Solitude, darkness and love


"I don't wanna admit, but we're not gonna fit"

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Witch Fire - 09: Festim


1680
Carlotta saiu por uma das portas do fundo da mansão de Inanna e passou por um caminho entre seis pares de árvores velhas com troncos estranhos, um frio incomum assolava aquele lugar, mesclado ao odor de algo queimado, forte, podre. Após o caminho, encontrou um grande círculo de mármore branco com bordas pretas acima da grama, onde cinco bruxas já esperavam a sua chegada, entre elas, a própria Inanna, uma bruxa de aparência infantil e ingênua, cabelos métricos e escuros, segurando um pedaço de galho como quem segura um charuto. As outras quatro bruxas também seguravam pedaços ora tortos ora retilíneos de madeira, Carlotta era a única “escura” que não possuía objeto algum para canalizar seus poderes, o que causava a desconfiança por parte das subalternas de Inanna. Mas Carlotta obteve a confiança de Inanna, e isso logo acabaria.
Ela abaixou brevemente a cabeça para a bruxa de corpo de menina, que deu um sorriso falsamente bondoso, e deu “olá” para as bruxas que a olhavam como se ela fosse algo asqueroso caminhando por aí, mas que apesar disso retribuíram a saudação.
Seis da tarde, o sol era apenas um borrão fraco e alaranjado quase que completamente coberto pelas montanhas e florestas. A grama estava afundada em luz caramelada, e as árvores assoviavam com seus mil braços e pernas num movimento lento e contínuo pelo vento, cinematizando também os vestidos das bruxas Escuras.
- Estás atrasada. – Inanna ecoou, sem ao menos olhar para Carlotta.
- Perdoe-me, Inanna.
- Não pedi seu perdão, pedi?
- M-Mas...
- Calada. Entre agora mesmo neste círculo ou uso tua alma como petisco para os meus demônios.
Carlotta suou frio, se aproximou mais agora que as quatro bruxas estavam organizadas, e Inanna no meio. A mestra pegou um longo e grosso pedaço de madeira e bateu no meio do círculo três vezes seguidas, fazendo surgir um pentagrama. As cinco bruxas envolta da mais poderosa deram-se as mãos e começaram uma sucessiva linguagem sussurrada e veloz, como se mil serpentes estivessem silvando ao mesmo tempo. Inanna bateu mais três vezes no meio do pentagrama, e nas cinco pontas diluíram-se mais um desenho, agora um octagrama. A velha menina puxou sua varinha do meio do peito, apontou para o céu ao mesmo tempo em que seus longos cabelos negros flutuavam ao redor das cinco súditas, e gritou:
- Radamathys!
E Radamathys se materializou na sua frente, nu, com músculos grandes e perfeitos, um par de chifres curvos que lembravam uma espécie de marfim sujo e escuro, e suas seis asas negras e majestosas causando furor e uma ventania que poderia arrancar cada árvore alí perto da terra. Carlotta estremeceu em silêncio, enquanto as bruxas ao seu redor ora se maravilhavam ora ainda mal acreditavam na criatura à sua frente. Até que, se por êxtase ou sinal de submissão, todas elas, até mesmo Inanna, se ajoelharam diante do demônio.
“Tenho algo para te falar, Carlotta” – um pensamento se formou na mente da única bruxa ainda em pé. “Mas antes, ajoelha-te e disfarça, apenas tu estás ouvindo o que estou dizendo agora pelo poder da mente.”
Carlotta se ajoelhou. Radamathys avaliava cada uma das seis bruxas, olhando ora ou outra para a Coeurcourt mais nova como se fosse algo tão pequeno e insignificante quanto as bruxas mais fracas dalí.
“O que um demônio poderoso como o senhor tem para me falar?”
“Algo que causará a proteção da Floresta dos Deuses, além de te permitir entrar nela.”
“A Floresta dos Deuses? Impossível! Esse nome veio como base numa lenda... Não significa que lá vivam realmente os deuses!”
“Então como tu me explicas tua ligação com Huracán?”
“Mas como...”
“Sinto o cheiro de Huracán na tua alma. Cheiro de luz, cheiro de estrelas e sóis. Uma bruxa como Inanna poderia perceber isso a qualquer segundo... Sabes disso, não sabes?”
“É claro que sei!”
“Por ora, Inanna está entusiasmada demais com a ideia de ter uma bruxa como tu que possas abrir portais para ela quando bem quiser. Mas tenha cuidado, não subestime Inanna só porque conseguiu enganá-la uma vez. Inanna é imprevisível até para criaturas como eu.”
“E como está meu disfarce de bruxa Escura para ti então, demônio?”
“Fálica, estúpida. Poderias te entregar há minutos atrás vindo sem uma varinha.”
“Mas eu não consigo canalizar meus poderes em objeto algum! Isso é hereditário de Bruxas Escuras!”
“Burra! Aprenda!”
“Espere um momento... Por que tu estás me ajudando e me dando conselhos?”
“Oras, Carlotta. Não está claro? Meu destino e o destino da tua irmã estão mais entrelaçados do que as raízes destas seis asas negras nas minhas vértebras as quais roubei pelo amor à criança cujo futuro depende das missões de Ammaleth!”
“A criança que tu roubaste do paraíso?”
“A criança que estava predestinada a vir a mim, a partir do momento em que eu tecesse o destino que causaria também um colapso no destino de Ammaleth.”
“Senhor Radamathys... Não entendo!”
“Carlotta. Ainda não está claro o bastante? Mary Donna está brincando com a nossa cara!”

~
1673
- Mamãe! Estou grávida! – Ammaleth entrou na cozinha de mãos dadas com um magro Auguste ao mesmo tempo em que Carlotta descia das escadas para abraçá-la.
Mary Donna parou de picar os legumes com a faca, mesmo cozinhando ainda usava aquele anel de ouro, incrustado com uma esmeralda grande e perfeitamente redonda, de uma tonalidade meio escura, no dedo médio. Pegou um pano e tirou o suor consequente do vapor da panela escaldante. Limpou as mãos e só então virou-se de braços cruzados para a filha que cintilava de felicidade.
- Auguste, Carlotta, preciso falar com Ammaleth a sós.
O sorriso de Ammaleth desapareceu, Carlotta saiu de fininho e Auguste foi-se para a sala de estar sentar-se no sofá.
- Em que lua foi? – Mary Donna fortaleceu sua expressão de impaciência.
- O quê? – Ammaleth franziu o cenho, como quem esperava que a mãe dissesse “mas que presente mais belo da minha filha!” em vez de “em que lua foi?”.
- Só me responda, Ammaleth. Em que lua foi?
- Ch-cheia... Crescente... Não lembro!
- Vai conceber um filho e não sabe nem em que lua o fizeste?
- Mas mamãe!
- Mas nada. Achas que fazer um filho é tão fácil e simples assim para a nossa dinastia?
- Mamãe, me deixe falar!
- Vou invocar um demônio para levar a alma disso daí. Saia da minha cozinha, vamos!
- MAMÃE!
Mary Donna que já estava de costas novamente, virou-se para observar melhor aquela que gritava o seu nome.
- Qual... É... O... Problema... Em... Ter... Um... Filho?
Mary Donna soltou um muxoxo de desaprovação. Pôs a mão na testa, e respirou fundo.
- Sabes se é menino ou menina?
- Não, eu...
A velha ajoelhou-se de frente para a barriga ainda pequena de Ammaleth e pôs as duas mãos longas e enrugadas sobre ela. Ammaleth recuou como se os dedos tivessem queimado sua pele, Mary Donna a fuzilou com o olhar.
- Não use isso com a minha criança. – Ameaçou.
- Não use o quê, Ammaleth? Magia? – ela deu um risinho desdenhoso. – Que patético, dezesseis anos e ainda tem medo do que é...
- Não tenho medo do que sou. Só não quero que o meu filho sofra o que nós sofremos.
- Que sofrimento tu te referes, Ammaleth? Que não podemos amar por muito tempo? Que nosso destino é ver todos a quem nutrimos sentimentos caírem em desgraça ao mínimo contato com a nossa espécie? Que ora ou outra, quando os homens descobrem o que somos, é nosso dever matá-los?
Ammaleth abaixou a cabeça e as pálpebras.
- Sacrifícios são necessários, Ammaleth. Tanto para seres humanos quanto para monstros como nós, nascidos da arrogância de Deus de submeter a inteligência de Eva e dos outros deuses.
Mary Donna voltou a cortar os legumes.
- Podes ir. Ore pelo deus compatível com o nosso sangue, Huracán, esta noite. Talvez ele possa lhe dar algum conselho no mundo dos sonhos.
Antes de Ammaleth sair da cozinha, Mary Donna anunciou:
- É uma menina.
E então, finalizada a sessão de temperar a sopa, a velha mulher apertou o anel de esmeralda com força na mão esquerda, e uma gotícula salgada escorregou de ou entre seus olhos, ninguém nunca soube dizer se era uma gota de suor ou de lágrima. E sussurrou para si mesma:
- Eu lhe odeio, Frigga. Um dia eu hei de te eliminar, mas nem que eu passe mais vinte, quarenta, sessenta, cem anos nesta terra. Vou encontrar um jeito de lhe destruir.

~
1680
Nove da noite. Quase todas as casas da vila de Clevelier estavam com as luzes apagadas. Louvier caminhou até uma casa no final de uma ruela, deu três toques na porta e Arpe a abriu com um sorriso deveras sedutor para o padre, que apenas limitou-se a dar-lhe um aperto de mãos, mas Arpe o puxou e o abraçou. Estava cheirando a vinho, e usava uma espécie de manto branco seguro no corpo com um broxe, caindo até a metade das coxas brancas e belamente torneadas. Notava-se também os pés descalços.
- Padre! Eu sabia que o senhor viria! – exclamou Arpe ainda o abraçando. Louvier se desvencilhou dos braços fortes e destemidos com certa indelicadeza, mas ainda com uma expressão simpática no rosto. – Vamos, entre! A festa é no quintal atrás de casa!
- Sim, sim. – Louvier cuidou de dizer, e acompanhou o entusiasmado padre.
A festa realmente estava lá no fundo, pois se vista da frente ele jamais imaginaria que uma coisa tão bonita e poética estava acontecendo por detrás da morada. O quintal era amplo, iluminado com lampiões em cordas amarradas em galhos de árvores e pregos nas paredes e janelas mais altas da casa. Uma mesa decorada com um grande lençol branco e farta de frutas, carnes e incensos. Espalhavam-se as serventes mulheres que ofereciam cachos de uvas e garrafas de vinhos para os homens vestidos do mesmo jeito que Arpe, apenas um manto longo e branco. As criaturas femininas usavam vestidos longos que cobriam até as canelas, mas não havia alças que as segurassem. Todos brincavam, corriam, dançavam e cantavam juntos. Um homem com uma saia branca e o tronco nu tocava uma harpa, enquanto outro com uma camisa sem mangas flauteava, e mais alí um jovem rapaz rodeado de jovens garotas era mimado, penteado e alimentado.
- Fique à vontade, padre, a festa também é sua. – Arpe lhe deu um beijo na bochecha e foi-se juntar a um grupo de homens que disputavam queda-de-braço.
Louvier caminhou e a cada passo que dava, se sentia maravilhado com a beleza e a poesia que exalava dos convidados, das músicas, até mesmo do céu que parecia extremamente estrelado para a ocasião. Mas alguma coisa, ele sentia, estava errada. Ele lera pouco sobre festejos pagãos, mas o pouco que conhecia tinha certeza que aquela não era uma festa para Saturno.
Parecia ser mais para Baco.
Um rapaz lhe puxou pelo braço e lhe falou alguma coisa sobre “disputa do vinho”. Louvier o acompanhou, pois ele não queria largar seu braço, até que chegou a um grupo de cinco rapazes que seguravam garrafas cheias do líquido púrpura e deliciosamente amargo.
- Desculpem-me, mas eu não posso. – o padre sorriu.
- Vamos, padre! Quando o senhor terá outra oportunidade dessas?
Louvier olhou para os cantos. Ninguém parecia condená-lo, culpá-lo com o olhar, apontar o dedo para ele e delatá-lo. Na verdade, todos estavam concentrados em suas diversões particulares, todos estavam em pleno êxtase de alegria e liberdade que ele se sentiu mais à vontade para pegar a garrafa de vinho que lhe ofereciam.
- Tudo bem. – ele sorriu.
Os jovens aplaudiram, gritaram “êeehs”, e deram batidinhas no seu ombro. O rapaz que convidara Louvier estava fazendo uma contagem regressiva, e de um minuto para o outro o padre estava virando a garrafa como os cinco homens que engoliam ardentemente a bebida. A alma de Louvier pareceu esquentar, ficar mais leve, e junto com isso o seu corpo acompanhava cada clima. Dedos seguraram sua bata, e ele pôs-se a tirá-la, logo, já estava apenas com a saia escura das suas vestes. Palmas, gritos e tambores encheram seus ouvidos, Louvier encostou as costas numa árvore, e sentiu-se molhado, alguém derramara vinho no seu peitoral, e então uma sensação quente, uma mordida, algo que pareceu acendê-lo nas suas partes íntimas.
Louvier abriu os olhos, o rapaz que o levara ao caminho dos vinhos estava saboreando seus mamilos com empolgação. Lambia, mordiscava, cheirava seu pescoço, e chupava seus lábios, beijou-o. O padre tentou mover os braços e as mãos para empurrá-lo, mas seus membros pareciam fugir do seu domínio, pois começaram a explorar o corpo do rapaz louro e bronzeado, que já estava nu em cima dele. Aqueles músculos, aquela pele lisa e cheirosa, tudo aquilo que deveria repeli-lo estava acendendo-o ainda mais. Louvier deitou-se na grama e começou a passear as mãos nas costas do jovem, chegando nas suas nádegas volumosas, apertando-as, penetrando seus dedos entre elas. O rapaz gemia e rebolava em cima dele, até que ele sentiu algo ainda mais úmido quando o louro colocou seu sexo em sua boca, pois ele também estava sendo sugado. Louvier então começou a rebolar os quadris no ritmo que as nádegas branquelas em cima do seu rosto faziam o mesmo, ele as segurou firmemente e as mordeu, lambeu, colocou a língua. Gosto de vinho e morango.
O rapaz voltou à sua posição inicial, colocou Louvier dentro dele, e começou um ritmo de vai-e-vem em cima do padre nu e aberto na grama que gemia feito louco, urrava sem medo de ouvirem o som do seu prazer. O ápice veio, e junto com ele, a inconsciência completa e autêntica.








~








Black Cherry
Arte: Nicole Absher, com edição de Black Cherry

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Segunda Pele


Não costumava ser assim.
Pietro, certa vez, decidira uma coisa importante: ele não mais gostaria de continuar parado e sem nada. Ele queria uma mudança, uma mudança bem brusca na sua vida, algo que ele fizesse e depois de algum tempo pudesse dizer: realmente, consegui mudar!
Pietro morava numa cidadezinha sem grandes alardes, sem muita coisa, algo como uma ilha à parte do mundo. Era uma cidadezinha mórbida, densa, seca, pesada. Com um sol que parecia existir apenas para iluminar, e não para aquecer. Ele vivera tempo suficiente naquele lugar o qual nenhum dos seus sonhos ainda se realizara. Ele deveras era amante da atuação e, consequentemente, do teatro.
Desde muito pequeno sempre foi assim. Enquanto outras crianças, vestidas de princesas e príncipes, bichinhos e guerreiros, bagunçando e rasgando os cenários, chorando e pedindo pela mãe no meio das apresentações, Pietro estava alí, encarnando seu personagem com vivacidade, voracidade, ele dava alma e movimento mesmo na época que ainda não sabia o que isso significava. Na época, isso era deveras ignorado. Os pais subiam no palco para socorrer seus filhinhos mimados, as professoras davam um último adeus ao público e fechavam as cortinas, e Pietro jogava a espada no chão, arrancava sua fantasia com uma fúria anormal para um garotinho da sua idade, e esperava as duas horas de atraso da sua mãe para vir buscá-lo e se desculpar, pela milionésima vez, que infelizmente não pôde assistir seu espetáculo.
Houve ainda uma época antecessora ao descobrimento de Pietro pelo teatro, que se tecia com a presença contínua de um homem grande, alto, com o rosto bondoso. Mas Pietro pouco se lembrava dele. Ele bem que se esforçava, mas a lembrança daquela pessoa ficara tão desbotada com o tempo que tudo o que ele pôde salvar foi uma grande sombra na porta de uma casa.
Ele recorda também que, esta sombra segurava uma coisa pesada nas mãos, e gritava sem parar para outra voz que esbravejava. Uma voz aguda e rouca, sofrida e desgastada, mas que, com toda a força da sua vibração vocal, deixava aquele lugar pequeno para tantos gritos.
Foi numa dessas vezes, embora não sem muita compreensão de si mesmo, que ele passou a amar os sonhos. Nos sonhos ele encontrou o silêncio e a paz que desejava, ou então, vozes calmas e aconchegantes. Pietro tornara-se o rei dos seus sonhos. Com sete anos já dominava sua mente para o mundo onírico, e criou um mundo só dele. Era um mundo assim: cheio de países e continentes, e ele tinha seu próprio dragão particular para se locomover por todo canto que quisesse, morava num palácio feito de doces e o concreto era de açúcar, além de possuir, é claro, várias concubinas para lhe servir alimento, roupas limpas, e uma banheira gigantesca onde ele pudesse nadar o dia inteiro, ou enquanto seus sonhos durassem pela madrugada.
Quando acordava, ía para a escola, lanchava numa escadaria que ninguém usava, voltava para a sala, esperava a campainha bater enquanto desenhava sua coleção de dragões e navios, e esperava as duas horas de atraso de sua mãe para vir buscá-lo.
Pietro tinha o rosto redondo, os cabelos escuros e cacheados nas pontas, olhos sobressaltados e caramelados, sardas nas bochechas, um narizinho arrebitado e um queixo proeminente que fazia seu rosto parecer ainda mais um círculo. Não era uma criança feia, mas era maltratada. Certa vez, sua mãe esquecera de vesti-lo adequadamente para ir à escola, e Pietro foi com sua lancheira e seu pijama para a sala. Foi por aí que começaram a notá-lo, e ele ganhou seu primeiro apelido: Pietro Cara de Bolacha.
Pietro não gostara nem um pouco do novo nome, e passara a se tornar uma criança arrogante e mesquinha por isso. Não oferecia mais lanche para quem não trazia, não fazia trabalhos em dupla e tampouco emprestava o lápis-de-cor, apesar de possuir muitos. Vivia deveras de cara amarrada, expressão única e silêncio constante. Na hora de bater as fotos da turma, era sempre deixado para trás, perto das sombras para que ninguém se desse ao trabalho de vislumbrar seu rosto redondo e, segundo a turma, feio. Até mesmo quando a turma se agrupava, parecia haver nele uma espécie de repelente que afastava seus coleguinhas pelo menos a dois palmos de distância. Logo, sua cota de apelidos aumentou: Pietro Cara de Bolacha, ou o mais novo, Bolacha Fedida, ou pior ainda, Pietro A Bolacha de Queijo.
Era uma turma criativa, o próprio Pietro admitia isso, mas de uma hora pra outra ele foi transferido para uma turma nova. Entrara na quinta série e uma única pessoa deu a devida importância para a sua presença. Uma menina chamada Serafina.
Serafina era disléxica, portanto, era mais fácil para ela chamar Pietro de Pedro, ou Peto. Uma quantidade de pronúncias que ambos decidiram oficializar apenas com Pê. Serafina tinha os olhos escuros, a boca pequena, a face oval, a pele parda e os cabelos de um castanho comum, embora excessivamente lisos. Tinha os olhos pequenos, os cílios longos e as sobrancelhas grossas. Na opinião de Pietro, era muito bonita, obrigado.
Com Serafina, Pietro pouco se importava com a quantidade de amigos que poderia fazer, ele afinal só se importava com ela numa sala com trinta e sete alunos. Serafina ainda simpatizava com outras pessoas, era amável com todos e ajudava os mais lentos em análises sempre que podia. Algumas meninas lhe perguntavam: “por que você vive com esse garoto? Ele é tão chato! Você deveria sair conosco!”. E Serafina lhes respondia: “pois eu adoraria sair com vocês! Podemos marcar um cinema?”.
Dias após o tal cinema, quando as outras meninas percebiam que Serafina jamais se despregaria de Pietro, desistiram da inclusão de pô-la em seus grupos, e na sétima série Serafina era uma aluna tão aplicada, estudiosa e excluída da turma quanto Pietro.
Ela passava praticamente todas as tardes na casa do melhor amigo, após saírem da escola. Almoçava, lanchava, e depois de uma hora após o jantar, ía embora para sua casa.
A mãe de Pietro a adorava, tratava-a como uma filha que nunca teve, lhe comprava roupas, perfumes e maquiagem no natal e nos seus aniversários, e até em épocas totalmente fora de datas comemorativas. Pietro não sentia ciúmes, ele preferia HQ’s, roupas ou um skate novo, e a presença imprescindível da mãe nas suas apresentações no teatro da escola, atitude que ela logo se esforçou para melhorar, numa espécie de equilíbrio com o cuidado que tinha com Serafina e a atenção que obrigatoriamente pertencia a ele.
O pequeno mundo confortante que Pietro construíra na vida real (e agora, com catorze anos, já não fugia tanto para o seu universo onírico audacioso) foi perturbado e rompido com a chegada de duas sombras. A primeira, a sombra que espreitava Serafina por toda sua vida, e Pietro até então nunca soubera da sua existência. Serafina, se não dissesse nada, costumava ser um mistério até para si mesma.
Foi quando, numa manhã de provas, Serafina se ausentou. Serafina muito raramente faltava nas aulas, além de absurdamente estudiosa, era absurdamente pontual. Após o término, Pietro arrumou a mochila e saiu a passos largos da escola. A tarde estava nebulosa e trazia uma ventania dançante, daquelas que sacodem os galhos mais altos e frondosos das árvores, levantam uma leve camada de poeira nas ruas, trazem horas cinzentas ou obscuras. Quase como se tivesse aberto um baú proibido, com um vento proibido, para uma vida proibida.
Pietro pegou o endereço no papel que Serafina de muita má vontade lhe dera, e procurou a rua que levaria a sua morada. Era difícil entender o motivo de ela nunca o convidá-lo a ir à sua casa, apesar dele nunca ter questionado o porquê. Achava que, quando fosse o momento certo, Serafina lhe convidaria e ele poderia conhecer sua família. Afinal, eram melhores amigos, e Serafina já era praticamente uma filha para sua mãe. Mas o momento certo jamais chegou, e jamais teve chance de chegar. Quando questionada sobre sua vida em casa, Serafina costumava fechar a cara e dar um gelo em Pietro até ele aprender a não perguntar sobre isso para ela. Havia muita paciência em Pietro para com Serafina, mas só porque ele a amava demais e gostava demais de tê-la em sua vida, e decerto aprendeu a conviver com suas manias, gestos, silêncios e falhas. Afinal Serafina era uma daquelas raras pessoas que compensava seus defeitos com alguma coisa mais especial, mais memorável. Ele se habituou a pensar que Serafina deveria ser uma constelação antes de descer na terra. Pois oras! As constelações costumam ser imortais. E meteoros? Meteoros se desintegram, não são como as constelações, que permanecerão sempre alí. É sempre mais fácil amar os meteoros.
A casa de Serafina estava uma bagunça, parecia que a ventania vinda do céu nebuloso estivera alí pregando suas peraltices. Ele subiu as escadas e achou um quarto com paredes pintadas de um rósea-claro e o carpete poluído de roupas e vários objetos que pareciam termômetros mais longos. A cama estava sem lençóis e a parte de cima da janela, quebrada como uma das portas do guarda-roupa de frente para a cama. O espelho também não escapara.
É mais fácil também, encontrar aqueles que se ama quando se os conhece de verdade.
Pietro abriu a única porta inteira do guarda-roupa e lá estava Serafina encolhida em suas roupas, ela não fazia ruído algum, mas ele sabia que ela estava chorando. O choro de Serafina não era o habitual choro feminino, com gemidos agudos, gritos, a voz enrouquecendo e soluços de segundo a segundo. Na verdade, nem parecia estar chorando, era melhor dizer que estava dormindo. Ele pensou então que ela se controlava terrivelmente para não gritar, pois se gritasse, poderia nunca mais parar.
Serafina não ergueu os olhos nem se importou com o fato de que acabara de ser flagrada. Apenas disse com a voz arrastada e abafada pelos joelhos no rosto:
- Quero ir para o meu lar.


Pietro não questionou, não pensou em mais nada. Mas é claro que aquele não era o seu lar, pois se fosse, não estaria escondida num guarda-roupa quebrado num quarto destroçado chorando sabe-se-lá-por quê. Não pediria pelo seu verdadeiro lar.
Ele a ergueu pelas axilas e a levou escada abaixo. Serafina só percebeu que estava na entrada de sua casa quando Pietro parou para dar uma última avaliada no lugar. E ela enfim levantou a cabeça.
- Ele vai m-me matar.
- Ele quem?
Ela olhou para os cantos da casa como se esperasse que algum monstro surgisse do nada pronto para atacá-la. Ele também olhou, procurando pelo monstro.
- Ele n-não vai querer que eu o tenha, vai m-me mandar matá-lo e depois vai me matar.
Pietro carregou Serafina até o vão da porta e, na pequena escadinha da entrada, Serafina se desvencilhou dele e segurou sua mão. Ele sussurrou alguma coisa como “não vou deixar nada acontecer com você”, e ela apenas assentiu com a cabeça. Foi quando ele entregou-lhe um lenço que ela sorriu, e foi quando chegaram em casa que uma coisa engraçada aconteceu, parecia que, mesmo de longe, ela havia sentido. A mãe de Pietro dera um abraço forte na menina, tirou suas roupas esfarrapadas com carinho, deu-lhe banho, roupas, e dormiu abraçando-a como um ursinho de pelúcia. Pietro não sentiu inveja, gostava de ver as duas assim, tão juntas.
Desde a primeira sombra, Serafina passou a viver com Pietro e sua mãe. Uma semana se passou até ela ser levada pela ambulância na porta de sua nova morada, sangrando como uma fonte escarlate, perdendo o filho de seu padrasto como quem perde uma maldição. A mãe de Pietro ficava pela manhã no hospital ao lado de sua nova filha enquanto ele estudava, e Pietro ficava pela tarde e pela noite enquanto sua mãe trabalhava. Mais tarde, Serafina não se esqueceria de retribuir o gesto. Certa vez sonhara, há muito tempo quando Pietro e Tommy ainda não haviam entrado em sua vida, que uma pessoa muito especial a ajudaria no momento em que ela afundasse, e sua missão naquela vida seria esperar e fazer o mesmo por essa pessoa quando o pior momento chegasse. Ela jamais deveria ignorar a mensagem desse sonho.
Invernos e verões voaram para longe até que Pietro e Serafina se perceberam adolescentes. Mais uma escola nova, mais um novo amigo.
O nome dele era Tommy, embora não se tivesse certeza da sua origem, se uma constelação ou um asteroide. Como Serafina, ele mesmo mantinha um mistério de si mesmo, algo que Pietro não gostava muito, apesar de ter sido obrigado a se acostumar. Tommy era dois centímetros menor que Pietro, tinha os cabelos escuros e lisos, mas notoriamente bagunçados, o rosto impassível, porém belo em sua totalidade, a pele clara como um céu afogado em nuvens, os olhos castanhos, mas eclipsados num hazel esverdeado, o corpo magro e os lábios róseos e finos, e um nariz tão infantil quanto o restante do rosto. Pela pele branca e pelo frio constante daquela cidade, vivia com as bochechas enrubescidas e um cachecol preto no pescoço. Tommy sempre dizia que detestava o frio, mas ninguém soube explicar o porquê de ele continuar vivendo alí.
Quando Serafina lhe perguntou de onde que ele havia herdado aquela beleza ingênua e encantadora, Tommy respondeu que de uma família que vivera naquela mesma cidade, cujo filho de sua tia falecera na banheira com uma overdose de heroína. Na verdade, era só a família da sua tia que ele conhecia. Seus pais eram o mistério e o carma da sua vida, e ele vivia com um de seus primos distantes num apartamento perto da escola. Seu primo cozinhava extremamente mal, o que fê-lo aprender por conta própria os segredos da arte de temperar uma comida. No apartamento do péssimo cozinheiro, eles dividiam os trabalhos: Tommy fazia a parte doméstica, e ele pagava as despesas. Era uma ótima divisão, porque ao menos Tommy deleitava de todo o dinheiro dos seus bicos, sem se preocupar se teria que guardar para comprar algumas coisas essenciais, de higiene ou alimentícias.
Logo, quando a mãe de Pietro estava ocupada demais no trabalho para voltar em casa e fazer o almoço, era Tommy quem o fazia. À primeira vista, a mãe de Pietro não gostara da ideia de ter aquele garoto de aparência dissimulada em sua morada (mas isso só porque Tommy gostava de olhar por tempo suficientemente incômodo para Serafina, que era sua filha de criação mais protegida até do que o próprio Pietro, o biológico. Mas Serafina pouco se importava com os olhares de Tommy, e Pietro mal sentia ciúmes de sua mãe, imagine sentir ciúmes daquela criatura tão fofa e sorridente?), mas com o tempo Tommy obteve sua confiança e seus beijos de bom dia e boa noite.
E a primeira sombra retornou.
Um final de tarde com um sol vermelho e uma ventania mágica que passeava pelas copas das árvores fazendo-as dançar para lá e para cá numa sincronia quase perfeita, tal uma dança de teatro que não para de cativar. Tal os bailarinos que fazem a única coisa que sabem de melhor em suas vidas. Dançar, rodopiar, pular, lançar as folhas e a poeira nas ruas, assoviar para um pequeno mundo de coisas belas e intangíveis. Serafina, entre Pietro e Tommy, pedia para o adolescente de rosto infantil que fizesse pão de alho, pois ela estava com um desejo acima da sanidade permitida de degustar a opção, e Tommy apenas lhe sorria e lhe aconselhava então a comprar os ingredientes, enquanto Pietro olhava para trás sem parar. Alguma coisa o estava perturbando desde o momento em que chegou na escola pela manhã.
Era uma sombra.
A porta do lar estava arrombada, e o lar, bem semelhante à antiga casa de Serafina. Pietro e Tommy pararam para avaliar os estragos, e Serafina continuou a trajetória pelo corredor que levava ao quarto de sua primeira mãe. Quando os dois foram acompanhá-la, era um pouco tarde. Serafina entrou no empório da dor, seu padrasto a puxou pelo braço esquerdo com força e deslocou seu ombro, enquanto a mãe de Pietro gritava horrorizada para este parar. Tommy notou, um dos seus olhos estava roxo e inchado, o que fê-lo borbulhar de raiva.
- Saia daqui! Largue a minha filha!
- Sua filha? Sua filha? Ela é filha da sua irmã, a minha mulher!
- A mulher que você matou!
- A mulher que você usurpou a vida! E pare de gritar, sua puta asquerosa!
- Não fale assim com a minha filha!
- Pare de chamá-la de filha! Ela não é tua filha!
A mãe de Pietro pôs a mão na boca, não por sobressalto, mas numa linguagem corporal significando que estava com medo de revelar alguma coisa.
- Sim... Ela é... – ela respondeu com a voz abafada, retomando o fôlego nos soluços incansáveis. – Minha irmã não podia ter filhos.
Tommy se espreitava por algum lugar, Serafina chorava dolorida e agachada num canto, com seu padrasto ainda segurando seu braço de ombro deslocado, e Pietro estava, de alguma forma que ele não saberia explicar, com a vista turva. Ele tentava ver Serafina, tentava enxergá-la naquele pequeno caos compactado. A sensação era que ela estava alí, mas ao mesmo tempo longe, como se fosse um sonho mal feito da mente.
Chame, chame por ela.
- Serafina!
O padrasto de Serafina olhou furioso para Pietro, Tommy surgira com um vaso pesado e batera-lhe na cabeça fazendo-o soltar a menina negregada. Pietro foi-se do quarto com Serafina e Tommy se abaixara, pois o homem descontrolado e ensanguentado sacara uma arma para o corredor onde a penumbra de Serafina ainda se encontrava. A mãe de Pietro correu e levou um tiro na espinha dorsal, e Tommy terminara de quebrar o vaso na cabeça do monstro, fazendo-o desmaiar de uma vez.
E a primeira sombra, então desapareceu da vida de Pietro e Serafina.

Serafina nunca falou a respeito do ocorrido com Pietro ou Tommy, na verdade, ela parara de falar por completo. Tornara-se então, mais do que misteriosa, uma criatura cálida, etérea, o próprio silêncio ambulante. Resultado de ter saído do teatro da escola que fazia com Pietro e começado a entrar no mundo do balé. Com o tempo, tornou-se seu emprego pela manhã, e o restante do dia era dedicado aos cuidados de sua mãe paraplégica. Mas a mãe estava morrendo com uma lentidão tortuosa que parecia infinita.
Numa manhã de outubro, acordara cega, e caíra da cama desesperada procurando pela voz de Serafina (pois Serafina só entregava sua voz à sua mãe), se arrastou pelas escadas até que a bailarina, que estava degustando uma rodela de laranja, se ergueu da mesa para socorrer a velha mulher catatônica.
Numa tarde de dezembro, começou a falar mais devagar que o normal, já não se mexia tanto para fazer companhia às flores de sua varanda. E era terrível para Pietro, depois de um dia cheio de expressões e vida e pulos e danças e cantos, voltar com Tommy do teatro e voltar também para o mundo real. Sua mãe alí, cem anos desgraçados num corpo de quarenta e dois. Tommy costumava fazer pequenos gestos como tocar no seu ombro, segurar sua mão com força, dar-lhe um beijo na bochecha e dizer que tudo iria ficar bem, que um dia ela se recuperaria de tudo aquilo, que um dia seria sol para todos.
Numa noite de maio, a época em que era outono para aquela cidadezinha, a mãe de Pietro e Serafina tornara-se um vegetal completo. Pietro trancou-se no seu quarto e Serafina não dormiu, mesmo com a insistência de Tommy de que ela poderia descansar enquanto ele tomava conta da mãe, ela não saiu do seu lado. Expulsou Tommy com uma resposta ríspida, trancou a porta e ajoelhou-se ao seu lado até o dia amanhecer, e ela não poder ouvir mais a respiração compassada e tranquila da mãe.
“Era até um milagre ela ter vivido tanto”, os médicos disseram. Mas Serafina, e apenas ela, sabia. A sua mãe ainda estava viva porque ela queria, porque ainda desejava ver sua filha mulher crescer e, quem sabe, ter a oportunidade de conhecer seus netos. Um ano se passou e ela se cansou, até entregar-se à morte num inverno até outro outono.
Pietro já quase não dormia em casa. Fazia questão de passar o dia fora, no teatro ou em qualquer lugar, e já não conversava mais tanto com Tommy, Tommy que já estava terminando de se graduar em Artes Cênicas, um ano depois de Pietro. Tommy então passou a confidenciar mais sua vida com Serafina, que sempre lhe aconselhava que o momento certo do fim do luto de Pietro acabaria, e que, mesmo que Pietro estivesse insuportável, ele ainda deveria permanecer ao seu lado.
Foi quando Serafina, agora também saturada da frieza de Pietro, discutiu ardentemente com ele no seu quarto e, com um aceno de mão do homem congelado, ela saiu da casa da mãe para sempre.
Mas Pietro ainda não havia desistido de Serafina. Ele atendeu sua chamada e foi buscá-la num beco ao lado de uma boate quando ela lhe ligou no clímax do medo e da ausência. Alguns meses se passaram e Pietro e Tommy já não passavam tanto tempo fora. Costumavam cuidar de Serafina e trazer-lhe o coquetel enquanto ela, no mesmo estado que a mãe se encontrava numa cadeira de rodas de frente para a varanda. Mas ela ainda sentia as pernas para caminhar, só era fraca demais para isso.
- Vocês não precisam fazer isso por mim. – ela dizia. – Eu não mereço o amor de vocês.
- Merecendo ou não, nós continuamos a te amar, e pare de ser tão teimosa. – Tommy lhe respondia.
E numa noite tão parecida quanto a última noite da mãe de Pietro, num alvorecer em que se podia ouvir a ardência na pele e o calor em cada alma, o último filho subiu as escadas e trancou-se no quarto. Tommy não deveria perturbar, afinal ele nunca perturbava, e Pietro nunca atendera a porta.
Mas Tommy sentia que seria errado deixá-lo trancado alí. Ele bateu e bateu até que Pietro, com o rosto inchado e amassado, o atendeu e o abraçou como um menininho que acabara de encontrar a mãe perdida no supermercado. Tommy deitou-se e Pietro também, de frente para ele, com seu nariz frio encostando-se ao dele, seus olhos inchados admirando a respiração que descia sobre seus lábios secos refletidos na luz da lua. Quando Tommy lhe beijou, Pietro se ergueu da cama e deu um soco em sua face, indo embora e desaparecendo indeterminadamente. Tommy passou a pensar que estragara tudo, mas o teatro nos últimos dias e os preparativos para o enterro de Serafina estavam tomando tanto seu tempo que ele não viu as semanas fugirem entre seus dedos. Pietro não foi ao enterro.
Passaram-se dois meses até a grande estreia de uma peça a qual ele se entregou de corpo e alma. Ele interpretaria o filho de uma ninfa que se apaixonara perdidamente por um semideus, e deveria ajudar sua mãe a não entrar em autodestruição, entregando-se ao tal semideus como oferenda e desculpas pelo insulto de ter surgido em sua vida. O semideus era incorporado por um amigo de longa data no teatro de Tommy e Pietro, mas no dia da estreia ele misteriosamente adoecera, e quando Tommy viu Pietro no palco como um perfeito semideus pronto para enlaçá-lo, Tommy ficara mudo e esquecera-se da sua fala por dois minutos, e Pietro correu para a sua presença muda, a sua segunda sombra, puxou-o com força pela cintura, ameaçou-o de morte, e o beijou.









~








Andrew Oliveira
Artes: Hikari Shimoda

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Witch Fire - 08: Bacante

1680
- Entre. – a voz do jovem padre Louvier ecoou na portinhola entre o confessionário.
- Sua benção, padre.
- Deus lhe abençoe, filho... Agora, o que desejas? Queres um pedido ou queres te confessar?
- Na verdade, padre, gostaria de um pedido.
Louvier virou o pescoço para olhar atrás da fina grade negra vitoriana que enfeitava a madeira polida e envernizada do confessionário, e deslumbrou um rapaz branco, na verdade branco demais, de olhos azul-marinhos, cabelos que oscilavam entre o castanho e o negro, e uma beleza incoerente, diferente de qualquer beleza que ele pudesse distinguir. Era ao mesmo tempo instigadora e selvagem.
- Acabei de chegar nesta vila, padre, sou da Vila de Samsa.
- A que fica quase ao norte da nossa vila?
- Sim, e estou aqui à visitas, preciso ver uma aparentada doente, e esta aparentada deseja que eu faça duas coisas.
- Quais são?
- A primeira é que o senhor possa ir à sua casa orar e dar-lhe uma benção antes dela partir, e a segunda é aprovar uma festa.
- Uma festa.
- Uma festa para Saturno.
- Decididamente...
- Entenda padre, é o seu último pedido, e tenho ampla certeza que ela não pediria isso se não fosse importante para a o caminho da paz na sua alma.
- Seu último pedido antecedente à sua morte é que eu aprove uma festa pagã na nossa vila? Isso é um absurdo!
- Padre, por favor! sei que é incomum eu lhe pedir este tipo de coisa. Mas viajei longe, na metade do caminho meu cavalo contraiu alguma doença na Floresta da Mandrágora e faleceu, e desde então venho caminhando para esta vila, apenas para ouvir o que minha parenta deseja!
- Mas há uma estrada na sua vila que leva à nossa!
- Não há mais. Houve uma tempestade furiosa que derrubou dezenas de árvores na estrada, além de ter aberto crateras... Não há outra saída para os habitantes da nossa vila a não ser contornar o caminho pela Floresta da Mandrágora....
Louvier hesitou, uma pena se apoderava daquele rapaz belo e, pela primeira vez ele reparou, cansado. Mas a história da tempestade lhe parecia tão irreal... Todavia, já tinha se passado uma semana desde que acontecimentos estranhos não surgiam em Clevelier, exceto pelo fato de que os transportadores de cargas e os caçadores estavam reclamando de alguma estrada derrapada, submersa em árvores caídas, repleta de crateras. Ele já ouvira em algum lugar também sobre essas tempestades. Na verdade, há muito tempo ouvia sobre elas, ainda na época que seu finado tio, o padre Carlo di Saint Miguel, contava para ele e para Auguste que Clevelier tinha um azar esquisito para as chuvas mais densas....
- Não sei, meu rapaz... Faz algum tempo que a Igreja proibiu esses festejos pagãos nas vilas da França.... Desde então os que se recusam a seguir o caminho de Cristo fazem isso nas florestas... E parece-me que os monges mais importantes estão tomando medidas por demais drásticas, como atear fogo nas matas para condenar essas pessoas... Não quero que esse tipo de coisa aconteça em Clevelier, você me compreende?
- Compreendo padre.
- Então você compreende agora que não posso lhe dar permissão para isso?
O rapaz se calou, degustou o “não” com cautela, e também com cautela escolheu as próximas palavras que iria pronunciar.
- Padre, por favor, lhe prometo que essa será a primeira e última vez que isso acontecerá em sua vila... E para lhe dar minha palavra de que nada muito pecaminoso irá acontecer nesta festa, também convido o senhor a prestigiar as uvas que eu trouxe para o alimento... A vila de Samsa é a melhor na plantação de uvas e produção de vinhos!
A ideia de um padre numa festa pagã era até cômica, mas a degustação das uvas famosas de Samsa era tentadora. Louvier engoliu um riso e olhou para o rapaz, sério e impetuoso.
- Tenho a sua palavra?
- Com certeza que tem! – o rapaz deu um sorriso empolgado e pomposo, iluminando o seu rosto no mesmo instante. Até seu sorriso tinha alguma coisa misteriosa, tentadora...
Para o espanto de Louvier, o rapaz se levantou num pulo e foi-se para a porta de entrada da igreja ainda com aquele sorriso de aura estranha, mas não que, de fato, a aura estivesse explícita sob os dentes brancos e pequenos.
- Espere! – Louvier se ergueu da cadeira e saiu do confessionário, e o rapaz parou. – Qual é o seu nome, rapaz?
- Arpe, padre.
E saiu a passos largos da igreja.

~
Um antílope com mais de dois metros saiu de um ninho de árvores caídas e troncos limosos, tinha os chifres tão ou mais longos que suas patas, e parecia pesar toneladas, mas seus passos pouco ou nada faziam na terra, nenhuma vibração forte demais. Cheirou o ar e só então se aproximou de uma mulher com uma máscara negra que fazia lembrar o bico de um corvo, usava um vestido vermelho-vivo e carregava uma chama branca flutuante na palma da mão, apagando-a logo em seguida.
- Carlotta, pare de me chamar o tempo inteiro, queres morrer me invocando? – A voz grossa e ressonante pareceu vir de todos os lados da floresta, mas veio do animal majestoso, que mesmo assim sequer mexeu seu focinho ou sua boca.
- Desculpe, Huracán, mas eu...
- Sim, eu entendo, queres ajudar tua irmã. Mas pelo que senti, terás que ajudar a vila dessa vez.
- A vila?
- Sim, a vila de Clevelier. De alguma forma ela tem uma ligação com a Floresta da Mandrágora, O Grande Campo, e a Floresta dos Deuses.
- Mas Clevelier...
- Sim, Clevelier parece uma vila inofensiva. Mas esqueceste de que parte da dinastia Coeurcourt residiu e reside aí? Tu és uma bruxa experiente, deveria saber disso.
Carlotta enrubesceu, aquilo era uma ofensa horrível, vindo de um deus terrestre.
- Carlotta, eu sei qual é o teu pedido, mas por ora, não poderei pô-lo em ação. Está vindo uma criatura perigosa neste exato momento que poderá ameaçar, além da vida de pessoas inocentes, a vida da tua irmã.
- Minha irmã é poderosa, Huracán...
- No momento, tua irmã poderosa está ocupada demais para perceber a presença perigosa que está vindo agora. – Huracán olhou para os lados e mais uma vez cheirou o ar, se se olhasse mais próximo dos seus olhos, poder-se-ia perceber uma certa preocupação. - Anda, voa o mais depressa possível! Não deixe-o entrar em Clevelier.
Carlotta franziu o cenho.
- Voar?
- Agora!
Huracán direcionou seu focinho para o céu, fez um barulho com a língua que pareceu chapinhadas em poças d’água, e com um repentino raio de sol que chegou aos seus chifres, desapareceu. Carlotta sentiu o corpo mais leve, quase ausente de órgãos, tecidos, ossos, prestes a desaparecer, mas não desapareceu. Curvou o corpo e direcionou-o para onde se originava o som de inusitadas galopadas.
E voou.
Passou entre troncos, galhos, árvores tombadas, o vestido agora um borrão vermelho no ar, a máscara ainda no rosto, trêmula de vibrações, aguçando os sentidos de visão, olfato e audição da bruxa Coeurcourt. Até que chegou tão perto da criatura que cavalgava um cavalo marrom-claro que pôde sentir seu batimento cardíaco acelerado e ansioso, desejoso por sangue e carne. A criatura olhou para a máscara flutuante com a sombra vermelha logo atrás com total horror, serpenteou a língua e de um segundo para o outro Carlotta foi arremessada numa lufada de ar cortante, fazendo-a bater-se no tronco de uma velha árvore, e quase desapareceu. Quase.
Carlotta tirou a máscara com fúria do rosto, causando cortes em suas têmporas, deixou-a na cabeça como uma tiara, agora parecendo mais possuir uma coroa negra, deixou seus olhos esmeraldinos escuros e oscilantes, esfregou as duas mãos e, com uma única palma para cima, a criatura a mais de quinhentos metros de distância girou no ar e se estatelou no chão. A bruxa, ainda sentindo o poder de Huracán, voltou a flutuar e, em segundos, voar em direção a criatura e ao cavalo com as patas dianteiras quebradas.
A bruxa se aproximou do cavalo que relinchava agourentamente, fitou-o com dó, e então se ajoelhou perto de sua barriga.
- Me desculpe. – ela segurou o choro, tocou na barriga do cavalo, levantou-se e direcionou-se para a criatura derrotada. Antes que pudesse vê-la melhor, o cavalo começou a se debater horrivelmente, surgindo em sua pele horríveis feridas pustulentas, e morreu.
A criatura ainda engatinhava para longe do perigo quando Carlotta chutou sua barriga nua e imobilizou-a com suas botas de couro, pisando em sua cabeça. Um rapaz extremamente branco, olhos azul-escuros, cabelos salpicados com as cores castanho e preto, beleza ingênua, mas difícil de compreender.
- Saia daqui, agora, vá para longe desta vila. – Carlotta advertiu numa voz fria e clara.
- E como vou voltar? Tu mataste meu cavalo!
- Isso não me interessa. Voe, caminhe, desapareça, mas vá para longe daqui. Volta pro teu inferno.
O rapaz riu uma risada gutural, beirando ao assustador.
- Não irei.
Carlotta pisou mais forte, quebraria seu maxilar se se pisasse mais forte.
- Não costumo dar a mesma ordem duas vezes, criatura asquerosa.
O rapaz parou de rir.
- Pois não se dê ao trabalho.
Uma ventania anunciadora percorreu pela trilha em que Carlotta e Arpe se ameaçavam. Carlotta olhou para trás no mesmo instante, mas antes que pudesse pensar em alguma coisa, dois chifres longos e curvados saíram da terra em seguida à mãos grossas, ásperas e escuras. Um fauno surgiu do subsolo e segurou as pernas de Carlotta de forma bruta e selvagem, puxando suas canelas e fazendo-a cair.
Carlotta soltou um grito, não de medo, mas de espanto e fúria. O fauno começou a escalar em suas pernas e coxas, pronto para transformar aquele corpo belo e curvilíneo numa hamadríade, mas o poder da bruxa era maior.
- Tira tuas patas fedendo a estrume agora mesmo de cima de mim, criatura inferior, ou eu chamo pela fúria de Cernunnos!
O fauno, de rosto achatado e com pouquíssimas expressões humanas, mais parecendo uma cabeça de granito com olhos enormes, fitou-a como se Carlotta tivesse dito algo proibido e aterrador. Levantou-se e entrou de volta no buraco que ele mesmo fizera.
Carlotta também se ergueu do chão, olhando entristecida para o cavalo apodrecido e para o lugar onde Arpe já não se encontrava mais.
- Me desculpe Ammaleth. Essa era a única coisa que eu poderia fazer no momento. Falhei. Mas conto contigo.
E foi-se.










~






Black Cherry
Arte: Nicole Absher, edição de Black Cherry

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Skin



Ele entregou à ventania palavras inquietas.
Ventania lhe disse:
- Não me venhas com palavras doces,
Pudera eu transformá-las em amor.
Mas ele não ligou. E a ventania, ah, a ventania? A ventania!
A ventania veio assim. Surgiu de um mar desconhecido, trouxe o reflexo de estrelas e constelações exóticas, guiou sereias e monstros marinhos, guiou a lanterna da lua e o reflexo sem forma do sol, até o pôr-do-sol.
E ele veio assim: ele não veio, ele surgiu, interveio, interrompeu e quase rompeu.
Ele era assim, não gostava de viver em terra firme. Ventania, de qualquer forma, nunca soube.
Ventania nunca deixou de lhe avisar:
- Não fale isso, pare com isso, apenas seja menos assim.
Ele nunca a ouvia.
Ventania desejou. Desejou o vento do vento sem vento dele, que era a solidez, o não-vento.
Ele pouco se importou. Os meteoros costumam sim ser interessantes, mas não tanto quanto as constelações, os mares, ou uma ventania.
Ah... Que engano. Desejar é muito diferente de se deixar sentir.
Ele, ele nunca aprendeu. É difícil aprender.
É difícil entender um pouco da morte, os fiapos de uma ventania.


~






Verano

sábado, 10 de dezembro de 2011

Quase-isso e quase. Fuga.

Ele costumava dizer assim: você é diferente de qualquer pessoa que eu já tenha conhecido, você realmente não veio desse mundo... Você... Você... Não vejo a hora de te encontrar! Torço para que isso aconteça!
E a sombra, a sombra cega, a sombra obliterada, a sombra esquecida totalmente de que era sombra, respondia com ternura, respondia para preservar e guardar até que aquela hora chegasse, até que a maldita hora finalmente chegasse.
E ele continuava, e a sombra se engrandecia.
A sombra então, ainda se esquecendo de que era só uma sombra, começou a criar uma centelha de esperança: e se com ele fosse diferente? E se realmente acontecesse? E se?
E a sombra dançava, e a sombra comemorava, e ele continuava, e a sombra não mais se calava, a sombra, oras, até sorria! Como pode aquela que nunca sorriu, conseguir fazer isso como se sempre soubesse tal feitiço?
Ninguém nunca lhe respondeu.
Na verdade, ninguém nunca lhe respondeu nada, e por que responderia?
A sombra ficou gigante, a sombra diminuiu, a sombra ficou gigante, a sombra diminuiu. Até que a sombra, na maré dos seus sonhos, viu que a hora, aquela hora, poderia chegar!
Então ele, ele e a sombra comemoraram, ele e a sombra sorriram, parece-me que a sombra também fê-lo mais risonho. Ele deveria ser grato à sombra pela sua compreensão...
E até que, e enfim que, como se esperava que, perto da hora, aquela hora, a hora, ahh! A Hora! Ele lhe fala, ele adverte, ele anuncia para a sombra como a mera notícia de um jornal:
“Estou perdidamente apaixonado por uma pessoa...”
E a sombra, a sombra boba, a sombra estúpida, lembrou-se até que enfim que era sombra, e que não passaria disso, que nunca passaria disso, que seria sempre sombra. Sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra penumbra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra escura sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombria sombra sombra sombra sombra sombra sombra escuridão sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra sombra senhora das partes mais insignificantes, rainha dos desamparados. A própria desamparada.
Então a sombra, ainda, num ato covarde e mais estúpido, mais patético do que ela já era, mais boba e mais ingênua do que o seu coração sombrio de sombra sombria, aconselhou-o e arrancou-o sem ele sequer perceber o que havia acontecido. É claro, ele a comparara a qualquer amiga, a sombra era apenas mais uma sombra dentre tantas outras sombras, por que seria diferente? Por que seria uma excessão? Por que, por um átimo de momento, ela teve a esperança ridícula de pensar que, se o conhecesse, se o tocasse, se captasse a sua voz, se o abraçasse, alguma coisa aconteceria? Ela era uma sombra feia, mesquinha, pequena, um nada, menos que a própria sombra que ela era. E ele? Bem, ele era um príncipe num asteroide, exalando o amor e a harmonia entre todos, perdidamente apaixonado por outro príncipe tão cativante e tão especial quanto ele. É claro...
Agora, o que continua sem explicação, é o porquê da sombra ter a mínima esperança de que dessa vez fosse diferente? Por quê? Por quê? É claro que não seria diferente, nunca será diferente, ela é apenas uma sombra. E o que é uma sombra para um príncipe? Um fenômeno efêmero antes dele abrir a janela do seu quarto e expulsá-la de vez?
Que sombra covarde, que sombra burra. As coisas nunca funcionaram assim com ela, por que funcionaria agora? Ela deveria deixar de ser menos egoísta... E pensar mais, e pensar mais na felicidade do príncipe. Longe dela, bem longe, mesmo que agora perto, mas ainda longe, muito longe, longe demais, um lugar que nenhuma outra sombra pudesse chegar, uma cidade de cinzas que quase, quase começou a se reconstruir, uma sirene ainda tocando.
Ela vai sentir falta do príncipe, mesmo que, para o príncipe, ela nunca tenha sido tão relevante. Ela espera a felicidade do príncipe com seu outro príncipe. E ela promete que jamais interromperá nada. Vai voltar a se calar como sempre se calou, abdicar do que sente pelo que os outros sentem, voltar a sentar e ficar em silêncio no seu quarto escuro, sem janelas, sem portas, sem luz. É só isso que ela faz, é só isso que ela sabe fazer. Sombra, ahh, sombras! Qual seria a razão da existência do sorriso de um príncipe se as sombras já não existissem?






~








O que restou

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

These Days



Aqui se foram as noites e as manhãs, quando você veio a mim
Encontrar seu caminho dentro de meus ossos, minhas articulações, minhas artérias...
Como uma fera que você chamou para a escuridão ao meu redor
Como o carvão que você grafitou por todo o meu corpo...

Mas nestes dias eu apenas caminho contigo
Nestes dias, eu te deixo ficar
Um pouco mais distante, ainda caminharei ao teu lado
Nestes dias, eu te deixo ficar...

Havia manhãs veranescas e noites em que estive cega por ti
E tu te mantiveste tranquilo ainda que a lua estivesse cheia
Meu estado temporário de leveza me assusta
Afinal de contas eu estava certa que tu estavas mais bêbado, e eu estava prematura...

Mas nestes dias eu apenas caminho ao teu lado
Nestes dias, eu te deixo ficar...
Nestes dias, eu apenas converso contigo...
Nestes dias, eu te deixo ficar...

Um pouco mais distante, mas ainda caminharei ao teu lado
As coisas que tu me mostraste ao longo dos anos
As estradas que você bloqueou e as vezes em que me desafiou...

Nestes dias, eu apenas caminho ao teu lado, te deixo ficar, converso contigo, um pouco mais distante...








~








Ane Brun

domingo, 4 de dezembro de 2011

Mimieux Entrevista


Pois bem, pouquíssima gente que lê meu blog, eu iria fazer um post explicando este meu longo hiato em novembro aqui nesta santa página, no caso, o término do meu terceiro ano que me impossibilitava de ficar postando por aqui, mas esta estrevista que o blog parceiro de Louie Mimieux fez comigo antes do penúltimo mês deste ano acaba esclarecendo tudo, e também fala um pouquinho da série atual que eu recomecei a postar agora em dezembro. Boa leitura ^^


Uma Cereja Negra...









Black Cherry & Andrew Oliveira

Witch Fire - 07: Friddah

1662
Uma lembrança desbotava que Ammaleth tinha apenas como um sonho ruim. Nela, Carlotta ainda não havia nascido. Mas existia outra, uma irmã, mais velha que Ammaleth.
Ammaleth tinha cinco anos, Friddah tinha seis.
Numa destas noites estreladas, foi que Ammaleth soube. Friddah havia fugido da casa dos seus pais adotivos para ir ao encontro da mãe Mary Donna. Mary Donna a expulsou, a surrou e lhe rogou uma maldição nos olhos deixando-a cega. Mas Friddah não saiu da sala. Ammaleth ficara horrorizada com tudo aquilo, e num instinto perfeito permaneceu calada e apenas assistiu. Sentiu que se se mostrasse, algo horrível aconteceria à ela. Ammaleth tinha medo da mãe.
- Em-wuu sa ezumir-sau! – grasnou Mary Donna para Friddah, erguendo o braço direito e fazendo um leve movimento de dedos. “Cega da escuridão!”. E Friddah, imóvel, chorou sangue. Os olhos de Friddah vermelhos, os olhos de Friddah todo negros, os olhos de Friddah sem nada ver. Mas o amor de Friddah ainda estava alí, para a mãe que a renegava. – Já lhe disse, uma primogênita Coeurcourt não pode ficar com a sua mãe! Agora some da minha frente!
- Mamãe! – chorava Friddah para o nada.
A porta se abriu sozinha, Ammaleth por algum motivo desconhecido sentiu um aperto no seu peito por ver Friddah naquele estado deplorável, carregando uma maldição nos olhos rogada pela própria mãe. E fez-se chuva em Clevelier.
- Mamãe!
- Vá embora! Saia da minha frente!
Como se por magnetismo, os pés de Friddah começaram a se arrastar em direção à porta aberta, amarrotando o assoalho no piso de madeira. As nuvens cinzentas que se propagavam do nada cuspiam trovões e traziam relâmpagos, com um vento cada vez mais forte. Ammaleth não conseguia mais ficar parada e calada, para aquela sua irmã desconhecida que sofria como um sacrifício para Pã.
- Mamãe! – dessa vez foi Ammaleth quem gritou. – Não faça mais mal à ela!
Mary Donna voltou o olhar para Ammaleth, que corria num impulso que seus sentimentos incompreensíveis comandavam, para abraçar e tentar ajudar aquela menina que, mesmo sendo arrastada à força pelo poder da mãe, ainda não havia desistido de obter o seu amor. Ammaleth a enlaçou com seus bracinhos, e a menina, um pouco mais alta que ela, parara de chorar e de ser expulsa da casa. Friddah, durante alguns segundos, pareceu entrar num frenesi, os olhos arregalados, os braços estendidos em direção a Mary Donna, as lágrimas de sangue secando no rosto branco e os olhos outrora verdes, agora escuros, arregalados como duas bolas de cristal.
Eram como pequenos querubins de cabelos negros e longos, a pele de mármore e as íris de vidro, plantados no meio da sala enquanto uma chuva noturna trovejava e assustava os moradores da vila. Mary Donna as fitou, e por um mínimo instante demonstrou o que pareceu tristeza, que logo foi consumida pela crueldade que voltava às suas expressões.
Ela ergueu o braço e bateu o ar, como se quisesse espantar uma mosca, e então, naquele momento ímpar de desespero, os braços de Ammaleth abraçaram apenas o ar. Friddah fora arrastada enfim para as ruas úmidas e geladas, iluminadas por lamparinas e postes de ferro que suspendiam velas ou querosene nos cantos e nas praças.
Friddah caiu de joelhos nas ruas alagadas, um crepúsculo ainda se pintava na noite que pouco a pouco era consumida por estrelas indiferentes, olhou para o céu e chorou, chorou e gritou. Mary Donna correu para fora, Ammaleth no seu encalço, mas a menina não havia parado. Algumas pessoas começaram a sair de suas casas para assistirem, preocupados, o que estava causando aquele escândalo todo. Mary Donna tentou, concentrando sua mente o máximo que podia para assassinar a filha fazendo explodir seu coração, mas uma força mais intensa e severa crescia e exalava dos poros de Friddah incontrolavelmente. Friddah gritava cada vez mais alto, mais pessoas saíam na chuva para ver aquela situação horripilante, Ammaleth não conseguia mais mover as pernas, o crepúsculo desapareceu das montanhas, as nuvens o engoliram.
Friddah abraçou a si mesma, num sinal de que até ela havia percebido o descontrole de seus poderes, e então todos os lampiões naquele quilômetro quadrado explodiram e se apagaram, e deixando os moradores iluminados apenas pelos trovões e relâmpagos cada vez mais forte e ameaçadores. As portas e as janelas das casas começaram a se abrir e fechar, um filete de sangue começou a escorrer do nariz de Mary Donna, Ammaleth tentava ao máximo se mexer para impedir, e ela já sabia como, a irmã.
Mas Friddah era obviamente muito mais forte que Ammaleth e Mary Donna juntas, seus gritos pareciam se propagar nas ruas e até dentro das casas. Um camponês imundo vestido com trapos de linho saiu da multidão de bocas escancaradas e dedos apontados e falou tão alto quanto os berros da menina:
- Bruxa! Esta criança é uma bruxa!
Mary Donna, num gesto instintivo de falsidade, pegou Ammaleth no colo e começou a fazer as mesmas expressões que as pessoas que assistiam a menina esbravejar para o céu tempestuoso. Como se Friddah não fosse sua filha.
- Bruxa! – algumas mulheres concordaram.
- Bruxa! – mais pessoas exclamavam.
Um casal também saiu do meio da multidão, eram os pais adotivos de Friddah, olhando para a filha e para uma Mary Donna levianamente horrorizada, e de volta para a filha. A mulher se ajoelhou e sacudiu os braços da garotinha.
- Friddah! Friddah minha filha! O que está acontecendo com você?
Friddah parou. Primeiro baixou os olhos amaldiçoados para o nada, o vestidinho preto molhado e os joelhos doendo no chão ladrilhado, e por fim o transe, o pescoço se contorcendo e virando-se para tentar enxergar a mãe adotiva, uma mulher de cabelos castanhos e que chegava até os ombros, as feições dóceis e uma bondade natural. Se aquela mãe era tão boa, por que Friddah resolveu ir sofrer na frente de Mary Donna, aquela bruxa, bruxa em todos os aspectos?
A mãe a abraçou e a ninou, então a carregou e a deu para o marido que sentia a mesma dor que ela. Eles se entreolharam e se deram um beijo suave, quase um encostar de lábios, que durou pouco tempo, e então se afastaram para aquecer a filha numa lareira. Os olhos de Friddah estavam voltando a ficar verdes, a maldição estava sendo desfeita por Mary Donna que fora forçada a fazer isso, para não descobrirem sua identidade. Mas apenas por isso ela desfez a maldição.
- Bruxa! Ela tem de ser queimada! – disse o camponês insano por morte, apontando para o casal que carregava a filha e ignorava todo mundo, cada vez mais distante de todos.
Carlo di Saint Miguel, um padre bondoso, que segurava a mãozinha de seu sobrinho Auguste numa mão, e seu sobrinho mais novo Louvier na outra, também se destacou da multidão e olhou feio para o camponês.
- Ela é uma criança, rapaz estúpido! – ela cuspiu as palavras com desprezo. – Tudo isso é obra desta tempestade! Não estás vendo? Deus está furioso, principalmente com pessoas como você!
O camponês o fitou como se o padre tivesse dito algo indecente.
- E vocês! Deveriam se envergonhar! Chamar uma criança perdida da mãe de bruxa! O que vocês têm na cabeça? Estrume de cavalo? – ele falou pra multidão, que abaixou a cabeça quase no mesmo instante, como um grupo de crianças peraltas. – Voltem para suas casas! Vamos! – ele ordenou, como uma grande autoridade naquela vila. E era.
O camponês foi embora, junto com a multidão que se dispersava e voltava a entrar em suas casas, aliviada por estar agora em locais secos. Mary Donna abraçou o corpinho encolhido de Ammaleth no seu colo, afagou sua cabeça e arrancou as memórias que ela tinha de Friddah, e então entrou de volta para a sua morada, largando a menina no vão da porta.
Antes de fechá-la, Ammaleth deu um aceno com a mãozinha branca para o pequeno Auguste, que olhava para trás enquanto ia embora com o tio e o irmão, e fazia o mesmo.

~
1680
Ele achou ter visto aquele pequeno esconderijo abaixo de uma madeira frouxa novamente, mas era apenas o mesmo sonho invadindo seus sonos novamente. Auguste pulou da cama sentindo aquele cheiro fresco de leite e pão, ajeitou um pouco a roupa íntima de baixo e chegou na pequena sala de visitas, logo ao lado de um corredor curto que levava à cozinha, na sua casa. Alí estava Ammaleth sentada num dos dois sofás, abraçando as pernas, pensativa. Ele se debruçou sobre a esposa e a beijou nos cabelos, sentindo a textura e a maciez dos fios nos lábios róseos.
- O que foi, querida?
Ammaleth ficou mais um pouco em silêncio, então olhou para Auguste em pé com o corpo quase nu e deu um sorriso tristonho, como quem diz “não se preocupe, posso melhorar”.
- Auguste... Quero minha filha de volta.
Ele receava que ela falasse isso, mas conhecendo sua mulher, aquela que passara sete anos enclausurada na própria casa, passando dias orando, fazendo comida, ordenhando as vacas da sua pequena fazenda e lavando suas roupas, sabia que chegaria a hora em que ela falaria o que havia acabado de falar. E chegou.
- Você nunca soube de nenhum sinal de onde minha mãe estava?
- Não, meu amor. Se soubesse lhe falaria na hora... Mas é estranho, sabe? Os moradores ou não se lembram, ou mal se lembram de Mary Donna...
De repente Ammaleth pareceu estar mais atenta às palavras de Auguste.
- O que costumam dizer?
- Que se lembram de uma pessoa, uma velha senhora, mas que não conseguem distinguir seu rosto ou recordar seu nome. Apenas sabem que ela cuidou de você... Por quê?
- O feitiço da Eva entorpecida.... – Sussurrou para si mesma.
- O quê?
- Não é nada, meu amor. Também acho isso estranho.
Auguste se sentou no sofá de frente para o que Ammaleth estava encolhida e afogada em suas reflexões.
- Lembro de Mary Donna perfeitamente, Ammaleth. Como se... Como se tudo aquilo tivesse acontecido ontem. Que fui empurrado com força contra a parede, e quando recuperei os sentidos e senti minha cabeça latejada, só havia você... Aliás, e a sua irmã?
- Friddah? – Ammaleth soltou o nome sem nem pensar, como um instinto mecânico do sua língua.
- Friddah? De onde você tirou esse nome? O nome dela não é Carlotta?
- Sim... É claro que é... – Ammaleth também se assustou com o nome que saíra da sua boca. De onde ela o ouvira? Parecia-lhe vindo de uma lembrança forte, porém arrancada de sua mente, de sua vida. – Carlotta também foi obrigada a ir embora... Mas sei que a verei novamente.
- Por que Carlotta não lhe ajudou com Mary Donna enquanto eu estava desmaiado? – Essa pergunta estivera guardada em sua garganta por sete anos, mas aquela conversa mostrava que a mulher se sentia pronta para qualquer pergunta, e pronta para dar todas as respostas.
- Ela me ajudou, Auguste. Mas Mary Donna também tinha reforços...
- Reforços?
- Havia um homem à seu comando, ele agrediu Carlotta e fugiu com Mary Donna. – Mentiu Ammaleth, que não pensava em outra resposta para a também fuga da irmã, que infelizmente não poderia mais ficar ao seu lado, e teve que ir-se para sete anos depois voltar a ajudá-la.
- Nossa... Mary Donna é...
- Um monstro. – Completou Ammaleth amargurada.
- Mas Ammaleth... – começou Auguste, e ela já sabia qual seria a próxima pergunta – Por que passaste sete anos sem sair da nossa casa?
O olhar de Ammaleth congelou, até a respiração lenta e ritmada no espartilho preto em seu peito pareceu parar. Ela o degelou e olhou para as próprias unhas, para então voltar a encarar Ammaleth.
- Auguste eu...
- Ainda não está pronta para falar?
- Isso e...
- Ammaleth, você e meu irmão são as únicas pessoas que eu amo nesse mundo, as únicas que eu tenho, além da nossa filha que nunca cheguei a conhecer e cuidar... Podes confiar em mim, sabes disso.
- Tu não entendes Auguste. Isso é horrível... Não foram simplesmente sete anos trancada nesta casa... Foram sete anos presa nesta casa.
- O que eu não entendo? Fale pra mim? E o que tu queres dizer com “presa nesta casa”?
Ammaleth suspirou, fechou os olhos por alguns segundos como se pensasse em cada palavra antes de pronunciá-las.
- Eu tenho medo, Auguste. Sei que posso confiar em ti. Mas isso é muito maior do que tua compreensão...
- Fale pra mim Ammaleth. Eu te amo, Ammaleth. Nunca vou te abandonar. Tu sendo um anjo, um demônio, um animal, permanecerei a te amar...
- Oh Auguste... Não é o amor o perigo disso tudo, sou eu.
Auguste franziu o cenho, então se levantou do sofá, ajoelhou-se ao lado de Ammaleth e depositou as mãos grossas e grandes em cima das finas e delicadas da esposa.
- Fale-me.
- Auguste, tu podes...
- Pare de pensar que vou lhe abandonar, pare com isso agora. Isso nunca vai acontecer. Nunca.
Ela enfim deu-se por vencida, suspirou mais uma vez antes de pensar nas palavras que poderiam explicar ao marido o que ela era, concluindo por fim que não havia outra maneira além da mais direta.
- Sou uma bruxa, Auguste.
Por um momento, o homem degustou a palavra como se estivesse procurando no arquivo de suas memórias o significado da palavra “bruxa”, então pensou mais um pouco para ter certeza de que ouvira aquilo, até concluir que fora dito alto e claro, bem ao seu lado. “Bruxa”, ela dissera com franqueza.
- O que isso significa? – Foi a única pergunta que lhe veio no momento para semear.
- Que tenho forças sobrenaturais para invocar, controlar, manipular, enganar, viver mais do que um ser humano normal, e que todo filho do sexo feminino que eu tiver, herdará meus poderes, e os poderes da minha mãe, e da mãe da minha mãe.
Auguste passou mais um minuto calado, mas não tirou as mãos de cima das de sua esposa, apenas baixou as pálpebras, imerso em pensamentos tanto quanto Ammaleth estivera minutos atrás antes daquele diálogo se iniciar.
- Isso é ser uma bruxa?
- Sim.
Mais silêncio.
- Quantas pessoas mais sabem disso? – Seu rosto estava impenetrável de emoções.
- Apenas Justine, mas porque foi necessário por ontem... Quando fui salvar sua filha.
- O fato de você ser bruxa ajudou a salvar a filha de Justine?
- Sim.
- Mas uma bruxa...
- Sim, existem, chamam-se Bruxas Escuras, mas não sou uma delas. Pertenço à dinastia Coeurcourt, logo, meu clã é o das Bruxas Claras, que diferente do outro, não acredita que seres humanos sejam inferiores à nossa raça. Somos iguais a eles, mas apenas com um dom em diferencial.
- E a Igreja? Ela deve saber da existência de bruxas...
- Não. A Igreja está usando o termo “bruxa” para mulheres curandeiras, que desafiam, segundo eles, o desejo obscuro de Deus de adoecer e matar pessoas. Mas bruxas de verdade, como nós, ela nem especula.
- E se souber?
- Não saberá.
- Ammaleth, eu me preocupo contigo. E se ela souber?
- Tentará nos exterminar, é claro. Tentará nos queimar na fogueira como queima as pobres velhas curandeiras...
- E pode conseguir?
- Improvável. Toda vez que um ser humano tenta machucar uma bruxa, sabendo ou não que ela é desta raça, faz-se chuva. A chuva é um dos fenômenos causados pela quantidade de bruxas num único lugar, ou apenas de uma, como a minha situação. E mesmo que ele tente liquidá-la de outra forma, no mesmo momento uma desgraça acontece a este humano.
- Você pode fazer chover? – Auguste estava assombrado, admirado, tudo ao mesmo tempo, mas nem um pouco enojado ou com medo.
Ammaleth sorriu, engoliu em seco, fez um estalo com os dedos indicador e polegar da mão direita, então semicerrou as pálpebras e retornou a abrir os olhos, que pouco a pouco começavam a explicitar as veias na córnea. Um trovão fez tremeluzir os lampiões e assustar os habitantes de Clevelier afugentando-os para dentro de suas casas. Auguste se ergueu num pulo e apressou os passos para a janela cortinada do quarto. Arredou o pano esmeramente costurado e pôde ver um belo sol ainda laranja e redondo do alvorecer envolta em nuvens cinzas e carregadas, causando um efeito de vários arco-íris quase caleidoscópicos nas montanhas além das fazendas e gados. Ammaleth apenas o olhava no vão da porta, e passado alguns minutos apenas viajando na canção da chuva e da alvorada, ele virou-se para ela e disse:
- Isso é lindo.
Então a beijou e a amou.








~







Black Cherry
Arte: Nicole Absher

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Witch Fire - 06: Confluência


1680
Ammaleth deu um beijo de boa noite em Auguste, que dormia profundamente pelo cansaço do trabalho, afofou o vestido com leveza e saiu pela porta da frente silenciando até sua respiração. A vila de Clevelier estava praticamente iluminada apenas pela lua avivada e as estrelas gélidas no céu azul-escuro, exceto por uma ou outra lamparina esquecida acesa em alguns postes de ferro. Faltavam cinco minutos para meia-noite.
A Bruxa Clara caminhou pelas sombras e por becos mais escuros, concentrando-se para seu corpo não ficar muito visível e chamativo a olhos humanos. Atravessou mais duas ruas até avistar a Ponte dos Lírios, uma ponte que pulava em cima de rochas e um pequeno rio nos subterrâneos da vila, limpo e gorgolejante, e onde seus únicos pontos que iluminavam a madeira negra eram montes de lírios crescendo nas bordas e em cima de trepadeiras nas madeiras suspensas selvagemente. Justine já estava alí, olhando o luar com impaciência.
Ammaleth correu até ela e a assustou com a presença repentina, esquecera-se de desfazer o feitiço de ocultação nas sombras. Naquela ponte, ela já sentia o cheiro dos súditos de Radamathys.
- Ammaleth! Temos que ser rápidas! Se minha mãe acordar pela madrugada para me velar na cama, ela fará uma sirene de desespero na vila!
- Nós seremos rápidas, não temos muito tempo também. Vamos.
Enquanto corriam para dentro da floresta, as duas com lampiões que Justine trouxera de casa, Ammaleth teve um pressentimento de algo maior e mais forte. Sentiu que aquilo era apenas o começo de coisas mais amplas, e que ela teria de enfrentar tudo aquilo para chegar à sua filha Charlotte. Mas Charlotte, a aura de Charlotte estava tão distante que Ammaleth as vezes tinha a impressão de ela estar morta, todavia uma centelha mais feroz de vida a deixava sem essa incerteza.
- O que faremos Ammaleth?
- Te acalma. Primeiro preciso sentir se o corpo da tua filha está vivo. – Ela disse, sem se importar com um pequeno detalhe.
Justine parou assustada, enquanto Ammaleth avançava e encurvava os galhos que a barravam sua visão na floresta. A bruxa também parou quando viu a mulher estática a um metro de distância.
- Justine! Não temos tempo!
- Bru... Bru... Bruxa!
- SSSSSSHHHHH! Não faça barulho, não queira acordar os espíritos desta floresta!
- Tu és uma bruxa! Tu deves morrer! Tu és aliada do demônio!
Ammaleth se sentiu irritada. Voltou-se para Justine e segurou seu braço com força.
- Escute aqui, tu queres ou não queres encontrar tua filha?
- É claro que quero!
- Então fica quieta e me prometa que não me acusará de bruxa na nossa vila!
Justine franziu o cenho. Ammaleth a agitou.
- Prometo! Prometo! Está bem! Mas tu não és aliada do demônio?
- Demônio é apenas o nome que a Igreja dá a criaturas que ela desconhece. Prefiro chamá-los de moradores dos Reinos Dimensionais.
- Que diferença faz? – Justine disse com teimosia, agora mais calma e caminhando normalmente ao lado de Ammaleth.
- Fale mais baixo. E não, não sou aliada de nenhum. Mas gostaria de ser. Demônios podem trazer benevolência e virtudes na vida de uma bruxa.
- E tua alma é o preço disso tudo?
- Não. Meus poderes são. Como sou bruxa, em vez de mera humana, meus poderes são o que pesam, então quando morro meus poderes irão se transferir para o deus ou o demônio o qual eu prometi um pacto, e meu espírito se eleva.
- Bruxas vão para o céu? – Justine exclamou, mas logo abaixou o tom de voz após ver o rosto raivoso de Ammaleth, numa súplica por mais silêncio.
- Não sei se é para o céu o lugar aonde vamos.
- Tu acreditas em Deus, Ammaleth?
- Eu...
Um grito agudo e depois ritmado ecoou na floresta até o lugar onde as duas estavam. Um pequeno caminho feito por seixos. Justine tremeluziu o lampião e Ammaleth paralisou, fitando a companheira da madrugada e pedindo com o olhar para ficar quieta também. Um farfalhar de várias corujas piando e corvos crocitando encheu o ar das árvores que uivavam na noite de Clevelier.
Criaturas monstruosas deixavam claros seus rostos e corpos escuros numa grande fogueira após a floresta e no começo de um grande campo. Gigantes, medianas e pequenas, dançando, cantando, tocando em suas partes íntimas num êxtase incompreensível. A primeira reação de Justine foi gritar, mas Ammaleth a tempo lhe estapeou a boca e a segurou de tal forma que a mulher desamparada engoliu o grito no mesmo instante.
Ammaleth entregou seu lampião a Justine que, trêmula, ficou apenas a assistir. A bruxa se distanciou dois metros da mulher, abriu os braços, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.
- Kyemebu fe-ar nei, Adramelech! – Venha para mim, Adramelech!
Ammaleth tirou uma pequena lâmina escondida entre os seios e coberta por um pano tão mínimo quanto. Estendeu o braço esquerdo e fez um corte consideravelmente profundo, erguendo-o e manchando seu vestido com o próprio sangue. Seus olhos estavam sem pupilas.
Um relampejo de luz invadiu e se comprimiu no ar gélido da floresta, fazendo Justine se afastar e chamando a atenção dos súditos de Radamathys. Na estranha rachadura, um homem alto, nu e com lisos cabelos vermelhos a chegarem aos ombros se expeliu e com um rápido movimento de mãos fez surgirem vestes longas em seu grande corpo exposto. Olhou para Justine, que mais parecia um gatinho arisco, e depois para Ammaleth, que o recebia com um abraço.
- Quem és tu? – Ele a afastou com delicadeza, depositando suas mãos nos ombros finos da bruxa.
Ammaleth olhou impaciente para o grupo de criaturas que caminhava em direção a eles, procurando o causador da luz torta no meio da floresta.
- Sou Ammaleth, uma Bruxa Clara da dinastia Coeurcourt.
- E por que me invocastes?
- Porque estão chamando Radamathys e Archiri para esta dimensão, sem conhecer a sua história.
- E vós a conheces?
- Sim. E eu o invoquei grande Adramelech, porque preciso de tua ajuda, e porque tu fazes parte da história de Radamathys.
- Se a conheces, então é fato saberdes que sou parte desta história. Estás dizendo a verdade. Eu irei te ajudar.

~
Carlotta caminhou assoviando no extenso corredor da mansão. Parava para admirar de vez em quando um ou outro quadro, e então recomeçava sua caminhada. Teria que parecer natural e alegre o tempo inteiro, teria que ser a bruxa mais astuta daquele lugar, pois era difícil uma bruxa enganar outra bruxa. Mais difícil ainda, era uma Bruxa Clara estar infiltrada num empório de Bruxas Escuras.
Uma menina parou na sua frente, estava imunda e com o vestidinho branco esfarrapado e rasgado em todos os cantos. Ela a fitou pelo que pareceu um átimo de segundo, e então se transformou numa longa serpente e passou entre as pernas de Carlotta. Carlotta não se sobressaltara, pois aquilo era mais do que assustador, era admirável.
Enfim chegou ao final do corredor, bateu três toques na porta, e esta se abriu. A mesma menina estava sentada numa poltrona sem braços, moldada com ouro e acolchoados vermelhos, tinha os cabelos cacheados e louros que se espalhavam atrás da tal poltrona e passeava em pouco mais de um metro no chão. Seus olhos eram violetas, violetas vibrantes que assustavam quem quer que as olhasse. Usava um vestido preto que passava dos joelhos pequenos, uma meia preta e sapatilhas lustrosas. Segurava um galho longo e retilíneo, cortado e envernizado com dedicação. Uma varinha.
Boa parte das Bruxas Escuras usavam varinhas ou algum outro objeto fino e eficiente que pudesse canalizar e concentrar seus poderes. As Bruxas Claras costumavam usar as pontas dos dedos, as palmas das mãos e a mente. As outras bruxas, aquelas que não eram nem Claras nem Escuras, tinham forças que passavam dos limites da razão humana, e apenas as bruxas mais antigas já a haviam visto ou conversado com uma delas. As duas dinastias costumavam chamá-las de Feiticeiras, Xamãs ou As Guardiãs de Sheol, essas precisavam apenas dos olhos.
A menina não pareceu muito empolgada ou espantada em ver a presença de Carlotta à sua frente. Na verdade, parecia ter ficado mais entediada do que já estava.
- Perdoe-me, senhora Inanna, não me apresentei. – Carlotta abaixou a cabeça e fechou os olhos em sinal de respeito e confiança. – Sou Carlotta LyliumWater, uma Bruxa Escura que chegou nestas terras recentemente. – Foi o primeiro sobrenome que lhe veio a cabeça. Coeurcourt era a dinastia de maiores Bruxas Claras da história daquela raça.
- Carlotta LyliumWater? – A voz da menina era aveludada, quase imperceptível perceber uma centelha de jovialidade.
- Sim.
Inanna olhou para a sua varinha, fez uma pequena chama na ponta, engoliu-a e soltou uma nuvem de fumaça negra.
- Sinto muita luz em ti, senhorita LyliumWater.
Carlotta concentrou seus pensamentos em sangue, chacinas, sacrifícios horrendos e até na morte da irmã Ammaleth. Escureceu sua alma o máximo que pôde na frente daquela bruxa poderosa. Até deixou seus olhos verde-claros numa tonalidade verde-musgo para parecer convincente.
- Perdoe-me, senhora, mas estás enganada. Sempre fui uma Bruxa Escura, e sempre serei.
- Tu sabes que se uma Bruxa Clara entrar em nossos aposentos, nós teremos o direito de eliminá-la, não sabes?
- Sim, senhora. – Carlotta ainda estava de cabeça baixa, os olhos escuros, o coração mais pesado, as intenções mais cruéis.
- Pois muito bem. Agora me responda outra pergunta, senhorita LyliumWater. Por que nunca senti tuas forças de Bruxa Escura durante tanto tempo, e só sinto agora, contigo na minha frente?
- Eu estava hibernando, senhora Inanna. Estava concentrada, meditando num lugar muito profundo e impossível de se perceber que eu ainda estava viva.
Pela primeira vez Inanna demonstrou um sentimento, o de espanto e assombro, mesclados à curiosidade. Levantou-se no mesmo instante e se aproximou de Carlotta com leveza, sem se importar com os cabelos métricos se arrastando no chão como o longo vestido de uma noiva caprichosa.
- Tu estavas num Reino, não estavas? – Ela passeou os dedos nos cabelos de Carlotta como se fossem fios do mais puro ouro.
- Sim.
- Então tu sabes como entrar em um?
- A senhora não sabe?
- Sei. Mas estou velha e se fizer isso mais de duas ou três vezes, poderei morrer antes mesmo de completar o portal.
- Senhora...
- Não fale mais nada. Tu és uma Bruxa Escura oficial agora, não quero saber da tua história, do teu passado ou de qualquer coisa relacionada a isso. Bem vinda a minha dinastia, Carlotta LyliumWater. Ou melhor, Carlotta de Inanna.
Inanna gargalhou alto, ambiciosa e satisfeita, como se tudo aquilo fosse uma grande piada do mundo. Fez um gesto com as mãos para Carlotta sair.
- Obrigada, senhora. – Carlotta levou a mão ao peito e abaixou a cabeça mais uma vez, antes de fechar a porta.
- Eu quem agradeço, bruxa ingênua, por ter entrado em minha dinastia.
Ainda com a porta fechada, Carlotta podia ouvir a gargalhada de Inanna, forte na sua voz vibrante. Ela havia enganado a matriarca de uma das maiores dinastias de Bruxas Escuras! Ammaleth precisava saber disso. Quanto a sair daquela dinastia, ela resolveria depois, pois estava concentrada em ajudar sua irmã, mesmo que de longe.
Carlotta desceu as escadas da gloriosa mansão de Inanna, enquanto várias bruxas passeavam para lá e para cá, exceto duas. Uma jovem nervosa e ansiosa sentada ao lado de uma velha mal-humorada. Antes que a velha pudesse perceber, Carlotta invadiu sua mente e a mente da jovem, e viu três lembranças parecidíssimas. Nas três, elas faziam mulheres desmaiarem, pintavam três pares de asas negras nas paredes, e raptavam seus bebês.
A velha ficou em estado de alerta e Carlotta voltou a descer as escadas, saindo de seus pensamentos bem a tempo. Quando chegou ao térreo, sorriu para as duas que apenas a encaravam, aflitas, e foi-se da mansão para adentrar as florestas.
~
Auguste abraçou a almofada.
Apertou-a ainda mais contra o peitoral para ter certeza de que era mesmo a almofada, e só então despregou os olhos. Apenas a sua respiração, apenas o seu corpo repousado na cama, sozinho. Ammaleth, onde estava Ammaleth?
Há apenas dois dias que sua esposa voltara a sair de casa, e ela já estava com seu habitual costume de desaparecer na madrugada e reaparecer sempre após as três da manhã? Ammaleth... Teria ela ido atrás de Mary Donna? Não, não teria. Aquela velha, aquela mãe malévola de Ammaleth carregava alguma coisa negativa, perigosa, pesada em sua aura, sua presença. Ammaleth também possuía uma certa aura diferente das demais mulheres, mas a dela era inofensiva, ou pelo menos parecia ser. Não, ele tinha que confiar em Ammaleth, era a sua esposa, ela cuidava tanto dele quanto ele dela. Sem excessos de palavras, sem grandes discussões, sem profundas feridas, apenas o amor, o mais puro e autêntico amor.
Auguste pulou da cama, lavou o rosto, vestiu uma calça de couro marrom, galochas e uma camisa longa e branca e, como um fantasma, saiu de sua casa para pegar uma chave, caminhar até o final de uma ruela e entrar em outra. Acendeu um lampião à querosene empoleirado em um pequeno armário ao lado da porta de entrada e deu três toques na porta do único quarto da morada. Ele não o atendeu.
O homem preocupado resolveu entrar. Louvier residia na sua cama inquieto, não estava se mexendo ora ou outra ou apenas gemendo com um sonho ruim. Era um pesadelo profundo, real, palpável que o dominava e o fazia se contorcer entre os lençóis como um animal se ardendo em dor por ter uma pata mordida por uma armadilha. Auguste se aproximou e se ajoelhou perto da cama, agitando o corpo suado do irmão em vão. Estapeou-o e apertou-o várias vezes, mas a agitação de Louvier só aumentava.
- Louvier! Louvier! Acorde irmão! – Ele implorava como implorara quando despertara seu irmão desses pesadelos durante a semana anterior, desde que se iniciaram os raptos com os bebês, mas dessa vez falava mais baixo, um grito baixo, pois seria perigoso se se acordasse alguém mais além de Louvier.
Louvier soltou um urro de dor, como se estivessem penetrando garras em seu peitoral, pois este se encolhia e debatia os braços no ar impossibilitando alguma coisa de perfurar sua caixa torácica. Auguste pulou em cima dele e passou a estapeá-lo com mais força. Nenhum resultado.
Louvier o empurrou de cima da sua cintura, estralou e dobrou seu corpo quase ao ponto de quebrar sua coluna vertebral, e acordou.
Primeiro olhou para a direita e para a esquerda, depois para o teto, para a sua frente, e enfim para o seu irmão, fitando-o jogado no chão e apoiado nos cotovelos. Louvier não chorou como uma criancinha nem entrou em pânico, apenas se sentou na beira da cama para respirar e pensar e melhor.
Ele fitou Auguste por apenas um minuto após sentir que estava mais calmo, e voltar a ter a respiração descompassada e desesperada, enquanto o irmão mais velho levantava do chão e o esperava estar pronto.
- Justine e Ammaleth correm perigo. – Ele disse.
E então saíram da vila para conhecer a escuridão.

~
Um gigante súdito de Radamathys caiu de uma árvore em cima de Justine e a aprisionou com seus braços fortes, escuros e fétidos, e outro faria o mesmo com Ammaleth se Adramelech não olhasse para cima e o transformasse em pó, uma chuva escura sobre a bruxa horrorizada.
Adramelech suspendeu os braços sobre os joelhos, ainda em pé, e começou a arfar, abaixou a cabeça de uma forma que os cabelos ruivos e ardentes esconderem seu rosto. Ammaleth não sabia se olhava para ele ou para Justine com a expressão aterrorizada, e a boca silenciada pela mão áspera e pustulenta sobre sua pequena boca.
- Salva tua amiga. Estou bem, é apenas a minha doença. Meu amor por Archiri é minha doença. Esse é o preço que estou pagando.
Ela compreendeu. Correu e se distanciou do demônio e de Justine imobilizada, fechou os olhos mais uma vez e se concentrou no som da floresta. Não o som dos tambores dos súditos de Radamathys ou das respirações de seus companheiros , apenas o som único da floresta, aquele a quem ela dava tanta devoção.
- Cernunnos, Cernunnos, vorues-iuse! – Cernunnos, Cernunnos, proteja-nos!
Uma ventania carregada de fragrâncias das mais variadas flores chegou aos domínios de Ammaleth, que a comprimiu quase que por inteiro envolta do seu corpo, fazendo seus cabelos flutuarem lentamente sobre a cabeça pequena, levitou e rogou sua magia.
- Cernunnos, Cernunnos, seseaurikaiu-se! Oikyazoerse as uiikai noarsa! – Cernunnos, Cernunnos, destrua-os! Invasores da tua morada!
A ventania tomou a mesma forma de Ammaleth, como se fosse seu próprio espírito, e correu em direção à fogueira e aos súditos que ainda dançavam envolta dela. O vento de Cernunnos sugou toda a vida daqueles zumbis manipulados, e então explodiu-se em faíscas escuras quase causando uma queimada na floresta, se Adramelech não a apagasse a tempo. O súdito que segurava Justine caiu como um trapo no chão, não demonstrando qualquer sinal de que se ergueria para pegá-la novamente. Justine correu para um lugar mais escuro da fogueira e se encolheu entre galhos grossos de uma árvore que parecia infinita na escuridão.
O vento de Cernunnos não apagara a fogueira por completo. Um corte de luz branda se fez entre as chamas azuis que pouco a pouco escureciam, e num último relampejo de vida dançante, Radamathys se expeliu do portal como um homúnculo recém-nascido.
Adramelech, agora recuperado, correu em direção ao que restava da fogueira: tarde demais para empurrá-lo de volta. Radamathys se levantou nu e destemido, com o olhar altivo e a pouca surpresa em ver Adramelech também naquela dimensão.
Carlotta Coeurcourt alargou e retardou os passos, mas não levitou, chegou perto de Justine, que estava encolhida e amedrontada, e tocou em seu ombro. Ela colocou sua mão bem a tempo da mulher gritar, e então a abraçou pelo ombro.
- Calma, está tudo bem, tua filha está viva. Não te preocupa, vou buscá-la. – Quando Justine viu que Carlotta era enfim um ser humano, ou quase isso, se tranquilizou.
Ammaleth voltou e se depositou a poucos metros atrás de Adramelech, assistindo ao que ele faria.
- Por que me invocaram? – Radamathys quebrou o silêncio, olhando para Ammaleth e depois para Adramelech, falando num tom alto, mas não gritante.
Carlotta se desvencilhou do corpo trêmulo de Justine e se aproximou dos dois demônios, caminhando a passos sedutores e calculados.
- Eu te invoquei. Oh, grande Radamathys!
- E posso saber o por quê?
- Porque sou uma Bruxa Escura, e faço parte de uma das maiores dinastias de nossa raça!
- Teu nome?
- Carlotta de Inanna!
- Por que queres um aliado como eu?
- Por tu seres um dos demônios mais fortes de todos os Reinos-Demônios. Por tu teres seis asas obtidas com grande destemor e tu teres agora um reino maior que o de Tunridha! Nós, Bruxas Escuras, queremos formar um laço com vossa senhoria!
Os três olhos de Radamathys se concentraram tão fortemente em Carlotta que ela se sentiu nua e impossibilitada de contar mentiras. Mas ele jamais poderia saber se ela estava contando a verdade ou a mentira. Demônios não sabem e não podem ver a alma de uma bruxa.
- E tu achas que sacrificando seres humanos pequenos como este – ele apontou para um pequeno manto no meio dos corpos de seus súditos se mexendo sozinho, debaixo dele um bebê ainda vivo movimentando os bracinhos e as perninhas. – vai conseguir minha aliança?
- Nos perdoe, grande Radamathys, mas achamos que essa seria a única forma de chamar tua atenção, além de invocar teus súditos, é claro.
- Compreendo vossas intenções... – ele voltou a olhar Ammaleth, que apenas assistia a sua irmã, estupefata. – E ela?
- Ela me invocou, logo, pertenço a ela neste mundo. – Adramelech pôs-se a explicar.
- Adramelech... Aquele que destruiu minha família, meu amor por Archiri, meu futuro... – Radamathys devaneou.
O demônio acusado apenas abaixou as pálpebras pintadas com uma tinta negra.
- Pois muito bem, Carlotta de Inanna, fico honrado em receber tamanho sacrifício e dedicação apenas para me invocar. Invoque-me novamente mais tarde, prometo que virei na mesma hora e assim faremos a minha aliança com a tua dinastia. Mas não sacrifique mais nenhuma vida infante por mim, isso me causa extremo repúdio em relação à tua raça.
Radamathys bateu suas seis asas, causando uma ventania mais forte do que a de Ammaleth, e antes de desaparecer, fitou a irmã de Carlotta com mais atenção, com mais curiosidade... Até com certo interesse. Ele já vira aquele rosto, aqueles olhos, ele os conhecia, até mesmo aqueles cabelos eram familiares. Ele se lembraria disso quando retornasse para o seu reino?
Antes de ir embora, encarou Ammaleth por alguns segundos e então sussurrou uma pequena frase.
- Não está aqui.
Ammaleth compreendeu, mas teve medo de que a sua compreensão fosse um fato, então apenas estremeceu por dentro e guardou as palavras para, mais tarde, entendê-la de outros ângulos.
Adramelech recuou alguns passos e Radamathys desapareceu. Carlotta caminhou e deu a volta pela fogueira quase desaparecida, buscou o manto que se mexia entre as anciãs mortas e tirou o bebê de Justine com o rostinho sujo de cinzas. O bebê começou a chorar, mas com um leve afagar nas costas a bruxa o acalmou, levou-o até Justine, e Justine correu para buscá-lo de seus braços.
Ammaleth tocou no ombro de Adramelech, pedindo em silêncio que este esperasse mais um pouco, e então chamou por Carlotta, que em momento algum havia olhado para ele.
- Carlotta! Carlotta! – Seus olhos já se enchiam de lágrimas.
Carlotta, que estava velando feliz Justine e a sua filhinha, apenas virou o rosto para trás e a fitou com total tristeza.
- Desculpa-me irmã. Ainda não. – ela deu um beijo na testa do bebê e na testa de Justine e começou a se afastar. – Só posso lhe dizer que não me transformei numa Bruxa Escura completamente, Ammaleth. Mas lhe digo o seguinte: as nossas adversárias estão causando uma bagunça nas dimensões, querendo o poder de vários demônios à força. Radamathys é apenas o primeiro, elas querem mais cinco. Elas querem o poder de todos os seis demônios que protegem os seis cadeados do Grande Portal. E eu temo que elas queiram tanto poder porque querem eclodir uma guerra. Uma guerra de Bruxas Escuras e Bruxas Claras.
“Procure as origens, Ammaleth. Procure o porquê destes objetivos. Procure no âmago de nossas histórias. Quem sabe poderemos resolver isso, juntas. Mas por ora estou infiltrada na dinastia de Inanna. Sim, consegui convencê-la e enganá-la, e levei três anos pra concentrar um poder que fosse suficiente para isso. Os quatro anos anteriores a isso, lhe explicarei quando todo este horror acabar.”
“Proteja tua vila, Ammaleth. Proteja as pessoas que tu mais ama. Eu sei me cuidar, e eu vou te ajudar mesmo que de longe. Tenho que ir agora, eu não tenho muito tempo. Adeus!”
Com um leve canto sussurrado, chamou seu cavalo Joseph e saiu do fim da floresta para ser avistada naquele campo anterior a uma das colinas de Clevelier. Desatou o laço que amarrava sua máscara de madeira no pescoço do animal, colocou-a e montou no cavalo negro, indo embora a cavalgadas silenciosas na madrugada. Ammaleth teve apenas tempo de gritar por seu nome, não falou sobre o quanto sentia sua falta e o quanto ainda a amava, e sabia que fora ela quem tirara a maldição de Mary Donna de deixá-la presa sete anos em sua própria casa.
Ammaleth foi em direção a Justine, pegou e reacendeu um lampião intacto com o poder da mente, e antes que pudessem chegar na metade da floresta, viram mais dois lampiões flutuando e balançando em braços desesperados e que chamavam por seus nomes. Auguste e seu irmão Louvier.
Auguste a abraçou, aliviado, e Louvier deu uma grande benção aos céus após ter visto o bebê de Justine em seus braços. Ammaleth e Justine apenas sorriram, e num fiapo de pensamento, Justine falou com os olhos que guardaria seu segredo como forma de agradecimento pela sua vida e pela vida de sua filha.
Juntos, todos partiram de volta para a vila de Clevelier, sorridentes, exaustos e com os corações leves. Mas apenas Louvier olhou para trás.









~




Black Cherry

Artes: Nicole Absher,Jeff Simpson ("The Chooser"), Michelango