mão espalmada. Sua expressão era de total fúria e aversão à criatura a sua frente.
- Vamos!
Friddah se lembrou das palavras de Amanara, fortes, presentes, inesquecíveis na sua memória, há exatos treze dias quando ela foi adotada pela xamã para aprender seus ensinamentos ancestrais. "Nunca magoe um Deus Terreno. Deixe que ele lhe diga suas palavras, que conte sua história, que mostre sua tristeza."
- Krishna, eu lhe conheço. Essa não é tu. E tu não conseguirás me assustar mesclando a imagem das minhas duas mães neste corpo.
Krishna franziu o cenho, como que horrorizada com o conhecimento de Friddah, então a forma de mulher gigante se dissipou e uma tigresa branca com raios negros e belos na pele surgiu e rugiu para o céu e talvez para si mesma.
Krishna descansou as patas traseiras, e depois as dianteiras, deixando o focinho cabisbaixo e os olhos entristecidos, etéreos na sua magnitude. Ela estava chorando.
Friddah se aproximou devagar, mas percebendo que a deusa a estava permitindo ficar perto dela, correu e a abraçou pelo pescoço, como as crianças costumam fazer. A máscara ficou alí mesmo, perto do tronco, na terra vermelha.
- Não sei, Friddah. Tenho medo. - foi a única coisa que ela disse. Numa voz constante, baixa e aflita.
- Deixa-me, Krishna. Permita-me. Tu amas o meu sangue e me amas também. Eu sei disso. Tu sabes disso. E nós deveríamos nos unir.
Krishna levantou a cabeça enorme e olhou direto nos olhos da menina. Friddah manteve o olhar, destemida e inexorável. Não piscou, não tremeu, e o seu coração tampouco bateu mais forte. Porque ela confiava em Krishna.
- Está bem. Agora afasta-te de mim. Serei fogo.
Friddah se afastou, pegou a máscara de madeira e a agarrou com força. Krishna ergueu as patas grossas e colossas e rugiu mais uma vez, e a parte escura dos seus pêlos se tornaram um fogo azul que começou a se alastrar por toda a floresta. Friddah se sentiu sem ar, e depois suspensa por mãos enormes e frias. A máscara saiu do seu domínio e flutuou até o seu rosto, com apenas um único objetivo.
O fogo de Krishna começou a consumir o vestido de Friddah, e logo depois a pele nua de Friddah e os seus cabelos que desapareceram em instantes nas labaredas. Ela estava morrendo, e aquilo era horrível. Mas não era a dor que todos diziam ser. Não era a culpa que todos diziam esperar. Era a morte para um novo ciclo. E Friddah morreu para surgir no mesmo lugar em instantes, nua e com os cabelos negros e lustrosos maiores que antes, dessa vez com o fogo dentro dela, com a máscara e lhe emoldurar o rosto, com Krishna no sua cerne, na sua Energia, no seu coração.
Um pássaro chilreou no silêncio do crepúsculo e ela despertou. Estava com o mesmo vestido preto de antes, a mesma sapatilha e o mesmo cabelo. Mas estava segurando uma máscara de madeira com o nariz curvo e tão polida que parecia ser nova. Onde estava a tristeza que a consumia pela mãe de sangue e pela mãe de criação? A tristeza que a deixava desconcentrada e com a aparência abatida? Ela tocou na pele dos seus braços, tocou no seu rosto e acariciou suas pálpebras, de alguma forma tudo parecia ser tão novo, tão mais vital e poderoso que ela chegou a sentir um pequeno medo de destruir qualquer coisa que tocasse a partir de então.
Amanara surgiu, pela primeira vez carinhosa, pela primeira vez materna, pela primeira vez frágil e emocionada, com as lágrimas cintiladas pelos últimos raios que o sol anunciava. Onde estava aquela mulher ruiva impiedosa e carrancuda que ela conhecera alguns dias atrás?
- Conseguiste. Friddah! Conseguiste! - E a puxou para um desconfortável abraço. - Venha, eu lhe preparei uma comida especial para comemorar. Uma receita de ensopado que roubei certa vez de uma bruxa distraída. - E ela deu uma risada gostosa. Friddah teve a sensação de que Amanara estava assim porque, de alguma forma, sua missão em guiá-la estava cumprida. Mas havia alguma coisa de errada, algum sentimento coberto, forçadamente escondido.
- Mestra Amanara...
- Sim...
- A senhora está bem?
- Se estou bem? Claro que estou bem! Olha para ti! Tão nova e já és tão poderosa! Imagino teu futuro, teu destino. Estou ótima porque...
Friddah segurou sua mão calejada, cheia de veias e de histórias para contar.
- Pode confiar em mim. - ela sentiu o fogo de Krishna em cada artéria do seu corpo, pulsando como um grande órgão de energia. E Amanara, poderosa como era, sentiu também.
A velha ruiva a olhou com espanto, o mesmo espanto que Krishna expressara quando seu disfarce fora descoberto. Então ninguém conseguia esconder nada de Friddah?
- Friddah, não quero preocupá-la agora. Esse é um dia tão especial para ti...
- Já disse. Confie em mim.
Amanara tossiu levemente, enfiou a mão no xale marrom-escuro e tirou de lá um papel perfeitamente dobrado.
- Tive um sonho, e depois me veio esse poema.
- Posso ler?
Ela lhe olhou com uma certa apreensão, mas então entregou o papel à menina. Friddah desdobrou cuidadosamente e começou a ler:

"Eis aqui minha pequena cria
O fruto daqueles que ainda proclamarão
E sobre as divindidades presas, reinará
Não esqueçamos dos seis, meros profetas
Não desfrutais se não conheces
A dor é maior
Quando o seio é da mãe.

As três pontas fechar-se-ão
Para o mundo que as chama
E o suspenso firmamento
Poderá despencar sobre o rebanho dos negregados.

A primeira, os dois amantes
A segunda, os falsos-homens
E a terceira, os mais colossais
Os cadeados são de ouro, mas seus núcleos, de cristal.

E através de toda a insegurança
Um muro de mulheres celestiais erguerão sua fúria
E sua traição
Os pulmões da Escura, arranquem os pulmões da Escura
Antes que ela arranque os seus
E os do mundo inteiro."

- Mestra Amanara...
- Eu consultei os espíritos, consultei os demônios, consultei ousadamente até mesmo um Deus Terreno...
Amanara enfim mostrou sua verdadeira expressão: a de preocupação mesclada ao medo. Friddah sentou-se ao seu lado na mesinha redonda na cozinha pequena.
- Não entendo, mestra Amanara.
- Eu também não. Pela primeira vez na minha vida, escrevi uma profecia em que não compreendo absolutamente nada do que diz.

~
1680

- Virás comigo. - Ammaleth ordenou.
- O quê? Não! Claro que não! Minha missão faliu, não moverei mais um dedo sequer! - rosnou Friddah, já virando as costas para ir embora.
Ammaleth ergueu o braço e Friddah paralisou os passos.
- Primeiro: a culpa disso tudo é tua. Segundo: Louvier já deveria ter sido salvo, mas agora foi levado para a dimensão de Sorath, e eu não sei como abrir portais. Terceiro: agora é tua obrigação me ajudar a salvar o irmão do meu marido daquele lugar.
As pernas de Friddah voltaram a se mover, ela retornou de onde estivera e deu um tabefe sonoro em Ammaleth.
- Não recebo ordens de uma bruxa qualquer. Tampouco de uma Clara como tu.
Ammaleth sentiu-se impotente, ela sabia que não deveria lutar pois Friddah era obviamente mais poderosa que ela. Deixou-se cair na grama e descansou as mãos sobre o colo, Auguste sentou-se ao seu lado para lhe acarinhar e consolar, mas ela parecia tão fria e rígida enquanto a penumbra de Friddah desaparecia entre as árvores.
- Auguste, não sei quanto tempo vai levar, mas vou fazer o possível e o impossível para conseguir abrir esse portal...
- Meu amor... - Foi tudo o que Auguste conseguiu dizer antes de beijá-la na cabeça e deixá-la descansar o rosto no seu ombro macio e forte.
Uma vibração ecoou da floresta atrás da casa, os dois se levantaram rapidamente para estarem preparados para o que quer que chegasse. E foi Friddah novamente, vindo num voo que a fez capotar, rodopiar e se estatelar no chão como um verdadeiro pião humano. E em seguida, Carlotta caminhando calma e destemida na sua altivez, no seu olhar de fúria se sobressaindo dos cabelos emaranhados e as mãos banhadas de sangue seco.
Friddah, após se recuperar e se erguer zonza do chão, a olhou com furioso desdém, mas antes que pudesse falar qualquer coisa, a voz de Carlotta soou alta e clara:
- É aí que te enganas, irmã querida. Receberás sim, as ordens de uma bruxa qualquer.












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Black Cherry
Arte: Nicole Absher